sábado, 30 de agosto de 2014

Sobre filosofia e ser filósofo... (Introdução)

INTRODUÇÃO E RESSALVAS IMPORTANTES

É certo que parece pretencioso o fato de nós, calcando os primeiros passos da formação filosófica, da educação no sentido estrito do termo* (e tomaremos o 'ser filósofo', em parte, como ser 'educado' nesse sentido abordado), sem uma formação acadêmica oficial na área, venhamos a falar sobre o que é a filosofia, o que é ser filósofo e afins. A tarefa torna-se mais audaciosa quando observamos renomados pensadores tupiniquins de nossa época, como o filósofo Francisco Razzo, furtando-se ao título de filósofo, preferindo a alcunha de estudante e professor de filosofia, até que atinja a 'maioridade intelectual'*. Seja como for, podemos nos considerar filósofos ao menos no sentido socrático* (e é esse o sentido complementar que usaremos aqui para ‘filósofo’ - a menos em relação à uma auto-imagem -, o que poderá incluir todo verdadeiro estudante, que não se evade à busca da verdade, como haveremos de explicar), pois estamos mui cientes de nossas limitações intelectuais em vários pontos, em nossa ignorância em outros tantos, e ansiamos por conhecer, por entender, justamente para corresponder à esse anseio pelo conhecimento que, segundo Aristóteles, nos é tão natural*. O que pretendemos com essa série de artigos é externar algumas elucubrações efetuadas por nós e que já trarão alguma luz sobre os temas. É possível que, na medida em que desenvolvamos nossos estudos, venhamos a alterar algumas concepções, o que pretendemos também registrar. De qualquer forma, ainda que alteremos vários pontos, já teremos muito bem definido os assuntos, já teremos começado, e se começa sempre de algum lugar. Feitas essas ressalvas, passemos, pois, ao penoso, porém recompensador, labor.



O ESPÍRITO FILOSÓFICO

Vamos definir filosofia considerando a própria formação do espírito filosófico. Graciliano Ramos, no célebre 'Vidas Secas', nos reporta uma situação cotidiana mui pertinente ao nosso propósito de agora. O livro, em suma, retrata uma família vivendo no sertão, em meio à seca. Descrições triviais sobre a vida dessa família desenvolvem o texto. A família é composta pelo pai, Fabiano; pela mãe, Sinha Vitória; pelo menino mais velho e pelo mais novo. Num dos capítulos, Ramos narra o seguinte e rico evento:

Deu-se aquilo porque Sinha Vitória não conversou um
instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido
falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta,
pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente
a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma
descrição, encolheu os ombros.
O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado
no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata :
deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro
adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado
e bateu palmas - Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e
timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou
à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe: - Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe
um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o
terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à
beira da lagoa vazia. (RAMOS, p. 55-56).

E o que tem isso a ver com filosofia? Tudo! Segundo Mortimer Jerome Adler e Charles Van Doren, o filósofo é aquele que leva em consideração as questões das crianças.
"A criança é um questionador natural. Não é o número de perguntas que ela faz, mas sua natureza que a distingue do adulto. Os adultos não perdem a curiosidade que parece um traço inato do ser humano, mas a qualidade dessa curiosidade vai se deteriorando" (ADLER; VAN DOREN, p. 277).
 Notem que o menino mais velho tinha uma questão legítima. E como ele foi tratado? Como os que insistem em questionar o são: hostilizado.
Vejam que essas questões incluem as questões existenciais, típicas, nos ditos populares, dos adolescentes. É uma experiência universal, o que indica ser ela realmente inata ao homem, como observa Jostein Gaarder: "Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo" (GAARDER, p. 25), comprovando a observação aristotélica de que a filosofia nasce do espanto*.O homem começa primeiro compreendendo as questões da linguagem, e as questões básicas da inteligência, e, quando chega à 'idade da razão', começa a considerar as questões existenciais* e filosóficas em geral, como admite o filósofo Thomas Nagel:

"Nossa capacidade analítica geralmente já se encontra bastante desenvolvida antes mesmo que tenhamos aprendido muita coisa sobre o mundo, e por volta dos catorze anos muitos jovens começam a refletir sobre questões filosóficas por si sós - sobre o que realmente existe, se podemos chegar a saber alguma coisa, se existe algo que seja realmente certo ou errado, se a vida tem algum significado, se a morte é o fim de tudo" (NAGEL, p. 1-2).

