No meio do texto irão entender a pertinência da imagem...
INTRODUÇÃO BIOGRÁFICA
Ronald Nash começa sua exposição sobre Plotino
instigando-nos a lê-lo: “Indubitavelmente, Plotino foi o terceiro filósofo de
maior importância no mundo antigo, ultrapassado somente por Platão e
Aristóteles” (NASH, p. 133). Ele é principal nome e fundador de uma escola de
filosofia, como informa Linguiti: “Plotino foi o fundador e o maior
representante do movimento ao qual foi dado o nome de ‘neoplatonismo’ na época
modera” (PRADEAU, p. 104).
Plotino nasceu cerca de 205 e morreu ao redor de 270 d. C.
São, basicamente, as datas que os autores nos dão. Ele nasceu no “Egito, onde
conheceu as teorias dos antigos gregos, bem como ao judaísmo helenista e ao
cristianismo” (SPROUL, p. 57). Gaarder nos fala mais especificamente de
Alexandria, no Egito, e acrescenta: “É interessante notar que ele veio de
Alexandria, a cidade que já havia alguns éculos era o grande pondo de encontro
entre a filosofia grega e a mística oriental” (GAARDER, p. 152). Mas, para
Ronald Nash, não foi necessariamente em Alexandria que ele aprendeu a filosofia
oriental. Lá ele aprendeu a filosofia grega (e, certamente, o judaísmo helênico
e o cristianismo), indo aprender a filosofia oriental de outra forma, conforme
nos conta o filósofo: “aprendeu a língua e a cultura gregas, e começou a
estudar filosofia em Alexandria, no Egito. Depois, viajou pela Ásia na
esperança de entrar em contato com as ideias de pensadores persas e indianos”
(NASH, p. 134). No entanto, é em Linguiti que receberemos as informações mais
detalhadas desse período da vida de Plotino: “Porfírio(+-232-304), seu biógrafo
e editor, ensina-nos que, com vinte e oito anos de idade, em Alexandria, ele se
tornou discípulo de Ammonius Saccas (175-242), ao lado de quem permaneceu
durante onze anos. Em 243, levado pela curiosidade de conhecer as filosofias
persas e indianas, ele esteve presente na expedição ao Oriente de Gordian III;
no ano seguinte, depois da morte do imperador, ele foi para Antioquia, depois
para Roma, onde estabeleceu a sua escola e permaneceu durante quase toda a sua
vida” (PRADEAU, p. 105). Portanto, temos a seguinte conjectura a apresentar.
Com o imperialismo romano, a circulação de ideias tornou-se mais fácil (desde
os gregos, aliás). Prova disso é como Zenão de Chipre implantou ideias hinduístas
em sua filosofia (admitindo, claro, que a influência pode ter vindo dos
próprios primórdios da filosofia que, no final das contas, nasce na Ásia
Menor). Dizer, categoricamente, que Plotino não tenha ouvido algo, quem sabe
estudado mais sistematicamente, algo da filosofia oriental em Alexandria,
aquele grande centro cultural, é exagero. Mas é certo que ele queria mais, e
viajou para o oriente. Mas temos um, talvez próximo a dois anos no máximo, de
viagem. Claro, não podemos nos evadir de imaginar algum intuito de imitar seu
grande ídolo, Platão, nessa empreitada. Acabou se estabelecendo em Antioquia,
ainda depois, em Roma, onde estabeleceu sua escola de filosofia. Dando uma
pincelada geral no seu projeto em Roma, temos a exposição de Sproul: “Ele mudou-se
para Roma aos quarenta anos de idade* e procurou conscientemente desenvolver
uma filosofia que servisse de alternativa ao cristianismo. Sua intenção era
reavivar o platonismo, mas modificando-o para tratar da principal questão
levantada pelo pensamento cristão: a salvação. Sua filosofia foi eclética e
sincrética, emprestando elementos de vários filósofos. Ele rejeitou o
materialismo dos estóicos e dos epicureus, o esquema de forma e matéria de
Aristóteles e a doutrina judeu-cristã da criação” (SPROUL, p. 57). Portanto,
era um rival do cristianismo, embora fosse, por ele, influenciado a pensar
sobre a doutrina da salvação. A esta altura, Gaarder se torna pertinente:
“Plotino trouxe para Roma uma doutrina da salvação que viria a se tornar séria
concorrente do cristianismo vigente naquela época. Mas o neoplatonismo também
viria a exercer uma forte influência sobre a teologia cristã” (GAARDER, p.
152). Veremos essa influência particularmente em Agostinho, embora na Idade
Média será corrente também, ou, como se expressa Nash: “Uma visão geral do
sistema de Plotino é um passo essencial para o entendimento das cosmovisões de
Agostinho e de Aquino” (NASH, p. 133). Protelemos as elucubrações de Plotino
sobre a salvação neoplatônica. Notemos, apenas, o que é indispensável sobre o
projeto filosófico de Plotino: “Para Plotino, filosofia e religião eram
inseparáveis. Plotino desenvolveu um sistema que continha tanto uma apreciação
especulativa do mundo quanto a da doutrina religiosa da salvação” (NASH, p
133). Portanto, ele elabora o que podemos chamar tanto de teologia quanto de
filosofia.
Linguiti nos informa que “Plotino começou a escrever tarde,
quase com a idade de cinquenta anos, a fim de não romper seu primeiro
juramente, feito com seus condiscípulos Erenius e Orígenes, de não revelar as
doutrinas de seu mestre Ammonius” (PRADEAU, p. 105). Nash nos diz que eram
destinados “para um pequeno círculo de seguidores” (NASH, p. 134), mas Linguiti
é mais completo, novamente, e notifica-nos: “encontrando suas origens nos seminários
e nas discussões que tiveram lugar na escola, e destinados a circular entre os
seus alunos” (PRADEAU, p. 105). Portanto, foi em Roma, em sua escola,
destinados a seus alunos, que os textos surgem, tal como acontece com
Aristóteles. Já depois que ele tinha morrido “ seus escritos foram publicados
no início do século IV por Porfírio, que os organizou em seis livros, cada um
deles contando com nove tratados, não sem produzir cortes e forçar seus
ajustes. O título ‘Enéadas’ significa justamente ‘grupo de nove’” (PRADEAU, p.
105). Quanto a esses cortes e forçadas de ajustes é, desta vez, Nash quem tem a
ampliar: “Algumas vezes, Porfírio cortou ou uniu material escrito durante
diferentes estágios da vida de Plotino, frequentemente sem dar atenção a contradições
e mudanças em seu pensamento. Esta é outra razão pela qual é tão difícil ler
Plotino. [...] Até mesmo os filósofos que apreciam a obra de Plotino admitem um
número de inconsistências e de confusão” (NASH, p. 134).
Quanto ao projeto filosófico de Plotino, embora já esboçado
por Sproul, podemos expandir com Linguiti: “O objetivo fundamental de Plotino
foi defender e desenvolver os princípios fundamentais dos dogmas do platonismo,
por intermédio de uma ‘competição’ com o aristotelismo e o estoicismo, debate
que envolvia também aberturas e concessões (ao contrário, suas relações com as
tradições atomistas, hedonistas e céticas foram menos importantes e quase
sempre polêmicas); os neoplatônicos seguintes permaneceram no interior dos
limites de sua síntese filosófica, propondo, em suma, uma imagem homogenia do
platonismo da Antiguidade Tardia” (PRADEAU, p. 104). Portanto, era um eclético
filósofo, em busca do melhor que cada tradição tinha a oferecer (projeto,
aliás, nem tão original assim, se contarmos com o desenvolvimento do
estoicismo, que seguiu linha párea). Mas, é particularmente em Platão que ele
tem sua inspiração: “Plotino permaneceu fiel aos fundamentos do racionalismo
grego e à autoridade de Platão, cujos ensinamentos ele considerava como sendo o
depósito da totalidade da verdade filosófica [...] Plotino de fato se via
somente como um discípulo de Platão, não reivindicando para si mesmo senão ser
um intérprete singular, convencido de ter alcançado melhor que os outros o
sentido das afirmações do mestre” (PRADEAU, p. 104).
Ronald Nash nos diz, quanto a Plotino, que “sua morte,
provavelmente, por causa de lepra” (NASH, p. 134). Linguiti complementa:
“Plotino morreu em 270, na Campanha, para onde se retirou durante a última fase
de sua doença e onde, alguns anos antes, ele tinha concebido o projeto de
fundar uma cidade de filósofos, a Platonópolis, contando com o apoio do
Imperador Galiano, e de sua mulher Salonina” (PRADEAU, p.). Portanto, atacado
severamente pela lepra, ele foi para Campanha, um lugar que intentara
transformar numa cidadela dos filósofos, e lá morre em algo em torno de seus 65
anos.
O neoplatonismo posterior não nos interessa muito, pois é
mais relevante conhecermos esta vertente ortodoxa e filosófica. Segue-se à
escola vertentes mais ‘religiosas’, pagãs (particularmente com Proclus e a
partir de Jamblique) das quais, para os fins que pretendemos alcançar não vale
a pena mencionar.
INTRODUÇÃO À COSMOVISÃO NEOPLATONISTA
Como já observamos em outros sistemas, as inter-relações
entre as partes da cosmovisão existem e são muito importantes de serem frisadas
em um sistema como o de Plotino. Ou seja, particularmente em Plotino é
muitíssimo difícil falar de epistemologia sem falar de metafísica, antropologia
filosófica e afins. Mas, acima de tudo, Plotino relaciona todo o seu sistema à
sua teologia, que, por sua vez, é um item discutido na metafísica. Por isso,
iremos, em alguns momentos, tratar de temas neoplatônicos ao invés de locis da
filosofia. A metafísica, a teologia, a epistemologia, a antropologia
filosófica, a ética... etc., tudo estará dentro dos temas da filosofia desse
filósofo egípcio. Volta e meia iremos retomar os mesmos temas para um novo
corolário. Aprendamos, pois, essa importante mas também muito complicada (e
controvertida) cosmovisão.
Primeiro, temos que falar que Plotino é um panteísta. Mas,
claro, não é um panteísmo qualquer. É algo muito mais complexo que isso. Há uma
hierarquia ontológica toda especial, que, claro, foi inspirada em Platão. Por
isso Linguiti diz: “Para ilustrar o pensamento de Plotino, os intérpretes
privilegiam em geral a apresentação hierárquica, fazendo que sigam os níveis de
realidade que descem do Um até a matéria [...]. Proceder assim não resulta de
uma escolha errada, mas, ao contrário, faz que se compreenda bem que o cosmos
plotiniano, divino e harmonioso em sua totalidade, caracteriza-se, no entanto,
por articulações e distinções internas: ele não é a expressão de um panteísmo
integral e indiferenciado” (PRADEAU, p. 104). É, portanto, a expressão de um
panteísmo complexo mas, acima de tudo, hierárquico. Esse é o conceito chave
para compreender o sistema. Vamos, pois, dar uma olhada sobre essa hierarquia
para, noutro tópico, estudar pormenores, escólios e corolários.
