Uma vez estabelecido que a dúvida, oriunda do espanto, é o fundamento e a semeadora da filosofia [se ainda não leu a primeira parte, clique aqui], há ainda passos a lidar em relação à compreensão do que é a filosofia e o que é um filósofo. A resposta, pois, girará em torno de lidar com a inquietação, em encarar o deslumbramento, não raro aterrorizante, que envolve a experiência humana. E dentre as inquietações, talvez haja uma que seja a primordial. Afirmamos que se trata da questão sobre Deus e seu corolário, a religião.
Agostinho de Hipona, na provável primeira auto-biografia da história, começa, no primeiro livro de suas 'Confissões', questionando o que seria Deus: "Que és, portanto, ó meu Deus?" (Livro I, Capítulo IV). Junto a essas questões ele faz uma série de outras questões. As questões parecem remontar seus tempos de juventude e havia algum grau de não-sofisticação nelas, pois parecem refletir uma concepção filosófica equivocada não digna de um pensador dessa envergadura. Aliás, no decorrer da própria obra podemos perceber que ele mesmo toma ciência dessas questões e suas soluções. Mas é interessante que, tanto ali, antes de sua conversão, quanto após ela, continuam a surgir dúvidas sobre Deus. Não mais, necessariamente, sobre sua existência, mas sobre sua natureza e sua relação com o mundo e com os homens. Portanto, mesmo uma vez experimentado, ainda surgem questões sobre Deus, o que moveria a todos a pensar sobre o assunto. Sendo assim, Deus torna-se objeto de indagação constante e, portanto, uma 'fonte de pensamento filosófico'.
De fato, segundo Ronald Nash, realmente todos pensam sobre Deus. Ele coloca as questões sobre Deus como basilares, i. é, fundamentais para toda a compreensão de mundo. Fazem parte das questões últimas da vida que, pois, compõem o sistema de pensamento, ou seja, a cosmovisão*, E 'cosmovisão' todo mundo tem, ainda que não saiba. Sendo assim, todos pensam sobre Deus.
Pensar o que sobre Deus? Nash nos dá uma lista de perguntas que nos surgem naturalmente: "Deus existe? Qual é a natureza de Deus? Há mais de um Deus? É Deus um ser pessoal, ou seja, é ele o tipo de ser que pode conhecer, amar e agir? Ou é Deus uma força ou poder impessoal?" (NASH, p. 15). Todos nós, sendo assim, temos alguma resposta, ainda que rudimentar, à essas questões.
Mas como é próprio da maioria das pessoas, nem todas concebem respostas refletidas sobre esses temas. É próprio do filósofo lidar com as questões relacionadas à cosmovisão. Demorar-se um pouco mais nessas questões basilares. E a questão sobre Deus é primordial. Nesse sentido, Nash afirma que "O elemento crucial de qualquer cosmovisão é aquilo que ela diz ou não sobre Deus" (NASH, p. 15). Até mesmo os ateus admitem isso. Por exemplo, Lee Strobel nos conta sobre sua entrevista com Charles Templeton, que era pastor e passou a ser ateu, e a figura, ao ser questionada sobre Jesus, o julga mal pensador por não ter lidado com a questão mais importante de todas. Melhor olhar em suas próprias palavras. Em determinada parte da entrevista, Strobel pergunta: " _ E os ensinamentos dele; o senhor admirava o que ele ensinou? _ Bem, ele não era um pregador muito bom. O que ele disse era simples demais*. Ele não havia refletido sobre o que dizia. Não havia meditado sobre a maior pergunta que se pode fazer. _ Que é... _ Existe um Deus? [...]" (STROBEL, p.22).