Todas elas são questões mui espinhosas, delicadas, e que, não sendo consideradas com a máxima precisão, não são resolvidas. Mas considerá-las sem resolvê-las pode ser demasiadamente assustador. Paralisante. É por isso que essas questões são preteridas, deixadas para um depois que nunca chega, a não ser em momentos de crise, ou, na melhor das hipóteses, numa discussão intelectual indiferente.
Aliás, aqui não seria capricho se parássemos um pouco para falar de nossa realidade, de como esse fenômeno do desprezo à filosofia ganha ares culturais (por mais paradoxal que seja) aqui na Terra de Vera Cruz. E, com a palavra, o importante filósofo brasileiro, Olavo de Carvalho, e suas sagazes observações:

"Sim, no Brasil, cultura e inteligência são coisas para depois da aposentadoria. Quando todas as decisões estiverem tomadas, quando a massa de seus feitos tiver se adensado numa torrente irreversível e a existência entrar decisivamente na sua etapa final de declínio, aí o cidadão pensará em adquirir conhecimento - um conhecimento que, a essa altura, só poderá servir para lhe informar o que deveria ter feito e não fez. Antevendo as dores inúteis do arrependimento tardio, ele então fugirá instintivamente do confronto, abstendo-se de julgar sua vida à luz do que agora sabe" (CARVALHO, p. 31-32).

Claro, a citação fornece muitos insights que serão trabalhados adiante. Protelemos. Apenas vejamos onde é que estamos. Filosofia, aqui, é apenas capricho...
Portanto, a primeira característica do verdadeiro pensador, do filósofo, é a coragem e perseverança para lidar com essas questões, certamente já engendradas na sua infância. O que o leva aos estudos é justamente sua curiosidade, seu interesse em ver tais questões resolvidas. Quanto mais estimulante for o cenário em que tal mente vive, mais fácil de ela não abandonar a empresa filosófica a que todos nós, por constituição natural, somos destinados.

Gaarder está de acordo que o melhor jeito de se aproximar da sabedoria é justamente seguindo o espírito da criança, é dar vazão ao espírito inquiridor. Mas esse autor, em particular, levanta novas questões sobre o espírito inquiridor:
"O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas. [...] Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. [...] Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo. É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las" (GAARDER, p. 25).
Quanto a esse último ponto, o de que é mais fácil
Ele diz não haverem muitas questões e que, embora a filosofia seja particularmente principiada pelo inquirimento, esse é apenas o primeiro passo. Vamos explorar essas duas propostas.
Primeiro, em certo sentido, não existem, realmente, infinitas questões filosóficas básicas. Elas basicamente são sintetizadas nas questões que erigem uma cosmovisão*. E James Sire nos tranquiliza observando que, embora assumam roupagens distintas, existem, no fim das contas, um número muito definido de cosmovisões: "O fato é que, embora, a princípio, as cosmovisões pareçam proliferar, elas são constituídas de respostas a questões para as quais há apenas um limitado número de resposta" (SIRE, p. 303).
Mesmo assim, não deixam de ser questões complexas, e muitas propostas foram elaboradas para solucionar cada uma delas. Com isso, tangemos a segunda questão. Elaborar o questionário 'do espanto' é essencial para o filosofar. Mas filosofar não se restringe a isso. De fato, ninguém pode almejar a sabedoria se não souber questionar. Mas saber questionar é o primeiro passo. Para passarmos de polemistas baratos, de irresponsáveis que fazem algo além de levantarem dúvidas sem solucioná-las, como alguém que tem a iniciativa de colocar a comida ao fogo mas não atenta-se para o ponto em que a comida deve ser retirada, temos de prosseguir. E é aqui que encontramos uma série de dificuldades. Precisamos reconhecer o que Craig diz em sua 'Apologética para Questões Difíceis da Vida':

"... sempre me impressiono como fato de que é muito mais fácil levantar questões difíceis do que respondê-las. Estudantes e leigos que têm pouco treinamento filosófico out teológico algumas vezes levantam questões tão difíceis que eles mesmos não conseguem imaginar o grau de complexidade em que elas se encontram" (CRAIG, p. 7). 