Bom, apreciemos, primeiro, uma definição técnica: “Plotino
retrata a realidade como uma série de camadas, cada qual derivada de sua camada
superior. [...] Plotino explica o universo em termos de um movimento
descendente do seu supremo princípio, o Um (o Deus de Plotino). Tudo o que
existe está ligado, de algum modo, ao princípio último de Plotino, o Um” (NASH,
p. 135). Claro, essa citação está longe de ser esclarecedora, mas já é um
começo. A realidade é composta de camadas que começam no Deus de Plotino, o
qual será chamado pelos autores de Um ou Uno. Jostein Gaarder, com sua peculiar
habilidade didática nos fornece uma ilustração clássica para compreendermos, a
princípio, a metafísica de Plotino. Ele nos convida a imaginarmos uma fogueira
e o calor e luz emitidos por ela numa noite escura. Então nos convida a nos
afastarmos gradualmente, e perceberemos menores influências do calor e da luz
da fogueira, até que tudo se dissipa a certa distância, e já nem mesmo pode-se
ver o menor sinal do crepitar das chamas. E a analogia proposta é apresentada:
“Agora imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é Deus –
e as trevas lá fora são a matéria fria, da qual são feitos homens e animais.
Junto a Deus estão as ideias ternas, que são as formas primordiais de todas as
criaturas. Sobretudo a alma humana é uma ‘centelha do fogo’. Mas por toda a
parte na natureza aparece um pouco desta luz divina. [...] No ponto mais
distante do Deu vivo estão a terra, a água e as pedras. Estou dizendo que tudo
o que vemos tem um pouco do mistério divino” (GAARDER, p. 153). Portanto, todas
as camadas são, em menor medida na medida em que se distanciam, ‘formas de
Deus’. O conceito básico da metafísica está aqui exposto.
Aqui começamos com Sproul a estruturar um pouco melhor o
pensamento metafísico neoplatônico que Plotino formula: “ele insiste em certa
forma de transcendência do Uno, que é mais elevado como ser puro do que os
modos de ser que lhe são subordinados. O primeiro nível de emanação é o nível
da nous ou mente, que é eterna e fora do tempo. Aí está o mundo das ideias de
Platão. Da nous origina-se o mundo da alma, e dele deriva o da matéria, o mais
baixo de todos” (SPROUL, p. 57). Portanto, temos o Uno; após ele, o ‘nous’, o
mundo das ideias de Platão; o mundo a alma; e, por fim, a matéria. Ronald Nash
vale a pena ser citado para reforçar o conceito: “O Um produz primeiro, por
meio de emanação [...] o nível da mente ou inteligência, o qual, por sua vez,
produz o nível da alma, que dá origem aos corpos particulares que existem no
universo. Segundo o curso descendente de se tornar, toda a realidade é uma
emanação progressiva ou um movimento centrífugo em relação ao Um” (NASH, p.
136-137).
Antes de avançarmos, é importante notarmos um paralelo
distintivo que Gaarder faz: “As imagens que Plotino usa lembram a alegoria da
caverna de Platão: quanto mais nos aproximamos da entrada da caverna, mais
perto estamos daquilo de onde provém tudo o que existe. Mas em oposição à
nítida divisão da realidade em duas partes estabelecida pro Platão, a doutrina
de Plotino nos convida a vivenciar a plenitude. Tudo é um, pois tudo é Deus.
Até mesmo as sombras lá embaixo, na caverna de Platão, têm um tênue reflexo
dessa ‘Unidade’” (GAARDER, p. 153). Portanto, longe do dualismo metafísico de
Platão, temos um monismo gradual em Plotino. De fato, as coisas mais distantes
da caverna são mais reais, e as sombras no fundo da caverna são ‘menos reais’,
de forma bem semelhante ao que Platão concebe. Mas não coisa que não derive sua
existência ‘diretamente’ (de uma forma ou de outra, são os alcances do Uno) do
próprio Um, ainda que estejamos a falar das sombras bruxuleando nas paredes.
Ao seguir o assunto, Sproul irá alavancar outro tema: “Deus
está no centro do neoplatonismo, que Plotino chamou de ‘o Uno’. Em última
análise, diz Plotino, toda realidade flui ou emana do Uno. O Uno, porém, não
cria, porque isso o ligaria a um ato de mudança. Em vez disso, o mundo emana
necessariamente do Uno [...]. A realidade é estruturada em camadas ou modos que
emanam do Uno. Quanto mais longe a realidade fica do cerne do Uno, mais
material ela se torna” (SPROUL, p. 57). A emanação, já previamente mencionada,
precisa ser estudada. É um conceito caríssimo ao neoplatonismo, e precisa ser
analisada com cuidado. Não obstante, compreender os conceitos sobre o Uno se
sobrepõe a esse tema. Compreendamos, pois, o Uno, segundo Plotino.
Plotino diz algumas coisas bem pontuais sobre o Uno. Para
começar, ele é ‘Uno’. Nash expõe: “Dizer que Deus é Um implica que Deus é
transcendente e simples (sem partes), e não contém potencialidades ou
limitações de corpo. Deus transcende todas as distinções [...] O Um possui
autoconsciência imediata” (NASH, p. 138). Aqui há transcendência, unidade (ou
falta de partes), e, tal como o ‘motor imóvel’ de Aristóteles, atualidade pura.
Linguiti complementa: “O Um, chamado frequentemente também de ‘Bem’, ‘Deus’ ou
‘Primeiro’ é o fundamento de todas as coisas, absolutamente simples e único:
como causa universal de todas as coisas, infinitamente poderoso, ele é o
princípio de que tudo emana e para o qual tudo deseja retornar” (PRADEAU, p.
106). Temos um termo que o identifica com um dos candidatos a divindade de
Platão: ‘Bem’. Também acrescentamos que o Uno é a causa de todas as coisas;
onipotente; de onde tudo vem e para onde tudo deseja voltar. Até aqui não há
muitos problemas. A coisa complica quando predica-se ao Uno (um tanto quanto
com incoerência), o que Linguiti prossegue: “Tomando como ponto de partida a
descrição platônica do Bem ‘acima do Ser em dignidade e em poder’, Plotino
coloca seu princípio supremo acima dos paradigmas ideais (o Ser, justamente),
acima inclusive do espírito divino (o Intelecto) que os pensa” (PRADEAU, p.
106). Isso abrirá uma discussão enorme sobre o Uno. Plotino o predica com a
inefabilidade. É como se ele estivesse acima do próprio Ser. É um ente acima do
ente, um ser acima do ser, que deve superar o ser em todas as potencialidades,
inclusive a de simplesmente ser.
Antes de mais nada “é preciso, no entanto, lembrar que
Plotino, em seus raciocínios, quase nunca parte do Um; em outras palavras, ele
não coloca o princípio supremo sem explicar as razões que o levaram a postular
sua existência; ele aí chega, ao contrário, a partir da discussão de questões
que dizem respeito à estrutura do mundo inteligível ou à dimensão humana
concreta, quer dizer, aquela de uma alma encarnada, imersa na diversidade e na
imperfeição relativa do mundo sensível” (PRADEAU, p. 104-105). Portanto, o que
ele afirma sobre o Um e sobre a realidade (ou seja, suas asserções metafísicas)
é a posteriori, fruto de elucubrações. A estrutura do mundo, o fato de a alma
estar encarnada e em contato com o mundo sensível (e uma série de
pressuposições platônicas) fizeram-lhe concluir sobre o Um.
Bom, dado que, como dissemos, esse Deus está acima do nível
do Ser, “o Uno em si é inefável. Ele não pode ser captado pela razão nem
percebido pelos sentidos. É conhecido somente pela intuição ou percepção
mística. [...] podemos dizer sobre Deus somente o que ele não é” (SPROUL, p.
57). Claro, no momento oportuno falaremos dessa intuição mística. Por agora,
destaquemos que os métodos clássicos de conhecimento, pela razão ou pelos
sentidos, não apreendem ao Uno. A alternativa é a predicação negativa, ou seja,
dizer o que o Uno não é*.
Nash avança na exposição, acrescentando que a linguagem
humana é incapaz de dizer algo sobre o Uno: “O ápice do universo de Plotino é
um deus supremo, transcendente e desconhecido que ele chamou de o Um ou o Bem.
Tal deus está tão distante acima e tão diferente de qualquer coisa que os
humanos possam conhecer que a linguagem humana é incapaz de expressar qualquer
verdade literal a seu respeito.” (NASH, p. 135).
É o mesmo autor quem tenta nos trazer uma luz sobre o porquê
de Plotino insistir na ‘não-predicação’ do Uno: “O que Plotino quer dizer
quando se refere a Deus como sendo o Um? Parece claro que ele sugere que Deus é
puro, uma unidade não-diferenciada, isto é, que não contém partes. Plotino
ensinou também que o Um está ‘acima de todos os seres’ [...]. Isso significa,
pelo menos, duas coisas: o Um é transcendente [...]; uma vez que está acima de
ser, o Um não pode possuir quaisquer qualidades ou propriedades, o que
corresponde a dizer que ele é não conhecível. Tão logo atribuímos qualquer
propriedade ou característica ao Um efetivamente negamos sua unidade. [...]
introduzimos um dualismo no Um por meio da distinção entre sujeito e predicado.
E tão logo o dualismo seja introduzido em sua natureza ele deixa de ser o Um
[...]. De acordo com Plotino, nem sequer deveríamos atribuir existência ao Um”
(NASH, p. 137-138). Portanto, não podemos predicar nada sobre o Uno, pois,
fazê-lo, atribuir-lhe quaisquer das 10 categorias aristotélicas (até mesmo a
substância primária), é reduzi-lo ao nível do ser. É um completo mistério.
Linguiti confirma, ampliando a discussão sobre o assunto: “Sendo
dadas as qualidades próprias de sua natureza, o Um não admite ser descrito por
definições negativas: de fato, nenhuma qualificação ou definição positiva, aí
incluídas aquelas de ‘causa’, ‘princípio’, ‘bem’, ou mesmo ‘um’, poderia dar
conta convenientemente de sua absoluta necessidade e de sua incomensurável
superioridade. Muitas passagens [...] descrevem, portanto, o Um como não
possuindo nem limites, nem figura, nem partes, não derivando nem de um deus,
nem de algum lugar, não estando nem em movimento nem em repouso, permanecendo
fora do tempo, sem qualidade, sem qualquer forma de ser, não sendo nem ‘algo’,
nem ‘um’ também, inefável, incognoscível etc.; por meio desta ‘teologia
negativa’ sistemática Plotino recusa, em suma, todos os atributos que são
negados ao Um da primeira hipótese do Parmênides, o diálogo platônico que, no
platonismo tardio, destitui o Timeu de sua preeminência” (PRADEAU, p. 106). Ou
seja, aqui Linguiti está em franco conflito com Sproul. Mas não precisamos
coloca-los para brigar. O problema está na incoerência de Plotino, e não nos
dois filósofos contemporâneos. Prova disso, é a sequência do texto de Linguiti,
onde se emprega muitas expressões negativas sobre o Um, e nota que até mesmo a
unidade lhe é negada. Aliás, no final das contas, nega-se qualquer predicado ao
Um. Ele é aquilo que não admite qualquer discurso sobre, nem mesmo o discurso
de sua existência. Mas, claro, o sistema de Plotino não para de falar sobre...
Ronald Nash nos diz o seguinte: “Ele [Plotino], certamente,
rejeitou uma interpretação literal da teoria de Platão sobre a criação,
apresentada em Timeu. Plotino explicava a relação dos níveis da mente e da alma
com o Um como resultado daquilo que ele chamou de emanação” (NASH, p. 138).
