segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A Crise Existencial e a Resolução no Primeiro Mandamento (Parte 1)

Certa feita, Craig nos despertou à leitura sobre reflexões existenciais. Mencionaremos, nesta artigo, algumas partes do capítulo 2 do livro 'A veracidade da fé cristã', onde o filósofo supra-mencionado nos remete à questão. Mas gostaríamos de sugerir, para quem quiser se aprofundar nestas reflexões, o seguinte vídeo (vejam a série toda):

http://www.youtube.com/watch?v=P8Ak8VVxaGw

Com esta homilia de agora, pretendemos expor sobre a crise existencial, observando sua importância; formas de postergação; incitando-a e, finalmente, buscando uma solução na prática do primeiro mandamento do decálogo, que corresponde a amar a Deus com todas as nossas faculdades e não atribuir nada que pertença exclusivamente a ele, a outro ser.

CRISE EXISTENCIAL

Todos nós já ouvimos falar sobre ‘crise existencial’. ‘Crise’ é uma palavra conhecida. Se configura, segundo o Aurélio, na sua quinta definição, em “Estado de dúvidas e incertezas”; e,na sexta definição: “Fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos, das idéias”; a sétima definição traz: “momento perigoso ou decisivo”; a nona: “Tensão; conflito”. Essas são definições pertinentes com nosso assunto. A crise é um momento drástico, decisivo, e, por vezes, perigoso. Agora o adjunto adnominal ‘existencial’ pode causar-nos embaraço, embora saibamos o que ‘crise existencial’ quer dizer. Existência. Ser. Ontos. Uma crise existencial, usando as definições para crise que vimos acima, seria um estado de dúvidas e incertezas relacionados à existência; uma fase difícil em relação à existência; um momento perigoso e decisivo em relação à nossa existência; uma tensão ou conflito em relação à existência.
McGrath pode elucidar a questão. 'Existência'vem do verbo latino, existere, que parece ter o significado básico de 'sobressair-se'. Existir, no sentido pleno da palavra, significa destacar-se do seu meio ambiente [...] todos os tipos de forças desumanizadoras existentes no mundo ameaçam nos rebaixar ao nível do impessoal. Corremos o risco de nos vermos reduzidos a estatísticas e de ver negada nossa individualidade. Corremos o perigo de 'cair no mundo' (Heidegger), imergindo no cenário ao nosso redor e perdendo com isso nossa posição de destaque (MCGRATH, p. 92-93).
Todas essas definições são pertinentes, e, por um certo prisma, expressam uma faceta do que queremos dizer por crise existencial. Crise existencial seria uma inquietação, que chega a algumas pessoas a graus elevados, quanto ao porquê de estarmos aqui. É um momento decisivo, drástico. Precisamos de resposta para prosseguir.
A crise existencial é um fenômeno psicológico que normalmente vem à tona na adolescência. A propósito, é vista como uma característica típica desta fase. Mas, por uma série de questões que não teríamos condições de analisar neste texto, tornou-se um assunto, inclusive, de gestão empresarial (quem quiser uma evidência, leia o, não tão bom, livro de Mario Sergio Cortella chamado ‘Qual é a Tua Obra’, p. 13-16).
Crise existencial é, aliás, representada em outro termo hodierno: espiritualidade. Vejamos as palavras de Cortella:
O desejo por espiritualidade é um sinal de descontentamento muito grande com o rumo que muitas situações estão tomando e, por isso, é uma grande queixa. E a espiritualidade vem à tona quando você precisa refletir sobre si mesmo; aliás, a espiritualidade é precedida pela angústia. De maneira geral, a angústia é um sentimento sem objetivo. Quando você fica triste, é por alguma coisa. Quando você está alegre, é por algum motivo. A angústia se sente e não identifica objeto. Você se levanta e ‘não sei o que está acontecendo, estou com uma coisa, um aperto aqui no peito’. É uma sensação de ‘vazio interior’. (Cortella, p.14).