Voltaremos, noutra oportunidade, de forma mais demorada, à essa problemática.

Com o artigo de hoje, pretendemos mostrar apenas um ponto que responde à indagação sobre a relevância dos estudos filosóficos, sobre a nobreza de buscar ser um filósofo. Em suma, podemos dizer o seguinte: o engajamento filosófico é a enteléquia do homem. Ser filósofo é seguir os 'instintos' naturais do ser humano. Está de acordo com seu apanágio. É, portanto, algo mui 'natural', em certo sentido. Para qualquer alma desobstruída de ocupações obstruidoras, e com um pingo de decência, nobreza e coragem, a reflexão filosófica é uma demanda inevitável e impreterível do espírito humano.

Parte 2
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* Olavo de Carvalho nota que "educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro [...] é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem" (CARVALHO, p. 355-356).
* Razzo, num áudio no youtube, diz que há um acordo entre os cavalheiros graduados em filosofia de se denominarem filósofos apenas após os 60 anos! Bom, é claro que temos muitos antigos filósofos, assim reconhecidos pela maioria, que outorgaram-nos elucubrações excelentes antes desse período, o que parece contestar o professor Razzo. Mesmo assim, quem somos nós, ainda, para discutir. Fica aqui a observação a título de completude.
* Para compreender o sentido socrático do termo, leia este artigo de nossa autoria: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/05/socrates.html
* Dissertamos sobre isso no seguinte artigo: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/06/a-etica-em-aristoteles.html. O ponto culminante, para os propósitos dessa nota, encontram-e no subtítulo 'a origem da filosofia'.
* Idem.
* Dissertamos sobre essa questão no seguinte artigo: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2013/10/a-crise-existencial-e-resolucao-no.html
* Para certificar-se do que estamos falando, leiam esse artigo, também de nossa autoria: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/10/cosmovisao-parte-1.html

BIBLIOGRAFIA


ADLER, Mortimer J; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.

CARVALHO, Olavo de; BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.

CRAIG, William Lane. Apologética para questões difíceis da vida. Tradução de Heber Carlos de Campos. São Paulo: Vida Nova, 2010, 192p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à filosofia. Tradução de Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 107p.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 120. ed., 2013, 176p.

SIRE, James W. O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisões. Tradução de Fernando Cristófalo. São Paulo: Hagnos, 4. ed., 2009, 384p.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Biografia de Agostinho de Hipona


INTRODUÇÃO

Sproul, que é um tomista, faz a seguinte e impressionante declaração sobre Agostinho: "Ele foi o maior filósofo-teólogo cristão do primeiro milênio e talvez de toda a era cristã" (SPROUL, p. 58)! Num período controverso em relação às doutrinas cristãs, Agostinho foi fundamental. "Ele defendeu a ortodoxia cristã em embates teológicos terríveis com hereges, nas controvérsias donatista e pelagiana” (SPROUL, p. 59). Mas é Ronald Nash, um agostiniano ferrenho, fã declarado de Agostinho, quem elabora o melhor parágrafo para nossa introdução a Agostinho: “Sua obra é a ponte entre a filosofia antiga e o cristianismo primitivo aos padrões de pensamento da Idade Média. Sua obra é anda hoje um modelo para os pensadores cristãos que queiram usar o platonismo* como estrutura para suas visões de mundo e da vida. Muitas das ideias que receberam ênfase na obra dos reformadores protestantes foram antecipadas por Agostinho. Mas suas visões sobre a igreja e seus sacramentos desempenharam um papel importanto no desenvolvimento de doutrinas mais distintamente católico-romanas. Entre as áreas do pensamento cristão em que as ideias de Agostinho são ainda mais estudadas estão a relação entre fé e razão, o problema do mal, da graça divina e da predestinação, a doutrina da trindade e a filosofia da história” (NASH, p. 151-152). Portanto, tanto protestantes (particularmente os reformados) quanto católicos amam o santo bispo de Hipona. E agora nós veremos o porquê. Confessamos que ele é, para nós, o grande filósofo e expor seus pensamentos é fonte de grande alegria. Particularmente na soteriologia (Sproul nos lembra que ele ganhou a alcunha de 'doutor da graça' - SPROUL, p. 58) e epistemologia ele é apreciado distintamente pelos reformados.
Seu pensamento filosófico, entretanto, como o nota Joel Gracioso, é apreciado por ter influenciado a cultura ocidental de forma inalienável. Ele levantou questões que ninguém mais havia visto (e muitos ainda não vêem) e, direta ou indiretamente, influenciou uma vasta gama de pensadores. A Idade Média, em maior ou menor grau, pensou em Agostinho, mas podemos destacar Anselmo, por exemplo. Adiante, é inegável sua influência em Pascal, Kant, Kierkegaard e até Bergson, segundo Gracioso! Portanto, estudar Agostinho é obrigação para todo estudante sério de filosofia.