Plotino poderia ser considerado um subversor de Platão (e, em muitos sentidos
ele o é, nitidamente). Mas acontece que o próprio sábio ateniense era muito
controverso, e parecia tergiversar em muitos pontos. Portanto, ao passo que ele
está rejeitando o Timeu, está abraçando parte dele e particularmente está
levando elementos também de outra obra, o diálogo ‘Parmênides’, a derivar
determinados corolários.
Stumpf nos explica como Plotino desenvolve o tema: “Se Deus
é Um, ele não pode criar, pois criação é um ato, e atividade, diz Plotino,
implica mudança. [...] Esforçando-se par manter uma visão consistente da
unidade Deus, Plotino explica a origem das coisas, dizendo que elas vieram de
Deus, não por meio de um ato livre de criação, mas em função de ‘necessidade’.
Para expressar o que entendia por ‘necessidade’, Plotino usou diversas
metáforas, especialmente a metáfora da emanação. As coisas emanaram, fluíram de
Deus da mesma maneiras que a luz emana do Sol [...]. O Sol jamais se exaure,
ele jamais faz coisa nenhuma, ele apenas é, e sendo o que é, ele simplesmente
emana luz. Desse modo, Deus é a fonte de todas as coisas, e toda essas coisas
manifestam Deus. Mas nada é igual a Deus, não mais do que os raios de luz se
equiparam, de algum modo, à luz do Sol” (STUMPF apud NASH, p. 139). Dessa
citação temos a observação de que Plotino teve de desenvolver a doutrina da
emanação para não dar qualquer atividade ao Um. Além disso, ao mesmo tempo que
afirma o monismo panteísta, faz diferenciações entre o Uno e suas ‘derivações’.
Mas, claro, não podemos parar por aqui. Ainda não entendemos
como é que essa emanação se dá. Linguiti é quem engendra uma explicação para
nós: “a maneira como, a partir do um, é engendrada a hipóstase que decorre dele
é bastante particular. O Ser-Intelecto emana de fato do Um, pois é a partir
desse último que se difunde primeiro a potência (dynamis) ainda indistinta que,
chegada a um certo ponto, detém-se, retorna para sua origem – que é o próprio
Um – para contemplá-lo: é somente nesse momento que o Ser-Intelecto se determina,
tomando forma em suas estruturas típicas, quer dizer, nas ideais” (PRADEAU, p.
106). Ou seja, pensemos, primeiro, na emanação de um Ser-Intelecto (um grau
novo na escala hierárquica, que nenhum outro autor menciona) proveniente do
Uno. Depois de ‘afastar-se’ um pouco do Um, ele se volta e contempla o Um. É a
partir desse momento que essa mente é preenchida por pensamentos, e esses são
as ideias. O primeiro grau, o ‘nous’, se apresenta a nós.
Linguiti segue: “Há, portanto, uma energia que surge, por
superabundância, do princípio superior, se volta para sua origem no desejo de
contemplá-la*, e, quando uma visão-pensamento assim se realiza, constitui-se
então um novo estado da realidade, estável e autônomo” (PRADEAU, p.). O termo
‘superabundância’ nos lembra a explicação de Nash para o fato de o Uno produzir
essa primeira emanação, o nous. “A progressão do Um à mente ocorre
espontaneamente sem qualquer escolha, vontade, plano ou atividade da parte do
Um. Plotino crê que se algo é perfeito necessariamente dá origem a outras
coisas. Assim, os mundos do intelecto, da alma e do corpo emanam de Deus sem
diminuir Deus em nenhum sentido. Mas o Um não opera de modo volitivo. É
necessário e inevitável que, se algo é pleno, tenha de transbordar” (NASH, p.
139). Portanto, o conceito pressuposto aqui é que um ser perfeito, pleno,
‘sobra’, excede-se e, portanto, tem que emanar. Claro, é uma proposta sem prova
alguma, mas é um dos fundamentos de todo o sistema. Embora iremos criticá-lo
posteriormente, não podemos deixar de notar tão grave defeito assim que nos
aparece. Mas, seja como for, continuemos a compreender a estrutura.
Vale a pena chamarmos a atenção para o fato de que Linguiti
dá certa ‘autonomia’ à nova realidade que surge no processo de determinada
hipóstase (ou seja, subsistência, grau de emanação) voltar-se para contemplar
sua fonte. A propósito, esta é a ‘gênesis’ de cada camada da realidade, e não
só das ideias, como atesta Linguiti: “Um processo análogo caracteriza a gênese
de outros estados da realidade” (PRADEAU, p.).
Linguiti avança: “como prova o vocabulário que Plotino
emprega, a energia que a cada nível se desliga do superior para produzir o
inferior, é uma espécie de pensamento, de contemplação intelectual (teoria);
resulta disso que o conjunto da realidade, considerada desse ponto de vista,
não é outra coisa senão o pensamento ou o resultado da atividade do pensamento”
(PRADEAU, p. 106-107). Portanto, a energia que, duma instância superior, produz
a inferior subsequente é essencialmente pensamento e a atividade de um
pensamento. Desse modo, podemos conceber que o ‘Ser-Intelecto’ pensa as ideias,
que, por sua vez, pensam a alma, que, por sua vez pensam a matéria. Para
brilhar os olhos de filósofos como Arthur Schopenhauer e George Berkeley, a
realidade não seria outra coisa senão pensamento.
É importante destacar da explicação que fizemos, alhures, de
Stumpf, que esse processo de emanação não tem propriedade cronológica, e,
portanto, é de teor tão somente ontológico, como confirma Nash: “Plotino usa a imagem
da emanação da luz, irradiando de uma fonte primária, para sugerir que Deus e o
mundo (todos os níveis de ser que emanam do Um) são co-eternos. Se assumirmos
que a fonte de luz seja eterna, os raios de luz também terão de ser eternos
[...] O processo de emanação significa que aquilo que teria permanecido mera
potencialidade no Um é atualizado no mundo” (NASH, p. 139).
Bom, vimos que a primeira emanação é o Ser-Intelecto, ou
seja, surge o ser (já que o Uno está acima do ser), que tem por propriedade
essencial ser um intelecto. E esse intelecto, ao contemplar o Um, fica ‘cheio’
de ideias. Essa distinção não é observada, mas, a título de completude, vale a
pena ressaltá-la. Vejamos Nash mencionar essa hipóstase: “O primeiro nível, que
emana ou flui do Um, é a mente ou inteligência. [...] Uma das maneiras de
entender nous é pensar a seu respeito em termos de resultado do pensamento de
Deus. Vários filósofo entre Platão e Plotino foram além de Platão,
interpretando as formas como ideias eternas na mente de Deus. Plotino adota
esta posição e vai além de seus predecessores” (NASH, p. 135-136). Um dos
pensadores que interpreta as ideias como os pensamentos de Deus é Filo, um
filósofo judeu do primeiro século da era cristã. Claro, essa é uma nova subversão
a Platão. Um tanto quanto repetindo Nash, citemos Linguiti: “No debate sobre o
lugar e a natureza das ideias, quer dizer, sobre a relação que existe entre
elas e a inteligência do Deus-demiurgo [...] Plotino interveio de maneira
completamente original. A maioria dos platônicos contemporâneos acreditava que
as ideias tinham uma existência autônoma, portanto, exterior ao intelecto
divino; ao contrário, Plotino se colocará atrás daqueles que [....] tinham
situado os arquétipos ideais* diretamente no interior do espírito divino,
julgando que eles eram, falando propriamente, os ‘pensamentos de Deus’”
(PRADEAU, p.). É interessante que o autor nota haver uma ortodoxia platônica
que seguia o mestre e dava autonomia ontológica para as ideias, que eram usadas
pelo Demiurgo para modelar a matéria, como já foi visto na metafísica de
Aristocles (Platão). Agora, onde está a originalidade de Plotino falada por
Linguiti? E onde foi que ele foi além de seus predecessores, como diz Nash?
É com Linguiti que temos o esclarecimento: “No entanto, a
grande novidade foi conceber as ideias não mais somente como conteúdos ou
instrumentos da inteligência divina, mas verdadeiramente como espíritos
pensantes. Uma vez abolida a figura mística do Demiurgo, Plotino concedeu então
a segunda hipóstase como o conjunto de uma pluralidade de entidades que são ao
mesmo tempo ideias e faculdades de compreender; em suma, para ele, ser e
pensamento não são mais coisas distintas ou, no melhor dos casos, unidos no
mesmo lugar –o espírito divino –, mas não absolutamente idênticos” (PRADEAU,
p.). Não há mais um demiurgo que usa as ideias. As ideias são, elas mesmas,
‘seres vivos’, ou seja, ao mesmo tempo que são, por definição, coisas que
permeiam o pensamento, são também entidades pensantes. Nisso ninguém havia
pensado. Pensamento e ser estão unidos não na mente de um Deus, que pensa e o
que pensa é o que existe, mas nas próprias existências relativamente autônomas
das ideias. Seguindo a estrutura dialética de Platão, Plotino segue concebendo
o seguinte: “A identidade entre o pensamento e o que é pensado não é imaginada
por Plotino de maneira estática, mas no quadro de um movimento espiritual, de
uma ‘vida’, onde as ideias não param de se pensar a si mesmas junto com a
totalidade orgânica que elas constituem. Em razão da interpretação total e
recíproca que caracteriza o mundo ideal, cada ideia é ao mesmo tempo ela mesma
e as outras; ela tem um conhecimento intuitivo de si mesma e de todas as
outras, sem por isso perder sua autonomia e sua individualidade” (PRADEAU, p.
107-108). Ou seja, cada ideia está não apenas intuitivamente consciente de si
mesma, mas também está consciente de todas as outras ideias. Mesmo assim, não
perde sua particularidade, sua individualidade. Isso é difícil de conceber,
visto que são essencialmente uma ideia, ou seja, um pensamento e, ao pensar em
outra coisa, acoplam ao seu ser outros pensamentos, que, por sua vez, são
outros seres. Linguiti nos conta de uma tentativa de ilustração: “Para ilustrar
esse caráter particular – e em muitos aspectos – da natureza das ideias,
Plotino os compara com os teoremas de uma ciência única na qual cada teorema só
aparentemente é ele mesmo, mas implica na realidade todos os outros, quer sejam
antecedentes ou consecutivos e, portanto, a totalidade da ciência em questão”
(PRADEAU, p. 108). Ou seja, ao mesmo tempo que determinada proposição é ela
mesma, ela pode implicar necessariamente uma série de outras proposições, e,
assim, a necessidade lógica faz com que, na existência de uma proposição, todos
os corolários existam consequentemente.
A PSIQUÊ
Depois da hipostáse do Ser-Intelecto, há uma nova emanação, mais complexa e 'fragmentada'. É a hipostáse da 'alma', ou 'psiquê', ou ainda 'nível psíquico'. Nash enuncia a emanação de modo simples: “Assim como o Um dá origem ao nível da mente, a mente, por sua vez, dá origem ao nível da alma. [...] A separação de Plotino da mente e alma é uma reminiscência da distinção similar no sistema de Aristóteles. Conquanto Plotino pense a respeito da alma, aqui, em termos da consciência de vida de Aristóteles, sua ideia de alma está ligada essencialmente à mente” (NASH, p. 136). O Uno deriva o Nous; o Nous deriva o Psiquê e, este, por fim, derivará o mundo material. É claro que há muito a se expandir aqui. É o que faremos. Cabe-nos observar que a ideia de alma de Plotino, segundo Nash, está vinculada à ideia de consciência de vida, como em Aristóteles, mas também diz respeito a algum nível mental. Ter alma é ter, em algum sentido, uma mente.
