sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Aprender a Ler a Bíblia (Parte 6)


Olharemos, nesta lição, formas equivocadas de se interpretar a Bíblia. Esperamos que, ao final de nossa reflexão, aqueles que se valem das técnicas erradas por nós, aqui, destacadas, as abandonem, para o bem de suas próprias almas.
Ao interpretarmos a Bíblia, deveremos adotar o método de interpretação literal. Com esta afirmação, queremos fechar as portas para o método alegórico. O que tudo isso quer dizer? Primeiro, não quer dizer 'literalizar' tudo, ignorando o fato de haver figuras de linguagem. A Bíblia está repleta de figuras de linguagem, e a interpretação literal admite isto*¹. Interpretação literal significa entender literalmente o que as palavras denotam, ao invés de buscar conotações. 
Podemos esclarecer. Quando olhamos para a seguinte frase: "Como eu não tinha o que fazer ali na oficina e devia voltar para o presídio, me despedi de Akimitch e vim acompanhado por um soldado" (DOSTOIEVSKI, p.31), recebemos algumas informações. Lembrando-nos que o livro fala sobre um presidiário na Sibéria*², podemos, facilmente, deduzir que o protagonista referia-se a uma oficina (literal) que os presos trabalhavam; e que voltou para um presídio literal; com um soldado literal. Ou seja, entendemos exatamente o que foi descrito.
Já os que advogam a interpretação alegórica, poderiam querer entender as palavras todas como metáforas (e afins), ou seja, entenderiam que as palavras não correspondem ao que elas normalmente querem dizer. Oficina é um símbolo para, digamos, lugar onde se produz algo. Presídio é o local de enclausuramento. Soldado é alguém que ajuda na manutenção de impedir a liberdade (estamos tentando alegorizar). Logo, alguém desta estirpe poderia dizer que Alexandr Petrovitch (o protagonista do enredo) estava, na verdade, fazendo uma auto-descrição psicológica, onde a oficina seriam os pensamentos; o presídio seriam as emoções; e o soldado seria, talvez, o pudor, ou as normas sociais. Outra possível alegorização seria dizer que Petrovitch estava fazendo uma reflexão antropológico-filosófica platônica, onde oficina seria o mundo das idéias; o presídio seria o corpo humano; o soldado seriam as leis que regem o universo e o conduz de volta ao mundo físico.
E, assim por diante, a interpretação alegórica permite-nos, por meio de manipulações subjetivas no significado do texto, fazer qualquer tipo de interpretação. Ou seja, "a alegorização passa a ser arbitrária. É um processo que carece de objetividade e que não refreia a imaginação" (ZUCK, p.53). Perde-se a objetividade na própria comunicação. Imagine como seria se alegorizássemos tudo o que ouvíssemos. Entenderíamos, então, tudo conforme gostaríamos de entender, e instauraríamos o caos comunicativo.
Há, ainda, outros métodos não literais de interpretação. Os cabalistas do século 12 podem ser tomados como arquétipos para ilustração. Entendiam que o sentido 'não-literal', 'misterioso', 'oculto', era a verdadeira revelação da parte de Deus. Berkhof nos informa: "Na sua tentativa de desvendar os mistérios divinos, valiam-se dos seguintes métodos: a. Gematria, de acordo com a qual podiam substituir uma dada palavra bíblica por outra que tivesse o mesmo valor numérico*³; Notarikon, que consistia em formar palavras pela combinação das letras iniciais e finais ou considerando cada letra de uma palavra como a letra inicial de outras palavras; e c. Temoorah, que denotava um método de criar novos significados pela permuta de letras" (BERKHOF, p.15-16).
Por que não adotamos nenhum destes métodos? Ora, ao observarmos que a Bíblia foi escrita por homens (embora inspirados por Deus; assunto de outras reflexões), em linguagem, portanto, humana; dirigida a outros homens; não há um porquê para não buscarmos o sentido literal. "Isto indica que a Bíblia não foi escrita num código misterioso para ser decifrado por meio de alguma fórmula mágica. Como foi escrita nas línguas do povo (hebraico, aramaico e grego), não precisava ser decodificada, decifrada nem traduzida. Quem a lia não precisava procurar nas entrelinhas um significado 'mais profundo' ou fora do normal" (ZUCK, p.72).
Primeiro, não existe evidência alguma de que os autores intentaram camuflar suas verdadeiras mensagens por meio dos textos bíblicos. Quando Paulo escreveu: "É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher...etc." (1 Timóteo 3:2), não há motivos razoáveis para pensarmos que ele não estava, de fato, dando as qualidades que um bispo deveria ter.
Além disso, se os autores tiveram esta intenção, o que produziram para ocultar sua verdadeira mensagem foi, de fato, sublime. As verdades que comunicaram literalmente são excelsas! Não podem ser ignoradas. E o pior, a idéia de que produziram uma mensagem nesse formato oculto fica, praticamente, impossível de se engolir uma vez que temos autores diferentes falando de verdades semelhantes, e até mesmo citando uns aos outros buscando e alegando um único significado, objetivo, para os textos referidos (o que a interpretação alegórica torna inviável, pois não é possível, nela, justificar o uso exclusivo de uma conotação, isto é, da atribuição simbólica de significado).
Concluímos, pois, que as interpretações não-literais, além de serem, em si mesmas, irracionais e sem justificativa, produzem, como efeito, uma subjetivização do texto, de modo que a Bíblia passa a dizer tudo aquilo que o intérprete quer, e não o que Deus quis dizer. Fujamos desta hermenêutica manca, que só tende a nos guiar por nossa própria (pseudo)sabedoria.