BIOGRAFIA

Aurélio Agostinho, ou 'Santo Agostinho', como é mais conhecido, nasceu em 354 d. C., “em Tagaste, numa província romana na África, hoje pertencente à Argélia" (CHALITA, p. 119). Sproul conta-nos que Tagasta ficava no território que era conhecido com Numídia (SPROUL, p. 58) e Nash completa dizendo que ficava no noroeste do que hoje chamamos de Argélia. Chalita também nos informa que Agostinho "muito jovem revelou uma inteligência notável, e por isso sue pai decidiu enviá-lo para estudar em Cartago (também no norte da África), onde teria uma melhor educação e a oportunidade de, posteriormente, seguir carreira na administração do Império Romano" (CHALITA, p. 119). Gaarder nos conta que tal ida à Cartago se deu aos dezesseis anos (GAARDER, p. 193).

Não seria demais notar que ele nasceu em pleno decadência do Império Romano*. A propósito, Nash faz uma breve mas pertinente elucidação histórico-cultural: "Séculos antes, a terra natal de Agostinho tinha sido parte do grande império cartaginês que quase conquistou Roma. Depois que Roma derrotou o exército cartaginês e seu general, Anível, Cartago foi romanizada cultural e linguisticamente, ainda que a linguagem do povo comum no dia-a-dia continuasse sendo o idioma púnico" (NASH, p. 152).

Sobre seus pais, ficamos sabendo que "o pai de Agostinho, Patrício, não era cristão durante a mocidade do filho e exerceu relativamente pouca influência sobre ele. Mas sua mãe, Mônica, era cristã devota e desempenhou papel importante na vida do filho, até mesmo durante os anos em que ele rejeitou o cristianismo materno" (NASH, p. 152). Chalita nos lembra que Mônica vivia a tentar levar seu filho para a Igreja: "[Mônica] por muitos anos tentou convencer o filho a abraçar a mesma fé" (CHALITA, p. 119).

Em Cartago, "Agostinho estudou literatura, filosofia e retórica. Sua paixão pelo pensamento filosófico foi então despertada pela leitura do livro Hortensius, de Cícero (106-43 a. C.) [...], um tratado que recomenda o estudo da filosofia como o caminho para se alcançar a verdade. Influenciado pelo pensador romano, Agostinho afirmava, nesse período de sua vida, que o ideal mais nobre a seguir era a vida contemplativa [...] deixar em segundo plano o trabalho manual e as preocupações práticas, para dedicar-se exclusivamente à pesquisa filosófica, à busca da verdade profunda de todas as coisas*” (CHALITA, p. 119).  Sproul se expressa, em termos muito semelhantes, da seguinte maneira: "Agostinho quando jovem manifestou um anseio extraordinário por conhecimento. Depois de ter lido Cícero com a idade de dezenove anos, Agostinho consagrou sua vida à busca da verdade. Passou por diferentes períodos de crescimento e revolta" (SPROUL, p. 58). Ou seja, os autores atestam sua aptidão e interesse pelo saber, com um autêntico filósofo (nos termos de Sócrates).
A propósito, para biografar Agostinho, é mister que relatemos sua trajetória intelectual. Gaarder nos lembra que "ele não foi cristão durante toda a sua vida. Antes de se converter, santo Agostinho pesquisou várias tendências filosóficas e religiosas" (GAARDER, p. 193). Gaarder também nos conta que ele era movido pelo incômodo da questão do mal no mundo: "O jovem Agostinho ocupou-se intensamente daquilo que costumamos chamar de ‘o problema do mal’. Referimo-nos com isto à questão de saber a origem do mal" (GAARDER, p. 193), ou seja, Agostinho se deu à pesquisa filosófica motivado por um incômodo existencial, de viés metafísico.