Enfim, Linguiti nos informa que o processo de derivação é semelhante ao da derivação anterior: “A alma deriva do Ser-Intelecto em virtude de um processo análogo àquele pelo qual a segunda hipóstase deriva do Um; em relação ao Ser –Intelecto do qual ela deriva, ela é degradada, visto que dá forma e vida ao corporal" (PRADEAU, p. 10...). Mas nesse nível, há um número muito complexo de variações e subníveis ontológicos. Linguiti nos diz que Plotino não está muito interessado em distinções aqui: "Plotino não se preocupa absolutamente com ser preciso quanto às diversas articulações do nível psíquico" (PRADEAU, p. 10..). Esse é um grande problema, para nós e para ele. Mesmo assim, Linguiti e Ronald Nash tentam alguma compreensão das nuances, e iremos segui-los.
Linguiti parece dizer haver apenas dois níveis mais abrangentes: um nível que parece apenas ideal, e o nível cósmico, que abrange as almas individuais: "grosso modo, pode-se dizer que depois da Alma hipostálica se encontra a Alma do mundo e com ela as almas individuais, que são de uma natureza próxima à sua (a influência do Timeu é evidente)" (PRADEAU, p. 10...). Há, pois, uma alma cósmica da qual derivam todas as almas individuais. Esse é um ponto pacífico entre os autores. Plotino parece ser bem claro aqui: “Pense em uma cidade que tenha alma. A alma da cidade seria a mais perfeita e mais poderosa. O que impediria que as almas dos habitantes da cidade fossem da mesma natureza que a alma da cidade? Ou, de novo, tome o fogo universal de onde vêm os demais grades e pequenos fogos individuais; todos estes têm uma essência comum, isto é, a do fogo universal” (PLOTINO apud NASH, p. 141). As almas derivadas, portanto, são da mesma natureza que a alma cósmica, como uma gota d'água retirada de um rio tem a mesma composição.
Mas não entendemos o que seria essa alma hipostálica a que Linguiti se refere, e, de fato, Nash não a menciona: “O nível superior é a alma cósmica ou alma do mundo [...]. O nível médio é a fonte de Plotino para toda particular instância da vida no universo. [...] Quando os seres vivos morrem, suas almas são absorvidas pela alma do mundo. De maneira não muito clara, o nível inferior da alma origina o corpo em geral e os corpos específicos. Somente o nível inferior da alma é a fonte da matéria que entra em contato direto com os corpos” (NASH, p. 142). Linguiti também observa que existe esse nível inferior da alma, mas parece haver uma diferença entre o entendimento que eles têm sobre a ontologia do nível psíquico. Vejamos as palavras de Linguiti: "e que todas essas almas, tanto a alma coletiva quanto as almas individuais, têm uma dimensão superior, voltada para o inteligível, e uma dimensão inferior (Natureza), voltada para a produção do sensível” (PRADEAU, p. 108-109). Portanto, tentemos traduzir. Nash parece dizer que o nível psíquico é subdivido em três partes: a alma cósmica; a alma média de onde surgem as almas individuais que, ao morrerem, voltam para a alma cósmica; e a alma inferior que, de alguma forma não muito clara, emana a matéria. Apenas essa 'parte' inferior, continua o filósofo, é a fonte da matéria, e as partes média e superior não têm nada a ver com isso. Mas Linguiti parece dizer que o desenho dessa hipostáse psíquica configura-se um pouco diferente: ele diz haver um nível maior, uma alma hipostálica; e um nível derivado, a alma cósmica, onde estão as almas individuais, aparentemente como se estivessem num aprisco. E, tanto a alma cósmica quanto as almas que dela derivam participam tanto da nous (mente, inteligência) quanto da criação e interação com o mundo material. Obviamente Nash e Linguiti discordam um do outro. Somente um estudo nos originais poderão, talvez (afinal, Linguiti diz que Plotino é obscuro, misterioso, e talvez seja confuso e contraditório por natureza, per si), resolver a questão. O importante, por hora, é saber que há uma alma cósmica que abrange as almas individuais e que esse nível emana a matéria.
Mas a coisa fica ainda mais complexa. Na medida em que há um regresso ontológico, há um progresso numérico. Aqui Plotino está seguindo mais a Aristóteles ao distinguir mente e alma, e ao pensar nos níveis diferentes de almas, como alma humana (racional), animal e vegetal. Percebam que é exatamente isso que Nash ensina: “Tal como Aristóteles, Plotino separa mente e alma. Cada alma em particular (coisa vivas) é uma extensão da alma cósmica. Do mesmo modo que Aristóteles cria que houvesse distinção entre almas vegetais, animais e racionais, Plotino cria [...]. Todos esses três níveis da alma são extensão da alma cósmica. Á medida que se move para baixo nos vários níveis da alma, há crescente multiplicidade. O mundo contém mais corpos do que almas, mas almas do que mentes, e assim por diante” (NASH, p. 141). O mesmo autor faz uma citação da qual podemos fazer mais inferências: “da alma vêm almas que diferem em graus de racionalidade, pois só assim pode haver uma ordem hierárquica de seres animados” (O’BRIEN apud NASH, p. 141). Ou seja, a racionalidade vai degradando-se, de modo que o princípio de todas as almas pode ser considerada a racionalidade pura e/ou plena.
Aqui faz-se necessárias algumas prolepses. É na matéria que Plotino faz residir o mal. Só que essa afirmação é problemática para seu sistema. “Por mais que quisesse evitar qualquer sugestão de que almas particulares decaiam para o mal, Plotino não pôde escapar ao fato de que suas próprias palavras implicam que seja assim. Enquanto em seu túmulo corpóreo, a alma se envolve com o mal, sofrimentos, problemas, medos e desejos" (NASH, p. 14...). Ou seja, Plotino fala das almas como se encarnando nos corpos que delas são derivados. Ele fala desse evento como uma Queda (talvez tomando e reconotando o termo do cristianismo, com quem dialogava apologeticamente), e parece indicar, por um lado, que é um efeito derivado da liberdade humana, da liberdade das almas, ao mesmo tempo que considera uma necessidade metafísica, ou seja, uma necessidade divina: "Plotino também usa uma linguagem que implica que almas individuais se cansam de viver no âmbito da alma do mundo. Consequentemente, as almas particulares escolhem romper com a alma do mundo e se colocar sob o controle dos sentidos físicos. Ainda que a noção de Plotino a respeito da queda da alma envolva, em certo sentido obscuro, a liberdade humana, esta é também uma necessidade da parte de Deus" (NASH, p. 14...).
Dessa doutrina, Nash observa dois problemas. O primeiro é o óbvio, já observado, de que Plotino parece fazer o seus sistema necessariamente 'macular' a alma, de modo que a experiência dela com o mal torne-se necessária e inexorável. Mas Plotino tenta fugir por algumas vias duvidosas: "Mesmo que a queda permita que a alma aprenda sobre o mal, Plotino crê que nenhum dano haverá se a alma se recusar a permanecer em sua união com o corpo. Para Plotino, a queda da alma produz algo de grande valor, porque possibilita a potencialidade de as almas vegetativas e sensíveis se realizarem; sem tal queda, as almas vegetativas e sensíveis existiriam sem propósito. Obviamente, teria sido melhor para a alma ter permanecido no mundo superior. Deveríamos nos lembrar, entretanto, de que a alma é, por natureza, uma intermediária entre dois mundos, o mundo acima, da inteligência, e o mundo abaixo, do corpo. A alma tem de entrar em contato com o mundo físico, com a realidade dos sentidos. E, embora a decadência da alma a coloque em contato com o mal, isso tem a vantagem de implementar seu conhecimento do bem. Nenhuma alma está desesperadamente perdida no âmbito da sensação corpórea. A possibilidade de salvação está sempre aí. Mas o que isso significa e há qualquer coisa que suporte essa especulação?” (NASH, p. 146-147).
Vamos tentar desfragmentar esse parágrafo de Nash. Parece que Plotino está dizendo que há alguma necessidade metafísica nessa queda: "Deveríamos nos lembrar, entretanto, de que a alma é, por natureza, uma intermediária entre dois mundos, o mundo acima, da inteligência, e o mundo abaixo, do corpo. A alma tem de entrar em contato com o mundo físico, com a realidade dos sentidos". Portanto, a realidade e sua natureza demandam tal 'contato' da alma com a matéria.
Em seguida, Plotino parece dizer que, embora a queda proporcione o contato, a alma pode ficar imaculada se ela não se 'conformar' em permanecer em contato com a carne: "Mesmo que a queda permita que a alma aprenda sobre o mal, Plotino crê que nenhum dano haverá se a alma se recusar a permanecer em sua união com o corpo". Ok, mas, e daí? Ela ainda PODE entrar em contato com o mal e recusar-se à elevar-se para o 'mundo psíquico' novamente. E daí ainda há outro problema aqui mesmo. Vimos que a alma 'se cansa' de habitar essa realidade e, então, cai. Mas, o que garante que ela não vai se enfadar de novo?
Talvez a resposta esteja nesse novo ponto: " E, embora a decadência da alma a coloque em contato com o mal, isso tem a vantagem de implementar seu conhecimento do bem". Em outras palavras, é como se o conhecimento do mal criasse maior apreço pelo bem. Entretanto, esse pensamento é perigoso. Ele diz que o pleno bem desfrutado por si mesmo não é suficientemente satisfatório e só se torna imprescindivelmente agradável quando experimentamos 'algo pior', 'menos bom' ou de qualidade inferior. Pensamento delicado...
Há, por fim, outro ponto a ser explorado no parágrafo: "...a queda da alma produz algo de grande valor, porque possibilita a potencialidade de as almas vegetativas e sensíveis se realizarem; sem tal queda, as almas vegetativas e sensíveis existiriam sem propósito". Então esse propósito seria soerguer-se? Voltar ao estado original, que foi preterido? Sem a queda não haveria de fato, nesse sistema, seres sensíveis e plantas. Então, essa é uma questão deveras complicada para Plotino. Ele parece fazer do sentido da existência a 'salvação', mas Nash é bem pertinente ao perguntar o que, raios, seria isso.
Uma nova citação de Nash encerra Plotino em mais problemas: “A propensão de Plotino para complexidades e aparentes contradições vem à tona quando ele ensina que as almas humanas particulares têm um tipo de união na alma do mundo. Por mais que isso pareça ser uma negação da imortalidade pessoal, Plotino insiste que cada alma humana é real e imortal. [...] Ele crê também na imortalidade da alma das plantas e dos animais. É fácil chegar a um ponto em que se pense que o melhor caminho para se introduzir rigor na posição madura de Plotino em relação à imortalidade é manter que todas as almas de plantas e de animais perderiam sua identidade para se tornar parte da alma do mundo. Se esse for o destino de baratas e tomates, a consistência requer que se creia que o mesmo acontece com Sócrates, a despeito do que Plotino diga sobre a imortalidade” (NASH, p. 147).