Em suma, podemos dizer que a alegoria entende que a linguagem literal não transmite a idéia a ser comunicada, mas que o texto apresenta outras informações, escondidas nas palavras que estão patentes. Cabe mais uma citação esclarecer:
"Se você dissesse para um auditório 'Atravessei o oceano desde os Estados Unidos até a Europa', não ia querer que eles interpretassem sua afirmação como se você tivesse atravessado os mares revoltos da vida e chegado ao porto de uma nova experiência. Da mesma forma, nenhum jornalista que escrevesse sobre a fome predominante num país como a Índia gostaria que a notícia fosse interpretada como se os indianos estivessem experimentando uma enorme fome intelectual" (HENRICHSEN apud ZUCK, p. 73).
E é exatamente o não desejado apontado pelo texto que a alegoria faz. O significado literal é descartado, e um significado oculto é colocado como se fosse o verdadeiro e único significado.
Tomaremos o sermão do reverendo Natanael Moraes, na Igreja Central de Patrocínio, no dia 03 de Agosto, como exemplo do que é fazer uma aplicação sem alegorizar. Seu sermão foi baseado em 1 Reis 19. Em suma, podemos resumir o que se passa neste capítulo da seguinte forma: Elias havia matado os profetas de Baal no famoso evento no Monte Carmelo. Depois disto, Jezabel, muito irada, jurou que mataria a Elias. Este ficou com medo, fugiu, deixando seu moço em Berseba, e indo ao deserto refugiar-se. Lá, pediu a morte a Deus, aparentemente exausto de seu labor. Um anjo aparece, o acorda, e o ordena que comesse. Elias vê que havia algo preparado para ele, come, e volta a dormir. O anjo tornou a aparecer, e o processo repetiu-se, mas, desta vez o anjo o ordenou a se levantar, pois ele tinha um longo caminho a percorrer. Elias comeu e bebeu, e caminhou, com a força daquela comida, por quarenta dias e quarenta noites, até o monte Horebe. Lá ele passou a noite. Veio-lhe, então, a palavra do Senhor questionando sua estada ali. Elias responde que fora zeloso, e queixa-se de Israel pela apostasia, e teme por sua exterminação, como aconteceu aos outros fiéis a Deus. Deus lhe manda que ele saísse, e, após uma ventania; um terremoto; e fogo, veio um 'cicio tranquilo e suave', o qual, o vendo, sai Elias da caverna. Deus novamente lhe pergunta sobre o que ele fazia ali, e ele torna a dar a mesma resposta, enfatizando seu zelo pra com o Senhor (v.14, notar o 'extremo' antes de zeloso). Deus então lhe dá algumas recomendações, mostrando a Elias que ele não conhecia os planos de Deus, nem que Deus havia preservado sete mil crentes que não haviam apostatado; e que Deus estava preparando sucessores para o trabalho de Elias. Este é o texto, do verso 1 ao 18, em forma resumida.
O reverendo Natanael destacou que Elias, fugindo de seu problema, entrou em uma caverna, e lá refugiou-se, aparentemente depressivo e, não havendo indicação alguma do contrário, ainda desejando a morte (cf. v.4). De forma ANÁLOGA, e não ALEGÓRICA, o reverendo observou, metaforicamente, que por vezes nos encontramos em cavernas, ou seja, nos encontramos em situações de desespero e angústia, e buscamos nos esconder, e nos refugiar, desesperados e desesperançosos. É importante notar que o texto, se fosse alegórico, diria que, na verdade, Elias não foi para uma caverna, nem que este evento aconteceu, mas que, na verdade, o texto significa alguma outra coisa. Na aplicação, nos valemos da interpretação adequada e literal, entendendo que, de fato, Deus tirou Elias da depressão e de sua fuga, e observando que tal se dá, muitas vezes, conosco. Embora não entremos em cavernas, literalmente, nos refugiamos e ficamos depressivos. Esta é uma analogia válida.
Por outro lado, percebam esta alegoria que MacArthur destaca:
"Um famosos pregador carismático, com quem tenho conversado com frequência, pregou uma série de sermões sobre o livro de Neemias. À medida que ele ensinava, todos os pontos do livro representavam algo diferente ou significavam alguma coisa simbólica. Eis algumas [sic.] de seus ensinos: As muralhas de Jerusalém estavam arruinadas, e isso dá a entender as muralhas destruídas da personalidade humana. Neemias representa o Espírito Santo, que vem para reedificar as muralhas da personalidade humana. Quando se refere ao açude do rei (Ne 2.14), esse pastor afirma que o açude simboliza o batismo do Espírito Santo e, a partir disso, continua ensinando sobre importância de falar em línguas" (p.115).
O problema é que, como nota MacArthur, o "livro de Neemias não tem nenhuma ligação com as muralhas da personalidade humana, com o batismo do Espírito ou com o falar em línguas" (p.115). Isto é alegoria. Os pontos de analogia foram forçados. Não existiam numa interpretação natural. Mas surgem, do nada, na interpretação alegórica.