Mas há mais a dizer. Foi nesse período, por exemplo, como nos informa Nash, que ele se envolveu com uma vida desregrada: "Desde a sua primeira visita a Cartago, quando tinha cerca de 16 anos, Agostinho exibia persistente inclinação em termos de pecado sexual. Tomou uma concubina quanto tinha 17 ou 18 anos e se tornou pai ilegítimo antes dos 20" (NASH, p. 152).

A primeira cosmovisão que em que ele aterrisou foi o maniqueísmo. Gaarder nos remete, também, a um período estóico, mas, em geral, ele foi um maniqueu no início. "Os maniqueus formavam uma seita típica do final da Antiguidade. Eles professavam uma doutrina da salvação meio religião, meio filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luzes e trevas, espírito e matéria. Graças a seu espírito, o homem podia transcender a matéria e criar com isto as bases para a redenção de sua alma. Mas a divisão estanque entre bem e mal não deixava Agostinho sossegado.  Durante algum tempo ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos contestavam uma divisão rígida entre bem e mal" (GAARDER, p. 193). Ou seja, como expressa Sproul, o maniqueísmo é um sistema metafisicamente dualista (SPROUL, p. 59). Nash define o maniqueísmo assim: "Tal sistema postulava a existência de dois eternos e igualmente poderosos deles, um dels bom (Luz) e  o outro mau (Trevas)" (NASH, p. 152). Finalmente, Chalita expressa o seguinte sobre o maniqueísmo: "uma seita que reivindicava ser sua doutrina o verdadeiro cristianismo. Fundada por Mani (215-276?) essa corrente religiosa afirmava basicamente que a criação do mundo tinha sido o resultado do conflito entre duas grandes forças, a luz e a escuridão, o bem e o mal. Agostinho professou a fé maniqueísta por alguns anos, recebendo o grau de ouvinte, um dos níveis mais baixos da hierarquia da seita" (CHALITA, p. 121). Ou seja, duas forças coeternas e equipotentes coexistem e fundamentam a realidade. A matéria é criação dessa força má, ao passo que o espírito é fruto da força boa. Impossível não notar o viés platonista aqui. E precisamos ressaltar também que, após o cristianismo, a nova moda era elaborar uma doutrina religiosa e soteriológica.
Nash, o nosso especialista em Agostinho, afirma que "o maniqueísmo era atraente para Agostinho porque parecia lhe oferecer uma resposta para o problema do mal, superior àquela encontrada no cristianismo de sua mãe. Agostinho foi levado ao maniqueísmo porque este fazia menos exigências morais sobre sua vida do que o cristianismo" (NASH, p. 152). Portanto, além de parecer mais satisfatório às suas inquietações, o maniqueísmo lhe abria espaço para viver a vida desregrada que, como já notamos, ele tinha.