Plotino defende abertamente a realidade isolada e a imortalidade da alma individual. Mas então ele fala da união com a alma do mundo, e fala também da imortalidade das almas das plantas e animais. E, sua posição madura parece dizer que a alma das plantas e animais perderiam sua identidade ao ascenderem e serem absorvidas na alma do mundo. É difícil como não concluir que o mesmo se dê com as almas humanas, ou seja, elas também, no processo de ascensão, iriam unir-se à alma do mundo e perder sua identidade.
A MATÉRIA
Chegamos à última hipostáse. Aqui, como é de praxe com Plotino, há uma miríade de controversias e dificuldades. Ronald Nash explana de forma sucinta, para que possamos nos extender: “Abaixo dos nívels de Deus (o Um), da mente (nous) e da alma, existe no universo um grande número de corpos ou entidades físicas. E, logo abaixo deles, se oculta a matéria primária que encontramos no sistema de Aristóteles. Em uma maneira difícil de entender, o nível do corpo flui do nível da alma” (NASH, p. 136). Portanto, aqui, temos uma divisão, uma dupla de subsistência da realidade, ou seja, a última hipostáse é composta do mundo sensível e da matéria. Nash já antecipa outra dificuldade: como a alma emana a matéria é algo muito obscuro, diríamos até mesmo que misterioso.
Antes de tecer mais detalhes sobre esse nível ontológico, vamos nos lembrar qual a dinâmica metafísica de Plotino, e, para isso, evoquemos a Jostein Gaarder: “Plotino via o mundo como algo distendido entre dois polos. Numa extremidade estava a luz divina, que ele chamava de o Uno. Às vezes ele também a chamava de Deus. Na outra extremidade reinavam trevas absolutas, que não eram banhadas pela luz do Uno. Mas Plotino achava que essas trevas de fato não tinham uma existência concreta. Para ele, elas nada mais eram do que a ausência de luz. Ou seja, as trevas não são. A única coisa que existe para ele é Deus, ou o Uno. [...] a luz do Uno ilumina a alma, ao passo que a matéria são as trevas, que não possuem uma existência real. Mas as formas da natureza também possuem, segundo ele, um tênue reflexo do Uno” (GAARDER, p. 152). Acreditamos que Gaarder esteja equivocado num ponto. Ele entende que as formas, ou seja, a realidade como se apresenta a nós, são o último bastião de realidade, e que a matéria primária não é nada, é não-ens, um 'não-ser'. Entretanto, já aprendemos com Parmênides que o não ser não pode nem mesmo ser concebido*, quanto mais ter qualquer propriedade. Por isso, acreditamos que é mais feliz colocar a questão assim: “Plotino explica a presença da matéria no universo de modo singular. Trevas totais (ausência de luz) é a matéria primária. Conquanto a matéria seja um fator importante na existência do mundo físico, em seu estado mais distante do Um, ela acaba sendo a plataforma inferior do universo. [...] Somente a luz existe; o não-ser é escuridão. [...] Quanto mais alguém se aproxima de Deus, mais concentrado é o seu ser (luz). Quanto mais alguém se afasta de Deus, mais difuso é o seu ser (luz). [...] Quanto mais distante alguma coisa existente estiver de sua fonte, o Um, mais próxima estará de não-ser (trevas). [...] entre a luz mais fraca e as trevas – chegamos à matéria primária. No nível mais baixo da realidade está a matéria primária, a qual paira na beira do nada” (NASH, p. 143-144). Ou seja, o limiar, o extremo limite entre o ser e o não ser, aquilo que quase desaparece no crepúsculo do 'ens', é a matéria. Ela existe, embora quase não exista. E essa privação de existência é, justamente, a privação do bem. Nível ontológico e benignidade, pois, estão intimamente relacionados.
Vamos ampliar. Há mais distinções a serem feitas, e Linguiti, aqui, nos guiará: “Além disso, o dinamismo intelectual constitui a essência das ideias e, por conseguinte, de toda a realidade, que é uma cópia das ideias. No entanto, o mundo sensível não é a primeira cópia do mundo inteligível, visto que Plotino, pela utilização repetida da relação platônica de modelo/imagem e pela exploração exagerada de algumas indicações contidas no Timeu, multiplica os níveis das entidades ideais; as ideias que se encontram na Alma, chamadas também de logois (princípios racionais) primários, são, de acordo com ele, imagens esvaziadas das ideias que se encontram no Ser-Intelecto, enquanto que os ‘traços’ das ideias que se encontram na natureza ou logoi secundários, são imagens esvaziadas das ideais que residem na alma. Resulta disso que os logoi, que finalmente dão forma aos compostos sensíveis, não são outra coisa senão cópias de cópias de ideais” (PRADEAU, p. 108). Linguiti está ensinando que, naquele processo já estudado de derivação, as almas contemplam as ideias do Ser-Intelecto e, por sua vez, retém dentro de si cópias dessas ideias. Por sua vez, essas ideias são copiadas na criação da natureza. Portanto, o que temos no mundo sensível é uma cópia da cópia. Embora Platão seja retratado como acreditando em basicamente duas instâncias ontológicas: mundo sensível e mundo das ideias, Plotino amplia muito os níveis da realidade, embora pareça estar seguindo as indicações do Timeu, ampliando-as, desenvolvendo-as.
Linguiti continua: “O tema da matéria presente com muitos aspectos é objeto de discussões. Parece, no entanto, que, para Plotino, a matéria não é engendrada senão uma única vez e para a eternidade (no sentido de que ela está fora do tempo) pela Natureza, ou ainda pela parte inferior da Alma. Plotino descreve muito frequentemente a matéria como um puro não ser caracterizado pela privação, pela esterilidade e pela ausência total de vida. Resulta dessas premissas o seguinte: dizer que as formas ideais ou logoi se encontram na matéria é inadequado, já que esta última não é mais também um substrato capaz de acolhê-las; os logoi não fazem parte da matéria senão na aparência, visto que eles se unem a ela sem modificá-la, nem determiná-la de qualquer maneira que seja: a matéria não é, no melhor dos casos, senão uma espécie de espelho inerte, no qual as formas produzem um reflexo aparente (ou seja, ele não reproduz fielmente os traços do princípio formal), incoerente e fugaz” (PRADEAU, p. 109). Uma única engendrada da parte inferior da alma dá à luz as trevas, i. é., faz surgir a matéria. Portanto, enquanto as demais realidade são constantemente pensadas pelas próprias ideias e pela alma, a matéria não. Entretanto, isso se deu fora do tempo, e a linguagem aqui torna-se delicadamente simbolica. É como se Plotino quisesse dizer que há uma relação diferenciada entre a alma e o mundo inferior, sensível. E Linguiti expande essa relação. As logoi (primeiras cópias) não podem residir na matéria primária. Seria uma 'corrupção ontológica'. A matéria não pode acolher as ideias, pois é uma realidade tão medíocre que não tem essa propriedade. As ideias unem-se à matéria sem modificá-la. Como? O que vemos é apenas aparência, e não as ideias em si, e na matéria, temos, na melhor das hipóteses, um espelho para as ideias, refletindo-as como um espelho embaçado.
Temos de prosseguir para encarar os problemas e implicações mais pesados do sistema. Um resumo do que foi dito seria que a parte inferior do mundo psíquico, o nível ontológico imediatamente inferior, de alguma forma misteriosa gera o mundo mais basilar, o mundo sensível. Na verdade, cria-se a matéria e reflete-se as ideias copiadas do mundo da mente (nous). A matéria é o último alcance das luzes do Uno, mas ali a luz é muito fraca, e mistura-se à escuridão.
Ronald Nash então nos apresenta a problemática da vez: "ele se torna, algumas vezes, perigosamente próximo da teoria gnóstica de que a matéria aprisiona a alma... e de um sistema completamente dualista. Em tal visão, a matéria se torna o princípio do mal. Seria preciso demonstrar como qualquer movimento na direção do dualismo apresenta sérias incoerência para o sistema de Plotino, tornando-o gnóstico (movimento a que ele opõe, explicitamente) e fazendo de relato sobre o Um uma retórica vazia? Filósofos que representam o movimento conhecido como medioplatonismo têm arguido se a matéria primárias contribuiria ativamente para a existência do mal ou se ela seria uma entidade sem forma e neutra em relação ao mal. Plotino, de maneira inconsistente, ladeia ambas as posições" (NASH, p. 146). Nash faz observações pesadas aqui. Se todas as emanações são necessidades metafísicas, e a matéria prima acaba sendo igualmente necessária, então temos um dualismo metafísico. Bem e mal coexistem eternamente. Isso se aproxima do maniqueísmo, e Plotino tinha horror a esta posição. Por outro lado, quando se fala da queda da alma, e sua sequente subordinação ao corpo, então estamos bem próximos ao gnostismo (que não deixa de ser platonista). Tal posição também está longe de cair nas graças do filósofo.
Linguiti observa que há um paradoxo nas posições de Plotino. “Tratando-se do mundo sensível, resultado da interação entre a matéria e os princípios ideais, o pensamento de Plotino varia muitas vezes. Opondo-se às doutrinas de tipo gnóstico que condenam absolutamente a corporeidade e imputam a um Demiurgo mau a criação do mundo sensível, Plotino reafirma com vigor a bondade do mundo sensível e sua origem divina e perfeita. De acordo com esta concepção, a beleza e a harmonia do cosmos visível refletem justamente a beleza e a harmonia do mundo inteligível” (PRADEAU, p.). Plotino não quer dizer que o mundo sensível é mau. Essa doutrina, que credita a origem do mal à criação do mundo sensível por um Demiurgo mal, e faz da corporeidade algo condenável é reprovada insistentemente por Plotino. Para ele, a beleza e harmonia do mundo sensível refletem o mundo inteligível, e credita sua criação às fontes divinas. Não existe um mal coeterno que existe em si, per si. Tudo que existe deve sua existência ao Uno e o mundo sensível reflete as perfeições emanadas dele mesmo.
Quanto ao mal? Teoria que Agostinho iria seguir e 'cristianizar', o neoplatonismo segue assim:“sérias tensões e aparentes inconsistências ocorrem no tratamento de Plotino quanto ao mal. Ele leva certas implicações de usa teoria da emanação até as últimas conclusões. [...] ele sugere que deveríamos pensar acerca do mal em termos da ausência do bem, assim como as trevas são a ausência de luz” (NASH, p. 145). Iremos nos valer desse ponto para a resoução do paradoxo. Primeiro, demonstremos a proposta oposta.
“Quando, ao contrário, Plotino aborda as concepções aristotélicas ou materialistas, que negam a existência de uma esfera inteligível à parte e valorizam a experiência do prazer no sentido comum do termo, ele sublinha que o mundo dos corpos naturais é somente um pálido reflexo deformado das causas incorpóreas verdadeiras, tendentes a enganar o conhecimento e a perverter a moral” (PRADEAU, p. 110). Vejam bem, num determinado momento ele está falando que o mundo sensível é ótimo, maravilhoso e de origem divina. Noutra ocasião, diz ser ele enganoso e perversor. Num determinado momento, apresenta-se como monista, mas em outro, ao dizer que há bem e mal, parece um dualista. Como resolver toda essa confusão?