Collin McGinn é ainda mais explícito, e afirma justamente o que estamos tentando mostrar nesse artigo: "Seria somente uma questão de fé cega ou a existência de Deus podia ser provada? E a formulação dessa pergunta rapidamente leva a toda a questão do que ´uma justificativa afinal, assim como questões sobre conhecimento, certeza, livre-arbítrio e a origem do universo. Deus pode ser ou não um filósofo, mas certamente é responsável por muita filosofia" (MCGINN, p. 20). Ou seja, a questão sobre Deus é tão fundamental que suscita reflexões em várias outras áreas e, além disso, implica em tudo o mais. Se Deus existe, e dependendo de como ele é, então a metafísica, a ética, a antropologia filosófica, a escatologia, a reflexão existencial e a própria epistemologia é concebida de forma diferente*. A questão chega ao ponto em que há autores que afirmem ser a religião a progenitora da filosofia, como Alessandro Rocha: "Sem incorrer em nenhum equívoco, podemos dizer que na origem mesmo da filosofia está a experiência tipicamente religioso do espanto acerca da realidade e do esforço por nomear suas origens" (ROCHA, p. 9).
Olavo é ainda mais ousado, e afirma que a filosofia, como inicialmente concebida nos projetos clássicos, abrangendo Sócrates, Platão e Aristóteles, implicavam na busca pelo Supremo Bem, o que seria, que seja de uma forma genérica, uma busca por Deus: "Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um 'valor', muito menos uma 'criação cultural', mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento" (CARVALHO, p. 38).
É interessante e pertinente notarmos, agora, que os autores do famoso livro 'O Livro das Religiões', que conta com a coautoria de Jostein Gaarder, menciona as questões fundamentais, 'parteiras' da filosofia, como bases da religião. "Quem sou eu? Como foi que o mundo passou a existir? Que forças governam a história? Deus existe? O que acontece conosco quando morremos? [...] Muitas questões existenciais são bastante gerais e surgem em todas as culturas. Embora nem sempre sejam expressas de maneira tão sucinta, elas forma a base de todas as religiões" (GAARDER, HELLERN, NOTAKER, p. 11). Aqui, pois, é possível perceber como a questão sobre Deus afeta toda a reflexão dos indivíduos. A resposta irá interferir no conceito sobre o homem, a origem (ou ausência de início) do mundo, o destino do homem e assim por diante, como já observamos, alhures, em outros termos.
E é tão evidente que a questão sobre Deus influencia todos os setores, repartições, da vida, que "qualquer pergunta sobre a cultura, a política, as artes, a economia, as ideologias pode muito bem ser argumentada tomando por base a presença e a influência da religião" (ROCHA, p. 9). Gaarder, Hellern e Notaker afirmam algo muito semelhante: "Um rápido olhar para o mundo ao redor mostra que a religião desempenha um papel bastante significativo na vida social e política de todas as partes do globo. [...] É difícil adquirir uma compreensão adequada da política internacional sem que se esteja consciente do fator religião" (GAARDER, HELLERN, NOTAKER, p. 16).
Mas mesmo que não se admita a origem religiosa da reflexão filosófica, ainda sim não podemos negar que a religião, e, portanto, o assunto 'Deus', é tema constante das elucubrações dos filósofos, bem como as questões mais imediatas que daí decorrem, como a relação do homem com Deus e afins: "Dos longínquos tempos anteriores a Sócrates até os fluidos dias de nossa cultura pós-moderna, a religião nunca saiu da pauta da filosofia. Ora como rainha, ora como vassala, sempre esteve ali impondo sua desejada* ou incômoda presença" (ROCHA, p. 9).