Alguns anos depois, Nash relata, ele já estava nutrindo tantas dúvidas sobre o maniqueísmo que aos poucos ia abandonando sua fé: Durante a última parte dos 20 anos, Agostinho não pôde mais ignorar as sérias dúvidas que tinha quanto ao maniqueísmo. Finalmente, ele abandonou o maniqueísmo, ainda que protelasse a rejeição pública dessa associação para não perder os poderosos amigos maniqueístas cuja influência o ajudaria em sua carreira" (NASH, p. 152).
A propósito, sua carreira. Ele se forma em Cartago e passa a ser professor de retórica. Ali mesmo ele passa a dar aulas. Mas os alunos não eram bons e logo ele sai dali, conforme relata Nash: "Uma vez completada a sua educação em Cartago, Agostinho ganhou a vida ensinado retórica nessa mesma cidade. Ele experimentou crescente incômodo por causa da pobre qualidade dos alunos e da sua desordem em classe. Planejando mudar o local de ensino para Roma, Agostinho cruzou o Mediterrâneo, em 383, com sua concubina e seu filho. Entretanto, porque seus alunos em Roma eram geralmente relapsos quanto ao pagamento dos honorários, ele deixou Roma e foi para Milão, em 384. Milão era a residência de verão do imperador e de sua corte e oferecia a Agostinho muitas oportunidades para progredir em funções governamentais. Bem recomendado por amigos maniqueístas que ocupavam altas posições, Agostinho recebeu a posição de orador público, um possível degrau para posições mais altas" (NASH, p. 152-153). Ou seja, nosso filósofo africano estava galgando os passos da notoriedade. De Cartago para Milão ele desenvolvera-se como orador e estava em franca proeminência.
Embora ele houvesse abandonado o maniqueísmo, não apreciava, ainda, o Cristianismo. Experimentou o estoicismo, depois finalmente tornara-se cético e, por último, neoplatonista (SPROUL, p. 59). Gaarder ressalta que o neo-platonismo foi a filosofia mais importante para Agostinho e sua filosofia: "Mas foi sobretudo a segunda importante corrente filosófica do final da Antiguidade – o neoplatonismo – que mais influenciou santo Agostinho. Aqui ele tomou contato com a ideia de que toda a existência humana é de natureza divina” (GAARDER, p. 193).
Agostinho tinha objeções bem pontuadas quanto à fé cristã, até que se encontrou com Ambrósio, como relata magistralmente Nash: "Enquanto estava em Milão, Agostinho se tornou amigo de Ambrósio, o bispo de Milão, o qual era reputado como o maior orador do Império. Ambrósio ajudou Agostinho a considerar que muitas de suas objeções ao cristianismo eram em razão da má compreensão da fé. Por exemplo, Agostinho objetou a Ambrósio, certa vez, que o Deus da Bíblia teria um corpo. [...] Por essa época, Agostinho já havia trocado sua cosmovisão maniqueísta por uma estranha variedade de ceticismo que havia tomado conta da Academia de Platão. Seus experimentos com o ceticismo terminaram com a descoberta dos escritos de certos platônicos, o que parece englobar Plotino e alguns dos seus seguidores. Ironicamente, o estudo de Agostinho sobre o neoplatonismo ajudou-o a remover muitos obstáculos intelectuais remanescente que o impediam de se tornar cristão" (NASH, p. 153). Doravante notaremos como o neoplatonismo o ajudou. Seja como for, em breve Agostinho notou que rejeitava um espantalho, e não a doutrina cristã em si e fora Ambrósio quem o mostrara isso. Chalita complementa: "Santo Ambrósio era um orador notável e conhecia bem a filosofia grega. Em suas pregações, refletia sobre o cristianismo e o pensamento antigo, mostrando como a fé era necessária para se atingir a verdade e enunciando a doutrina segundo a qual a Igreja é a única representante legítima de Deus entre os homens. Isso levou Agostinho a rever suas posições com relação ao cristianismo, iniciando um período conflituoso em que ele ao mesmo tempo relutava em aceitar a fé e não via com prosseguir em sua busca pela verdade por meio da vida contemplativa” (CHALITA, p. 119-120).
Finalmente Agostinho tinha seus obstáculos intelectuais minorados e já podia olhar para o cristianismo com bons olhos, com interesse*. Mas havia outros obstáculos: "Os obstáculos restantes diziam respeito à relutância em renunciar suas falhas morais. Em 386, em uma casa nos arredores de Roma, ele passou por uma das mais dramáticas conversões na história da igreja cristã. Depois de ouvir uma voz que dizia: ‘Toma e lê’, Agostinho relata como ele abriu a Bíblia ao acaso e seu dedo pousou nas palavras de Paulo em Romanos 13.13, 14” (NASH, p. 152-153). Finalmente Agostinho se convertera!