Mais adiante, Ronald Nash elabora as seguintes palavras: “Ele [Plotino] defendeu sua visão de que o bem está ligado à forma; porque a matéria primária, então, é desprovida de forma, a ausência de forma, nesse caso, parece liga-la ao mal. Isso parece forçar Plotino na direção de um tipo de dualismo no qual o bem e o mal existem em confronto como princípios co-eternos e co-iguais. [...] Tentando evitar qualquer espécie de dualismo, Plotino rejeita a crença de que a matéria exista em si mesma [...] O mal encontrado na matéria não é uma força positiva, como as trevas do mal do maniqueísmo. Ele é uma ausência de ser que passa suas deficiências para os corpos que não poderiam existir de outra maneira. Assim, a matéria primária se torna a razão para todas as imperfeições do mundo físico. É responsável também pela falha moral de almas humanas particulares” (NASH, p.146). Há dois argumentos aqui. Num, retornamos àquela questão de o mal ser apenas um parasita. Ele não existe de fato. A ausência de ser é que resulta em perfeição. As lacunas, os 'gaps' de ser são onde identificamos o mal. Interessante o novo argumento que Nash nos informa: a associação entre 'forma' é 'benignidade' de modo que, até o mundo sensível, acima da matéria prima bruta, tenhamos a bondade e a beleza como reflexos do mundo superior. Mas a matéria em si, onde se reflete os logoi primários (as ideias no mundo psíquico), contém pouca luz e, portanto, alguma quantidade de trevas e, por isso, o mal.
Linguiti acaba de desemaranhar a situação: “O papel da matéria e da corporeidade, do ponto de vista ético, é examinado principalmente no tratado [....] no qual Plotino julga que é na matéria que o mal primário, a origem de todo mal da alma, encontra lugar, ao mesmo tempo em que confirma a tese de que a matéria deriva de princípios superiores. Assim, de um lado, Plotino permanece fiel à teses monista que exclui a existência de um princípio negativo oposto, dede a origem, aos princípios supremos e, de outro, ele não hesita em sustentar a existência de um dualismo dos valores, de acordo com o qual a matéria é o princípio do mal moral, capaz de levar a alma humana para o que é inferior e negativo” (PRADEAU, p. 110). Portanto, Plotino está dizendo que, do ponto de vista moral, ético, há um dualismo, onde o mal reside na extremidade oposta do Uno. Mas metafisicamente ainda considera a matéria como derivada, em última instância, do próprio Uno, bem como toda realidade. Aqui, pelo menos, Plotino escapou.
O HOMEM
Como uma cosmovisão, claro, Plotino precisava falar algo mais sobre o homem. E ele o diferencia das demais realidades materiais. E é óbvio, também, que Plotino não elaboraria doutrinas fáceis aqui. Primeiramente, Gaarder observa que Plotino segue uma tradição antiga quanto à concepção sobre o homem: “o homem era uma criatura dual [...] Muito antes de Platão essa noção já era bastante difundida na Grécia. Além dela, Plotino conheciam também concepções asiáticas semelhantes” (GAARDER, p. 152). Em suma, o homem é parte material, corpórea e parte 'espiritual', 'imaterial.
Até aqui, tudo bem. Nenhuma dificuldade. Entretanto, a coisa complica quando formos ampliar o que Nash sintetiza nestas palavras: “os humanos participam dos níveis da mente, da alma e do corpo” (NASH, p. 136).
Ao que nos parece, segundo as exposições de Nash e Linguiti, o homem tem suas propriedades racionais por possuir uma mente, ou seja, sua alma é uma ideia original, que habita o mundo da mente (nous); mas também possui uma alma derivada da alma cósmica, proveniente do mundo psíquico. O que o diferencia do homem dos demais seres vivos, que também possuem alma, é justamente ele ter uma 'mente', ou seja, participa do 'nous'.
Quando falamos sobre a participação do homem no mundo da mente, no 'nous', temos o seguinte: “ Plotino distinguiu, pelo menos, dois níveis da mente, o superior e o inferior. Poderemos simplificar as coisas se virmos o nível superior da mente como a mente de Deus que contém as formas de Platão. Ainda que possamos pensar a respeito do nível de nous como a mente ou pensamentos de Deus, ela continua sendo distinta do Um. [...] Cada particular inteligência no mundo é uma extensão do nous cósmico. Há conexão ontológica entre a mente de particulares criaturas e a mente de Deus (nous). [...] Isso deu a Plotino uma resposta à questão de Platão sobre como a mente humana conhece as formas eternas. Os humanos conhecem as formas porque suas próprias mentes são extensões do nous cósmico, que é a habitação natural das formas” (NASH, p. 140). Plotino acreditava que o homem possui uma inteligência superior e uma inferior. Na superior, ele é uma extensão da nous cósmica. Não é a mente de Deus, mas é onde habitam as formas propriamente ditas, as ideias originais, que nasceram da contemplação do Ser-Inteligência ao Uno. É assim que Plotino respondeu a como o homem conhece às ideias: sua mente é parte do nous.
Aos nos lembrarmos de que no nível noético (nous) temos ideias que são entidades conceituais e também pensantes, ali encontraremos uma delas que é a própria alma humana! “Como uma espécie de ideia entre as ideias, esta parte da alma goza assim com a forma de pensamento própria da segunda hipóstase, ou seja, com a compreensão total e imediata das partes e do todo. Trata-se, assim, de uma intuição intelectual (noesis) que capta intemporalmente todos os inteligíveis em suas relações recíprocas, colocando-se assim acima do pensamento racional (dianoia), no sentido habitual destas palavras, onde o raciocínio se desenvolve no tempo e onde os conteúdos conceituais não estabelecem entre si senão relações parciais” (PRADEAU, p.). A importância desse conceito também é explorada por Linguiti: “Para Plotino, se é possível conhecer bem as realidade inteligíveis, é porque não é próprio da totalidade da alma humana decadente se encarnar no sensível de fato, uma parte permanece sempre no mundo das ideais, ao contrário do que pensam todos os outros intérpretes de Platão” (PRADEAU, p.). Eis, pois, algo inovador em Plotino. Com seu sistema ele garantiu um modo de explicar como o homem pode conhecer as formas.
E, ao falar de epistemologia é pertinente que mencionemos brevemente o que Nash observa: “A sensação depende do trabalho da alma imortal e imaterial em harmonia com o corpo” (NASH, p. 142). As sensações são um trabalho conjunto entre o corpo e a alma imortal e imaterial, onde temos a recepção e a intelecção. Aqui, provavelmente, Plotino segue a Platão em sua epistemologia.
A alma humana, segundo Linguiti, vive no mundo noético como uma ideia entre as demais ideias, e, por isso, tem intelecção imediata de todas as demais ideias. Com tal compreensão das demais realidades ideais, ela é praticamente 'onisciente', ou seja, sabe de todas as coisas, e isso está acima da capacidade racional, que desenvolve o pensamento no tempo e onde os conceitos não conseguem ser compreendidos completamente, ralacionando perfeitamente todas as ideias.
Agora, é intrigante pensar porque aquelas almas estão ali no mundo noético e não no psíquico. Ficou uma situação confusa, estranha. Seriam um tipo singular de ideia, como todas as demais têm suas características singulares?
Mas, enquanto tem o homem participação no mundo noético, há também uma participação no mundo psíquico: “As almas humanas existem no nível médio da alma, juntamente com todas as almas particulares existentes no universo. [...] Embora rejeite também o tipo de reencarnação apresentado por Platão em Fédon, Plotino ensina que as almas humanas são imortais e existem antes de suas incorporações neste mundo” (NASH, p. 142). As almas humanas habitam o mundo psíquico, e estão entre as demais almas particulares do mundo. Plotino diz que, antes de se encarnarem, já existem, e que após isso voltam e permanecem para sempre no mundo cósmico. Ou seja, com isso, Plotino está negando a doutrina platonista da reencarnação.
Mas é o próprio Ronald Nash que complica nossa compreensão nas seguintes palavras: “As almas dos particulares seres humanos que emanam da alma do mundo contêm elementos superiores e inferiores. A alma humana superior tem sua habitação no mundo cósmico ou nous. A alma humana inferior está em contato com o corpo. As almas humanas existem antes de sua união com o corpo. O elo entre a alma preexistente e seu corpo é descrito em termos de uma queda. Assim como preexiste em relação ao corpo, a alma continua a existir após a morte física; parece que a alma não tem memória de sua encarnação” (NASH, p. 142). Então, quer dizer que não é um elemento à parte do homem, como um espírito no tricotomismo, que participa do 'nous'. É uma parte superior da alma que habita o nous, enquanto uma 'parte' inferior está em contato com o corpo. Nesse sentido, a alma humana estaria num tipo de relação diferenciada com o mundo noético? As outras almas, e até mesmo a alma cósmica, são produtos daquele mundo, mas a alma humana, que é parte da alma cósmica, lhe supera e parece vir diretamente do mundo superior ao mundo psíquico.
É interessante observar que as almas existiam antes de se encarnarem, e ao fazerem, perdem a memória a respeito do seu 'passado'. Será que, com isso, ele está dando abertura à reminiscência como meio epistemológico mais avançado?
Complicado? Então aguarde para ver como ele desenvolve o assunto. “A defesa de Plotino da divindade da alma depende de seu argumento de que, a despeito da união da alma com o corpo, a alma humana jamais está verdadeiramente separada da alma do mundo. A insolúvel união da alma humana cósmica permite a Plotino crer que a nossa alma eterna vagueie pelas regiões celestiais e ajude a governar o universo. Consequentemente, a união da alma com um corpo físico não é uma instância do mal. A alma é sempre superior a um corpo (inferior). [...] Durante a encarnação em um corpo, a alma deixa de permanecer inteiramente no âmbito celestial” (NASH, p. 143). Embora haja a encarnação, a alma não se despreende totalmente do mundo superior, psíquico. Elas permanecem ali, governando o cosmos, pariando sobre a realidade material. Ela permanece parte da alma cósmica!
Portanto, parte do homem habita o mundo das ideias, e tem intelecção completa sobre todas as demais que, por sua vez, derivam as demais realidades. Parte do homem continua ligada à alma cósmica, no nível psíquico, e 'rege' o mundo juntamente com ela. Parte do homem é sua alma encaranam em um corpo.
Linguiti faz uma afirmação que pode confundir nossa interpretação de Plotino: “O ser humano, enquanto corpo governado por uma alma, é por uma alma provida de funções superiores (racionais e intelectuais) ou inferiores (sensitivas e vegetativas), é verdadeiramente e o ponto de encontro dos dois ‘mundo’ tradicionais de Platão: o inteligível e o sensível” (PRADEAU, p. 109). Pois bem, para 'salvar os fenômenos', ou seja, para encaixar o que foi dito aqui no que vimos, é bom entendermos que se trata de uma parte da 'alma' humana habitar o mundo das ideias (nous); e uma parte habitar o mundo material. Claro, uma parte do homem está habitando o mundo psíquico também, um tanto quanto 'acoplado', 'unido' à alma cósmica. Confuso, não?
Plotino ainda encontra espaço para discutir a controvertida questão de a alma ser extensa ou não: “De fato, como –se interroga Platão – um princípio que governa e anima a totalidade do mundo sensível pode não implicar a extensão? Como o princípio psíquico pode residir nas várias partes complexas do corpo, sem ser por sua vez dividida em partes? Uma resposta possível é que a alma está presente em sua totalidade em cada parte do corpo animado; outra resposta é que não é a alma que está no corpo, mas o corpo que está na alma, da mesma maneira como um corpo claro e quente está na luz e no calor" (PRADEAU, p. 109). Linguiti, entretanto, não nos informa qual desses argumentos é usado e/ou preferido por Plotino.