A pergunta que, primeiro, nos vem à tona é: como superá-la? Isso nos leva a uma questão ainda mais intrigante: alguém já a superou? Talvez digamos, com ar de maturidade e sapiência, que já passamos dessa fase. ‘Crise existencial é coisa para adolescente’, expressaríamos com tons de superioridade. Bom, certamente não.
Antes de mostrar porque não, e como é que os homens adultos a ‘superam’, vejamos algumas descrições mais detalhadas da crise existencial nas palavras dos filósofos cristãos William Lane Craig e Blaise Pascal:
Ao olhar ao seu redor, o ser humano vê apenas trevas e obscuridade. Além disso, até onde seu conhecimento científico está correto, o ser humano percebe que ele é uma partícula infinitesimal perdida na imensidão do tempo e espaço. Sua vida curta é confrontada dos dois lados pela eternidade, seu lugar no universo está perdido no infinito imensurável do espaço, e ele se encontra como que suspenso entre o micro-cosmo infinito interior e o macro-cosmo infinito exterior. Inseguro e desgarrado, o ser humano se debate em seus esforços por levar uma vida feliz e com significado. Sua condição se caracteriza por inconstância, tédio e ansiedade” (CRAIG, 2004, p. 52)
“Não sei quem me enviou ao mundo, nem o que mundo é, nem quem eu mesmo sou. Sou terrivelmente ignorante de tudo. Não sei o que meu corpo é, nem meus sentidos, nem minha alma e essa parte de mim que pensa o que eu digo, que reflete sobre si mesma assim como sobre todas as coisas externas, e não tem mais conhecimento de si mesmo do que delas.
Vejo a imensidão aterrorizante do universo que me cerca, e me vejo restrito a um canto dessa vastidão, sem saber por que fui colocado aqui e não em outro lugar, nem por que o breve período da minha vida me foi atribuído neste momento e não em outro em toda a eternidade que passou antes de mim e virá depois de mim. Em todos os lados só vejo infinito, no qual sou um mero átomo, uma mera sombra que passa e não volta mais. Tudo o que sei é que em breve terei de morrer, mas o que menos entendo de tudo isso é a própria morte da qual não posso escapar.
Assim como não sei de onde venho, também não sei aonde vou. Somente sei que, ao deixar este mundo, caio para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irado, sem saber qual desses dois estados será meu destino eterno. Essa é minha condição, cheia de fraqueza e incerteza. (PASCAL apud CRAIG, 2004, p.53).
Alguém estaria disposto a dizer que todo homem adulto já resolveu tamanho impasse? É claro que não. Mas todos, com maior ou menor complexidade de raciocínio, já se perguntou quem é; o que é; de onde veio; para onde vai; o que fazer; como ser feliz. A questão é que, via de regra, não respondemos à estas questões. Então, o que fazem os homens com elas? Como conseguem calar o grito da alma, a angústia, que clamava por respostas? Simples. Ocupação. Primeiro, satirizando [ao nosso entender] a situação humana, Pascal conclui:
De tudo isso concluo que deve passar todos os dias da minha vida sem procurar conhecer o meu destino. Talvez eu consiga encontrar uma solução para as minhas dúvidas; mas não posso me incomodar com isso, não darei nem um passo na direção dessa descoberta(PASCAL apud CRAIG, 2004, p.53).

Craig ainda complementa:
Apesar de seus predicamento, porém, a maioria das pessoas , por incrível que pareça, recusa-se a buscar uma resposta ou até mesmo a pensar sobre o seu dilema (Craig, p. 52)
...as pessoas ocupam seu tempo e seus pensamentos com trivialidades e distrações, para evitar o desespero, o tédio e a ansiedade que inevitavelmente surgiriam se essas distrações fossem retiradas (Craig, p.53).

Ou seja, o homem elegeu a ocupação como um substituto para as reflexões existenciais. Fazer alguma coisa. ‘Este tipo de reflexão é coisa de vagabundo’, esbravejariam alguns. É interessante observarmos que tal solução é, de fato, sugerida, inclusive, por escritores influentes como Goethe e Voltaire:
_ As grandezas – disse Pangloss – são muito perigosas, segundo o relato de todos os filósofos [...]. O senhor sabe....
_ Sei também – disse Cândido – que é preciso cultivar nossa horta.
_ Tem razão – disse Pangloss –, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, foi posto no jardim do Éden, foi posto ali ut operaretu eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.
_Trabalhemos sem refletir demais – disse Martinho –; é o único meio de tornar a vida suportável.
[...]
E Pangloss dizia às vezes a Cândido:
_ Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, enfim, se o senhor não tivesse sido expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da senhorita Cunegundes, se não tivesse sido apanhado pela Inquisição, se não tivesse corrido a América a pé, se não tivesse dado um bom golpe de espada no barão, se não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo cidras em conversas e pistaches.
_ Muito bem dito – respondeu Cândido -, mas temos de cultivar nossa horta (Voltaire em Cândido, p. 134-135).