E a questão, claro, é tão fundamental que envolve alto comprometimento psicológico, tanto para o teísta quanto para o ateísta, como demonstra muito eloquentemente R. C. Sproul: "Os dois lados do debate precisam ver que todos os envolvidos na discussão sobre a existência de Deus trazem bagagem psicológica à mesa. Aqueles que negam a Deus, por exemplo, tem um interesse enorme em sua negação porque, colocando de forma simples, se o Deus bíblico existe, então abre-se um infinito obstáculo entre eles e sua própria autonomia" (SPROUL, p. 144). Em outras palavras, quem nega a Deus tem algum interesse em fazê-lo. Se o Deus da Bíblia existe, por exemplo, então tudo deve ser revisto, inclusive como vivemos nossas vidas e haveremos de prestar contas de nossos atos e pensamentos. Para alguém envolvido, apaixonadamente, em determinado tipo de atividade, como a dissolução, vida boêmia, adultério e afins, a existência do Deus da Bíblia pode ser um enorme incômodo*. Sproul continua: "Enquanto cristãos, cada fibra de nosso ser quer que Deus exista, e cada fibra de nosso ser igualmente repele o pensamento de que a soma de todas as nossa vidas é a 'paixão inútil' de Sartre. [...] A mesma pressão psicológica para o ateu negar a existência de Deus é a do teísta para assumir sua existência. [...] Sabemos o que está em jogo se fizermos isso [cremos no Deus da Bíblia]; entendemos que estaremos em apuros se conhecermos a existência de um Deus soberano" (SPROUL, p. 144) e mais adiante um pouco: "Não podemos arriscar expor essa nudez. Não podemos estar sob a luz da revelação de Deus. Nosso ambiente de conforto é a escuridão. Preferimos a escuridão porque e oculta nossa perversidade. Então, por natureza, suprimimos a luz da revelação de Deus. Fazemos isso porque consideramos que é necessário nos proteger da dor da exposição*" (SPROUL, p. 146). Assim, ao mesmo tempo em que o teísta quer que Deus exista, o ateu quer que ele não exista. Destaque para a palavra QUER. Isso deve ser colocado à mesa caso se queira refletir sério sobre o tema. Envolve, aqui, pois, as questões existenciais, éticas e a própria orientação da cosmovisão do indivíduo*.
Se Deus e filosofia têm alguma coisa a ver? Parece-nos inseparáveis e, portanto, não nos é concebível filósofo e filosofia responsável que não considere Deus como assunto e não lhe logre devida atenção.
Parte 3
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*Se algum leitor ainda não domina o conceito de 'cosmovisão', sugerimos os artigos que escrevemos sobre, bastando a leitura da parte 1 e da parte 2:
Parte 1
Parte 2
*Caso algum leitor também pense assim podemos sugerir o magnífico artigo de Douglas Groothuis que lida justamente com o tema: http://liberdadeepensar.blogspot.com.br/2007/11/jesus-o-filsofo-e-apologista-por.html.
Peter Kreeft também tém um livro inteiro observando as habilidades filosóficas de Jesus: http://www.thomasnelson.com.br/livro/jesus-o-maior-filosofo-que-ja-existiu/ (tudo bem que foi publicado pela Thomas Nelson, e que o gênero indicado seja 'auto-ajuda' - o que é um engano -, mas é Kreeft. É bom!).
*Claro, a formulação da existência de Deus pode elevar-se a partir de um desses pontos filosóficos. Mas a questão de que há um intercâmbio entre os vários braços da filosofia ainda permanece e, uma vez decidida a questão sobre Deus, tudo o mais é também influenciado.
*Para uma lista de filósofos teístas organizados mais ou menos de forma cronológica elaboramos uma lista quando ilustrávamos o conceito de sofisma no artigo que pode ser conferido clicando aqui.
*Embora não seja tema das reflexões de agora, é bom salientar que a fé cristã não é ascetista tanto quanto o epicurismo, no que concerne à sua ética, não o é.
*Não é o que parece estar sugerido no trecho de João 3:19-21.
*Para uma abordagem um pouco mais extensa do que Sproul chama de 'Psicologia do Ateísmo', vejam: https://www.youtube.com/watch?v=HQgMoKIXV6M
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BIBLIOGRAFIA
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2008, 439p.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. Tradução de Isa Mara lando; revisao técnica e apêndice de Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 335p.
MCGINN, Collin. A Construção de Um Filósofo. Tradução de Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Record, 2004, 268p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
ROCHA, Alessandro. Introdução à Filosofia da Religião: um olhar da fé cristã sobre a relação entre a filosofia e a religião na história do pensamento ocidental. São Paulo: Editora Vida, 2010, 184p.
SPROUL, R. C. Defendendo sua Fé. Tradução de Patrícia Merlim. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, 192p.
STROBEL, Lee. Em Defesa da Fé: jornalista ex-ateu investiga as mais contundentes objeções ao cristianismo. Tradução de Alderi S. de Matos. São Paulo: Editora Vida, 2002, 368p.
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