Há ainda um último fator que não pode ser descartado, a saber, a questão da individualidade. Aristóteles entendia que a matéria era a base última da individuação, ou seja, da diferenciação entre as coisas do mesmo gênero, tipo. Mas Plotino não parece seguir tal pensamento, não, pelo menos, em relação ao homem: “Plotino afirmou a existência de formas de indivíduos humanos e de outras formas de vida. [...] Para Plotino, não é a matéria que assegura a individualidade humana, mas sim o tipo singular de forma que as almas imortais possuem” (NASH, p. 142). Ou seja, as almas individuais carregam a forma que é apenas refletida na matéria.
O MISTICISMO GNÓSTICO DO NEOPLATONISMO
Já se observou que Plotino tinha declarado intuito de afrontar o cristianismo. E, desde que tal pensamento judaico se expalhara pelo mundo afora, o tema 'salvação' não podia ser ignorado. Ele trazia, consigo, temáticas éticas e existenciais, e Plotino as desenvolve sobre esse prisma. Estamos falando da ascese da alma, e aqui, mais do que nunca, as influencias orientais no pensamento de Plotino se mostram gritantes.
Podemos começar com Gaarder e a afirmação genérica de que: "o ponto mais próximo em que nos encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma. Só lá é que podemos nos re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns momentos podemos sentir que somos, nós mesmos, este mistério divino” (GAARDER, p. 153). É na introspecção que encontramos a 'Deus', ensina Gaarder. Mas isso é muito simplista, e não corresponde exatamente ao ensino de Plotino.
Já vimos, em Platão, o que ele considera uma ascese da alma. O caminho da filosofia faz com que, finalmente, nos desvencilhemos do mundo sensível e devotemos nossa alma à contemplação das formas, das ideias e, por fim, do bem. Plotino considera esse trabalho muito importante. Mas ainda não é a experiência mística em si. Há um passo adiante. Linguiti se expressa da seguinte maneira: "Mas a intuição perfeita do mundo inteligível não constitui o cúmulo da ascese espiritual, que não se realiza plenamente senão quando a alma se une o Um, numa experiência mística na qual os limites do indivíduo tendem a se anular e o objeto e o sujeito tendem a coincidir. [...] Plotino, ainda que permaneça consciente da incomunicabilidade fundamental da experiência mística, fala disso frequentemente, empregando expressões e palavras altamente sugestivas, como se a alma se revelasse a si mesma, se identificasse com o divino, tivesse uma pura visão da luz, - que é Deus – num sujeito humano tornado si mesmo luz” (PRADEAU, p.110-111). Gaarder é, também, elucidativo. Para ele, a experiência mística consiste em "sentir-se um só com Deus ou com a ‘alma do universo’. Em muitas religiões, diz-se que há um abismo entre Deus e sua criação. O místico, porém, não conhece este abismo. [...] Trata-se do seguinte: aquilo que geralmente chamamos de ‘eu’ não é nosso eu verdadeiro. Em poucos e efêmeros momentos podemos experimentar a sensação de nos identificarmos com um eu muito maior. Alguns místicos chamam este eu maior de Deus, outros de ‘espírito cósmico’, outros de ‘natureza cósmica’, outros ainda de ‘universo’. Nessa identificação, nessa fusão, o místico experimenta a sensação de ‘perder-se a si mesmo’ [...] como uma gota d’água ‘se perde’ quando se mistura à água do mar" (GAARDER, p. 153-154?). Ela consiste na percepção de que o 'eu' é ilusório e, de súbito, experimentamos a sensação de identificarmo-nos com um 'eu maior', com o único eu, com o todo, com o cosmos, Deus. Está acima da racionalidade, para além das concepções cognitivas. “Em sua forma final, a salvação não é uma questão de o que a pessoa conhece; ela ocorre, antes, na forma de um transe místico. A mente do pensador humano é absorvida rápida, inconsciente e inexoravelmente pelo Um. Durante esse transe místico, as pessoas perdem toda consciência do corpo. [...] Depois que acaba o transe, a pessoa não pode relatar nenhuma informação sobre a experiência. Contudo, não deveríamos nos preocupar quando somos convidados para dar um salto cego nos braços de uma divindade desconhecida? Como saber ao certo que a entidade que nos ampara é mesmo o bem, e não um ser mau e sinistro?” (NASH, p. 148).
Nessa amálgama de citações colhemos, já, alguma críticas que devem ser consideradas. Percebamos que Plotino considera a experiência mística algo que transcende nossas capacidades cognitivas. É, pois, uma experiência inefável. Entretanto, observa Linguiti, ele não para de falar dela, e de lhe atribuir predicações. É muito inteligível dizer que se sente parte do cosmos, em união com ele, visto que se percebe emanação do Uno e compreende-se dentro de um espectro monista. Plotino comete o mesmo equívoco ao falar do indizível Uno. Além disso, Nash nota que parece uma empreita arriscada se nos lançarmos a tal experiência quando não sabemos nada sobre esse Deus, e nem mesmo se ele nos quer bem. É claro que o neoplatonista poderia, ainda, falar sobre os valores existenciais de tal empreitada. Entretanto, o que Nash observa não deixa de ser intrigante.
Há ainda a objeção de que alguém poderia ficar receoso de perder 'seu eu'. Se perguntássemos a Plotino se valeria a pena, ele diria que sim. Gaarder explica: "o que se perde é infinitamente menos do que aquilo que se ganha. Você se perde nesta forma que você tem agora, mas ao mesmo tempo compreende que você é algo infinitamente maior. Você é o universo inteiro. [...] Você é Deus. Se para isto você tem de perder-se [...], então talvez sirva de consolo o reconhecimento de que um dia você terá de perder este ‘eu cotidiano’, de uma forma ou de outra. Para os místicos, o seu verdadeiro eu, que você só poderá experimentar se conseguir se libertar de si mesma, é o fogo misterioso que queima para toda a eternidade” (GAARDER, p. 154). Ao passo que se perde o próprio eu, ganha-se muito mais. Torna-se tudo! Torna-se Deus! Uma hora ou outra perderemos esse 'eu cotidiano', e nada melhor do que fazê-lo agora, nos libertando da ilusão e abrançando o cosmos. Essa é a doutrina da salvação de Plotino.
Ok, sabemos que a reflexão filosófica como ditada por Platão não é o patamar final da ascese psíquica. Plotino ainda vai ensinar que a experiência mística acontece expontaneamente. Sendo assim, a vida contemplativa é inútil? Não há nada que o homem possa fazer para 'se salvar'? “Só que tal experiência mística nem sempre ocorre espontaneamente. Com frequência, o místico tem de percorrer ‘o caminho da purificação e da iluminação’, a fim de poder se encontrar com Deus. Este caminho consiste na meditação e numa vida extremamente simples. Ao fim da jornada, porém, o mítico chega a seu objetivo e pode dizer: ‘Eu sou Deus! Eu sou Você!” (GAARDER, p. 154). O problema em Gaarder é que ele concebe que o místico pode, por seus esforços, alcançar tal experiência. Não é o caso. Entretanto ele já traz à tona um assunto muito relevante. A saber, que a ascese espiritual consiste em meditação e ascetismo. É nesse sentido que Nash se expressa da seguinte forma: “Contudo, há também uma ascensão quando a alma se liberta da dominação do corpo e encontra seu caminho de retorno ao seu ambiente natural, o âmbito de Deus e da verdade eterna” (NASH, p. 135). Aqui já começamos a vislubrar melhor o conceito. A parte 'baixa' da alma, em contato com a matéria, com o corpo, deve se libertar e, pois, a maneira mais adequada é justamente a negação do próprio corpo e a elevação de nossos pensamentos às coisas do mundo inteligível: “Conforme o curso ascendente da salvação, a obtenção humana de conhecimento, virtude e salvação requer que encontremos uma maneira de conseguir livramento da dominação do corpo e de adquirir unidade com o Um. Enquanto os humanos estiverem preocupados com seus corpos e sensações, suas almas permanecerão acorrentadas e soterradas, como os prisioneiros na caverna de Platão” (NASH, p. 137).
E é aqui que a filosofia de Plotino ganha ares religiosos, conforme prossegue, um pouco mais adiante, Ronald Nash: “O neoplatonismo é tanto uma filosofia quanto uma religião. Corresponde ao curso descendente do ser, está o curso ascendente, de Plotino, para a salvação. O objetivo final dos seres humanos deveria ser o Um, mas, a fim de obter essa união, a alma teria de se mover para cima; teria de se livrar da escravidão ao corpo, ao prazer e à sensação. [...] Enquanto os humanos estiverem preocupados com seus corpos e sensações, suas almas estarão acorrentadas e soterradas, tal como os prisioneiros da caverna de Platão. Os humanos que realmente anseiam pela união dom o Um, podem, no máximo, chegar à beira [da caverna]. Raramente, em momentos inesperados, este ou aquele humano, de repente, experimenta uma visão mística do Um” (NASH, p. 144). Salientamos, pois, que o ascetismo é o canal para a negação do mundo material e, portanto, a via de ascensão da alma. Podemos, por esse meio, 'chegar quase lá', mas ainda não é a contemplação do Uno. É a ascensão platonista. A contemplação do Uno acontece em momentos inesperados, de súbito, sem razão aparente. Entretanto, essa vida abnegada (provavelmente aprendida no oriente) é colocar-se 'à porta da caverna', ou seja, à mercê do Uno, em situação favorável.
Estranha-nos que Plotino não tenha desenvolvido nenhuma explicação para essa experiência mística. Por que, pois, acontecem as experiências? Por que não acontecem? Quais as causas?
Não podemos encerrar essa seção sem tocar numa questão. Gaarder começa nos informano que “em alguns poucos momentos de sua vida Plotino experimentou a sensação de fundir sua alma com Deus” (GAARDER, p. 153). O próprio Plotino, pois, não era alguém que vivia em transe o tempo todo. Mas, como observamos, é bem possível que tal doutrina tenha sido aprendida junto às filosofias orientais (e o próprio monismo metafísico parece-nos oriunde de lá) e, por isso, faz sentido a afirmação de Gaarder:
“Plotino não foi o único a viver tal experiência. Pessoas de todas as culturas, em todos os tempos têm relatado experiências semelhantes" (GAARDER, p. 153). Jostein Gaarder reconhece que essa experiência mística é algo transcultural. Várias culturas e religiões, com roupagens diferentes, relatam-na, defendem-na e ensinam-na: “Encontramos vertentes místicas em todas as grandes religiões do mundo. E tudo o que os místicos escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis semelhanças, a despeito de todas as diferenças culturais. Somente quando o místico tenta uma interpretação religiosa ou filosófica para sua experiência mística é que se evidencia o pano de fundo cultural” (GAARDER, p. 155). Claro, esse não é o ensinamento de Plotino, conforme nos esclarece Linguiti: “Plotino experimentava desconfiança em relação às práticas mágico-rituais e as formas de religiosidade supersticiosa; para ele, é essencial a vida filosófica que permite se emancipar do corporal, pois para ela convergem a disciplina moral e a disciplina intelectual. É preciso superar as formas primeiras do conhecimento ligadas à percepção sensível para reunir aquelas que são mais racionais, suscetíveis de nos conduzir à visão das ideias.” (PRADEAU, p.). Embora Gaarder tenha feito a clássica asseveração pluralista de que as doutrinas são limitações, e que há um ponto de convergência, Plotino não estava tão interessado nesse discurso politicamente correto. Para ele não era interessante os rituais mágicos e superstições. Ele entendia que o caminho mais adequado para a ascensão estava na disciplina filosófica e moral, e não em qualquer ofício religioso per si.