Portanto, reafirmamos o nosso ponto. A alegoria é uma forma perigosíssima de interpretação. Ela foge do texto, e impõe a ele coisas que ele não diz, nem explícita nem implicitamente. Fujamos desse equívoco. Que isto sirva de lição sobre como fazer aplicações corretas.

BIBLIOGRAFIA


BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação Bíblica. . Tradução de Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2 ed., 2004, 144p.
DOSTOIEVSKI, F. Recordação da Casa dos Mortos. Tradução de José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 3 ed., 1988, 267p.
LADD, George. Apocalipse: introdução e comentário. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 2 ed., 1982, 224p.
MACARTHUR JR, John. F. O Caos Carismático. Tradução de Rogerio Portella. São José dos Campos: Editora Fiel. 395p.
ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica. Tradução de Cesar de F. A. Bueno Vieira. São Paulo: Vida Nova, 1994, 360p.

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*¹ Estudaremos, se Deus permitir, sobre figuras de linguagem numa reflexão posterior.
*² Aqui, inevitavelmente, já tocamos em outros pontos da hermenêutica, que, também, noutro momento, pretendemos estudar. A saber, estamos nos referindo da interpretação à luz de seu contexto.
*³ Já houveram tentativas de interpretar Apocalipse 13:18 (o número da besta) desta forma. George Ladd descredibiliza tais tentativas em seu comentário ao livro de Apocalipse, p. 138-139.

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