Aqui, após uma série de desventuras (resumidas nas últimas palavras), os personagens, num último discurso, cansados das reflexões metafísicas de Pangloss, sugerem duas vezes que o que deveriam fazer era trabalhar, como que dizendo que o importante seria trabalhar, e, com ele, deixar de pensar nestas coisas. Percebam o desprezo às reflexões metafísicas e existenciais de Pangloss. Goethe, constantemente, sugere a mesma coisa. Primeiro faz as seguintes reflexões existencialistas pessimistas: “Acontece com o futuro o mesmo que com as coisas que estão longe. Um imenso, obscuro horizonte se estende diante de nossa alma; perdem-se nele nossos sentimentos, bem como nossos olhares, e ardemos, sim!, do desejo de dar tudo o que somos para saborear plenamente as delícias de um sentimento único, enorme, sublime... E quando chegamos lá, quando o distante se tornou aqui,, tudo é o mesmo que antes – continuamos na miséria, em nossa esfera restrita, e nossa alma suspira pela ventura que lhe escapou” (GOETHE, p.39).
Mas logo termina oscilando por uma constatação otimista:
“Considero-me imensamente feliz apenas por poder sentir a simples e inocente alegria do homem que põe em sua mesa um legume que ele próprio cultivou e que apenas o saboreia, mas igualmente, e em um só momento, sorve todos esses dias felizes, a linda manhã em que o plantou, as encantadoras tardes em que o regou e teve o prazer de vê-lo crescer, dia após dia!” (GOETHE, p. 30-40). Ou seja, em outras palavras, o conselho de Voltaire é aqui apreciado. Tudo isso, como salientaram Craig e Pascal, para firmarmos um motivo de existir. Existimos para trabalhar, comer e morrer. Pensar em algo além disso é coisa que não devemos ter tempo para fazer. Temos que trabalhar.
E assim, o homem oblitera suas reflexões existenciais com as ocupações do dia-a-dia. Ele precisa trabalhar, se sustentar; tem prazos, responsabilidades; logo terá família para criar; tem futebol para ver; tem novela para assistir; tem um romance para tomar conta de seus pensamentos... etc. As questões existenciais ficam no porão da alma. Mas acontece que, se não somos instigados a pensar sobre elas, como nesta ocasião, uma outra crise qualquer é suficiente para trazê-la à baila. Uma decepção amorosa; uma frustração trabalhista; uma situação de luto... a crise vêm à tona. E, com as questões não resolvidas, nem mesmo a ocupação poderá nos livrar.
De fato, assim que o homem percebe que não conseguiu dar razões objetivas para sua vida, a depressiva constatação o leva ao desespero. Estão todos os homens que não lidaram com esta questão, os postergadores, sujeitos a tal destino. E, a bem da verdade, Doistoiévski capta muito bem, no 'Recordação da Casa dos Mortos', a idéia de que, se não conseguimos captar um sentido para nossas ações, perdemos a motivação em fazê-las. Antes de expor o trecho, precisamos contextualizar o leitor. O livro relata recordações anotadas de um detento, em uma prisão na Sibéria, chamado Alexandr Petrovich Gorjantchikov. A porção destacada diz respeito a suas reflexões a respeito do trabalho dos detentos:
Certa vez estive a pensar: para se aniquilar um ser humano livre, castigá-lo sem nexo, ou, em vez de um homem livre, se se quisesse fazer um facínora virar um covarde com a só idéia de trabalho, bastaria que àquele e a este se dessem trabalho do caráter mais absurdo e inútil possível. .Os trabalhos forçados das organizações penitenciárias ou de degredo, por menos interesses imediato e individual que apresentem para o detento, pelo menos significam um trabalho que há de beneficiar outrem, digamos assim, e cuja realização tem uma lógica utilitária. O forçado durante o trabalho se considera operário provisório, é pedreiro, abre alicerce, mistura cal, cimento, terra, levanta parede, serra, corta; nisso se aplica, tem um plano a cumprir e ultimar. Não raro se interesse, capricha, colabora. Mas se em tuas horas de tarefa lhe ordenassem levar água dum depósito para outro até enchê-lo, depois esvaziá-lo, indo encher o que antes esvaziou; ou fosse desfiar areia num crivo, ou transportar terra de um canto para outro, depois transferi-la de novo para o local anterior, estou em mim que isso, aquilo ou aquiloutro, ao cabo de uma semana, se tanto, o irritaria a tal ponto que preferiria se enforcar ou então cometeria desatinos de possesso, não aturando tal vilania nem tormento. Essa espécie de castigo seria insensatez hedionda, tortura macabra e inutilidade perversa afetando não só a vítima como os mandantes. (DOSTOIEVSKI, p.21).

BIBLIOGRAFIA

CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a Tua Obra? Petrópolis: Editora Vozes, 10. ed., 2010, 144p.
CRAIG, William Lane Craig. A veracidade da fé cristã: uma apologética contemporânea. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo:Vida Nova, 2004. 309 p.
DOSTOIEVSKI, F. Recordação da Casa dos Mortos. Tradução de José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 3 ed., 1988, 267p.
GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do Jovem Werther. Tradução de Leonardo César Lack. São Paulo: Abril, 2010, 176p.
MCGRATH, Alister E. Apologética Cristã no Século XXI: ciência e arte com integridade. Tradução de Emirson Justino e Antivan Guimarães. São Paulo: Editora Vida, 2008, 368p.
VOLTAIRE. Cândido. Tradução de Marcos Araújo Bagno. São Paulo: Nova Alexandria, 1995, 136p.

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