ÉTICA
Jostein Gaarder ainda acha espaço para discutir a ética, propriamente dita, do panteísmo, o que se encaixa aqui. “A experiência mística também pode ser de importância para a ética. Um antigo presidente indiano, Radhakrishan, disse certa vez: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo, pois tu és o teu próximo. É ilusão acreditar que teu próximo é outro, e não tu’” (GAARDER, p. 155). Entretanto, A. A. Hodge, comentando uma determinada variante do panteísmo, também nota que "se tal é o caso, então se faz evidente que Deus é o único agente real no universo; que ele é a causa imediata de todas as coisas; inclusive de todas as paixões más e pensamentos e atos perversos; que a consciência é uma completa ilusão, e alivre agência e responsabilidade moral do homem, vãs imaginações" (HODGE, p. 133). Isso mesmo. Aliás, a consciência seria um fenômeno ilusório do próprio Deus, e nos perguntaríamos porque há uma necessidade metafísica de que isso aconteça. No panteísmo neoplotino (quiçá em todos) é difícil como não conceber todo evento como uma ação necessária, e a própria individualidade e responsabilidade moral como mera ilusão. Tudo é ação do próprio uno, uma demanda metafísica. As coisas são, e ponto final*.
Não pudemos deixar de fazer algumas críticas óbvias no
decorrer do texto. Plotino é gritantemente incoerente. É criativo e será
explorado por outros filósofos, bons e ruins. Mas seu sistema é uma especulação
todo furada. Mais uma vez, Nash é nossa principal fonte de críticas a Plotino.
Bom, comecemos o topo do sistema, do Um. Gordon Clark nota
com propriedade: “Se o supremo princípio é o puro Um, como pode a
multiplicidade ser inteligível? Ilustrações de espelhos e de luzes não são
suficientes. Se houvesse multiplicidade e distinções no Um, até mesmo
virtualmente, este não poderia ser unidade pura; mas, se não houver
multiplicidade no Um, como essa multiplicidade pode ser dele derivada?” (CLARK
apud NASH, p. 148). Claro, do nada, temos o ‘Ser-Intelecto’ voltando-se para o
Um, contemplando-o e enchendo-se de ideias. Essa é uma descrição. Mas não há
qualquer boa razão para as coisas serem assim. E, pior, a multiplicidade surge
do nada, de forma completamente arbitrária. Ou, nas palavras do próprio Nash:
“Plotino multiplica desnecessariamente o número de entidade em seu sistema”
(NASH, p. 148).
Certa feita fomos inquiridos por um fã de Karl Barth sobre o
porquê não gostávamos de seu ídolo. Dentre os vários motivos, estava uma
crítica que é feita a Plotino. Primeiro, entendamos o que Barth pensa sobre
Deus: “O motivo fundamental desse agnosticismo em relação ao conhecimento
humano sobre Deus parece ser o compromisso firme de Barth com a tese de que
Deus é ‘totalmente outro’ e por isso transcende todas as categorias humanas de
pensamento e lógica. [...] De acordo com Barthe, Deus é tão transcendente que
não há nenhuma analogia entre ele e a criatura. [...] Deus permanece
incompreensível, e as declarações que fazemos sobre ele são
incompreensivelmente verdadeiras” (CRAIG, p. 24). Craig cita Barth para não
termos dúvida de que é mesmo sua posição: “Ele [Deus] nos encontra como aquele
que está oculto, aquele a respeito do qual temos de admitir que não sabemos o
que estamos dizendo quando tentamos dizer quem ele é” (BARTH apud CRAIG, p.
24)*. Vimos que isso está muito próximo (senão idêntico) ao que Plotino afirma
sobre Deus. Ambos concebem-no como um ‘totalmente outro’, ou ‘acima do ser’. É
aquele do qual não podemos discursar. Qual o problema com isso? Ronald Nash,
mui sagaz, arremata: “O próprio Plotino sabia algumas coisas sobre esse deus
inconcebível. Considere a seguinte citação de Plotino: ‘Tendo gerado todas as
coisas, o Um não pode ser nenhuma delas – nem coisa, nem qualidade, nem
quantidade, nem inteligência, nem alma’. Como poderia alguém saber o que Deus
não é sem saberem primeiro o que Deus é? Primeiro, Plotino sabia que seus deus
inconcebível existia. Esta é uma informação importante. Segundo, ele sabia que
seu Deus inconcebível era inconcebível. Tal declaração tem toda aparência de
uma firmação lógica autofrustante. Terceiro, Plotino sabia que havia um deus,
não dois, vinte ou milhares, como era o caso de algumas religiões das quais
tinha conhecimento. Outra coisa que Plotino parecia saber sobre seu Deus
não-conhecível é que este era imaterial e mental. Plotino saiba também que o Um
não era uma mente, nada que desse surgimento à mente (nous)” (NASH, p. 138). O
problema é que esses postulados estão recheados de informações sobre Deus.
Plotino sabia muitas coisas sobre Deus. O princípio que concebe que Deus está
completamente acima de qualquer conhecimento, acima até mesmo de qualquer
predicação, incorre em ‘atirar no próprio pé’. Não fosse o fato de Plotino
falar o tempo todo de seu Uno, ele seria algo completamente dispensável. Algo
que não tem nem mesmo a propriedade de ser simplesmente não é. Se ele não causa
nem faz nada que podemos conceber ou predicar, é um ‘sujeito’ sem qualquer
atributo. É um sujeito-não-sujeito. É uma completa aberração lógica.
Engendramos, nós mesmo, outra objeção. O argumento sobre a
quebra da unidade no ser pelo simples ato de predicação é um disparate. Diz
respeito ao discurso sobre o ser, e não sobre divisões no ser em si. E, se é
ridículo dizer que não se faz necessariamente fragmentações no ser ao
distinguir seus atributos, é completamente idiota dizer que ao distinguir a
substância (o sujeito) do predicado estamos quebrando a unidade no ser.
Armstrong é convocado por Nash para continuar a inquisição:
“A relação entre o absoluto e os seres relativos e derivados tem de permanecer
sempre misteriosa, porque um termo dela é inacessível ao nosso conhecimento e
porque ela é uma relação singular sobre a qual não podemos formar nenhum
conceito geral. O filósofo sábio se contentará com a observação de que, neste
ponto, há um abismo ou rachadura no ser, e deixará a coisa assim” (ARMSTRONG
apud NASH, p. 148-149). Claro, isso é menos ‘filosófico’ do que a própria
mitologia. É colocar um item mágico no meio da equação e pedir para que
simplesmente aceitemos, como uma superstição, o que está sendo proposto. Não
sabemos como o Um deriva o mundo das ideias. As descrições que temos não nos
respondem muita coisa. Não conhecemos o Um, e, então, não podemos falar muito
bem sobre sua ‘extrapolação ontológica’, ou seja, não sabemos como ele
transborda em seu ser. Estamos à mercê do puro mistério, e nem mesmo a
especulação sonda a partir de uma certa etapa.
Por fim, Nash nota que “parece que a única razão de Plotino
para colocar uma alma cósmica abaixo dos níveis do Um e do nous, a fim de
governar o mundo físico, foi seu compromisso cego com o legado de Platão. As
funções diversas que Plotino atribuiu ao Um, ao nous e à alma poderiam ter sido
atribuídas ao único Deus transcendente” (NASH, p. 149). Ou seja, a ideia
bíblica do Deus transcendente (e imanente) pode desempenhar os papéis do Um, do
nous e da alma cósmica de maneira adequada e coerente. Definitivamente, não
podemos abraçar o neoplatonismo.
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* Impossível não observar a disparidade nas datas. Temos,
claro, como é de praxe, olhar para elas de forma aproximada. Segundo os dados
de Linguiti, ele teria estudado dos 28 aos 40 anos em Alexandria e, só então,
saído para viajar, tendo ficado até 41 ou 42 anos peregrinando, vindo depois a
morar em Antioquia (sabe-se lá por quanto tempo), por fim indo a Roma. Ou a
data do tempo que ele estudou (ou de quando começou) de Linguiti está errada,
ou os demais confundiram as datas de sua chegada a Roma. Por exemplo, Nash diz
que “Por volta de 244, suas viagens o levaram a Roma, onde fundou uma escola de
filosofia” (NASH, p. 134). Mas se foi em 244, ele teria chegado a Roma aos 39
anos! Portanto, contentemo-nos com a informação de que suas viagens ao oriente
foram curtas. De 2 a, digamos, 5 anos no máximo. As influências, claro, ficarão
patentes no decorrer do discurso.
* R. C. Sproul amplia e diz que “esse método da negação
funciona até certo ponto na teologia cristã. Apesar de o cristianismo também
ter um ‘meio de afirmação’, ele emprega a via da negação quando descreve Deus
como infinito (não finito), imutável (não mutável), incriado (não criado), e
assim por diante” (SPROUL, p. 58). É precipuamente em Tomás de Aquino que
iremos ter tal método explorado (e, Sproul, tomista de carteirinha, não poderia
deixar de fazer uma observação dessas).
* Não podemos evitar a dúvida de que, se o ‘Ser-Intelecto’
surge e depois intenta contemplar sua fonte, já temos, antes desse ato, algo
bem presente nessa mente: o desejo de contemplar a fonte, bem como o modo de
fazê-lo e afins. A cosmovisão teria de lidar com uma boa explicação para isso a
fim de ostentar-se como uma cosmovisão coerente e abrangente.
* Estamos falando exatamente do mundo das ideias de Platão,
e esta citação irá tirar qualquer dúvida (se ainda houver): “No sistema de
Plotino, nous é a habitação das ideias eternas (ou formas de Platão). As formas
são pensamentos eternos de Deus. Conquanto não exista multiplicidade ou
diferenciação no nível do Um, existe multiplicidade no nível da mente ou
intelecto. Essa multiplicidade é vista, por exemplo, nas formas de Platão”
(NASH, p. 139-140).
* Para quem ainda não leu, veja o seguinte artigo que elaboramos: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/04/parmenides-e-encrenca-de-sproul.html.
* Numa futura oportunidade dissertaremos em particular sobre os problemas do panteísmo. Por hora, fiquemos com o que já vimos aqui. É bom nos lembrarmos que outros panteístas surgirão no decorrer da história do pensamento. Spinoza e Schopenhauer serão, certamente, trabalhado por nós.
* Antes que algum barthiano venha nos encher, isso se aplica, no pensamento de Barth, até mesmo à revelação por meio de Cristo. Barth tem a experiência cristã como
padrão existencial que nos leva a admitir a Deus e a obedecer a sua Palavra.
Mas é só o que podemos dizer. No mais, “mesmo em sua auto-revelação, Deus
permanece oculto” (CRAIG, p. 24).
CRAIG, William Lane. A veracidade da fé cristã: uma apologética contemporânea. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2004, 309p.
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
HODGE, A. A. Confissão de Fé de Westminster: comentada por A. A. Hodge. Tradução de Valter Graciano Martins. [s.l.]: Os Puritanos, 2 ed., 2008, 600p.
LINGUITI, Plotino _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.