Vamos tentar fazer um quadro da situação que Agostinho se encontrava. Quanto à sua concunbina, mãe de seu filho, Nash informa:“Nessa época, Agostinho já tinha se separado de sua concubina, a qual havia retornado para o norte da África, deixando seu filho, Adeodato, com o pai" (NASH, p. 154). Agostinho, cristão, logo submeteu-se ao batismo: "Depois de batizado, em 387, Agostinho estava determinado a voltar para o norte da África juntamente com seu filho e sua mãe, que havia se juntado a ele na Itália" (NASH, p. 154). Chalita não se esquece de informar que foi o próprio Ambrósio quem batizou Agostinho: “Depois desse episódio [da conversão], Agostinho decidiu receber o batismo, o que acontecue em 387 pelas mãos de Santo Ambrósio" (CHALITA, p. 121). Mônica, certamente, estava satisfeitíssima! E agora estava junto a seu filho, crente, e seu neto. Entretanto, pouco tempo depois ela veio a falecer, aos 56 anos de idade (NASH, p. 154). Agostinho ficara mui abalado. E suas dores pioraram pois "Agostinho e Adeodato continuaram sua jornada para o norte da África, onde Adeodato morreu" (NASH, p. 154)! Isso, no entanto, não foi suficiente para dissuadir o bravo filósofo. Ele permaneceu firme em sua fé. Continuou a estudar filosofia, teologia e as Escrituras Sagradas.
Ao que tudo indica, voltou para sua terra natal e lá passou a exercer algum tipo de atividade eclesiástica ou algo do gênero. "Seu crescente compromisso com a vocação religiosa o levou à ordenação, em 391" (NASH, p. 154). Chalitia nos conta que ele "foi escolhido pela população de Hipona, uma localidade próxima, para ser o novo bispo da cidade." (CHALITA, p. 121). Cartago, nos ensina, ficava "a trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago" ( , ). Nash nota que essa ordenação acontecera quatro anos após seu batizado. (NASH, p. 154). Em Hipona ele ficou o resto de sua vida.

Mas infelizmente Agostinho tinha de partir. "Após muitos anos escrevendo e servido à sua igreja, Agostinho morreu, em Hipona, no ano 430, durante o cerco movido contra a cidade por tribos germânicas” (NASH, p. 154).

AGOSTINHO E PLATÃO

Já observamos, algumas vezes, alhures, que Agostinho fora mui influenciado por Aristócles, vulgo Platão, o aristocrata de Atenas e grande discípulo de Sócrates. Isso precisa ser destacado com um pouco mais de atenção. Na exposição do pensamento desse grande filósofo iremos notar e apontar essas semelhanças. Mas temos de observar que nossas fontes destacam de forma enfática esse tema. Vejamos, por exemplo, como o famoso e popular Jostein Gaarder expõe o assunto: “ele se converteu ao cristianismo, mas o cristianismo de santo Agostinho é em grande parte influenciado pelo pensamento de Platão [...] no momento em que entramos na Idade Média cristã vemos que não se tratou de uma ruptura assim tão dramática com a filosofia grega. Muito da filosofia grega foi levado para a nova era pelas mãos de padres da Igreja, como santo Agostinho. [...] ele próprio se considerava cem por cento cristão. Mas ele não via muitas contradições entre o cristianismo e a filosofia de Platão. Para ele, os paralelos entre a filosofia de Platão e a doutrina cristã era tão evidentes que ele se perguntava se Platão não teria conhecido pelo menos uma parte do Antigo Testamento. É claro que isto é muito pouco provável. Seria mais acertado dizer que, de certa forma, santo Agostinho ‘cristianizou’ Platão” (GAARDER, p. 193-194). Detenhamos-nos nessas radicais observações. Agostinho se considerava cristão, ordotoxo, mas, ao mesmo tempo, se considerava um platonista autêntico! Tal como Plotino, chega a considerar Platão o ápice da sabedoria humana à parte da revelação. Salvatore Lillal nota que "Agostinho explica que a glória soberana de Platão eclipsou todos os outros filósofos” (PRADEAU, p. 127). Isso, claro, se é que ele não teve contato com o Antigo Testamento. Gaarder considera a possibilidade um absurdo. Mas será que é mesmo? Temos de nos lembrar que Platão passou um relevante tempo de sua vida, após a morte de Sócrates, viajando pelo oriente onde pode ter se encontrado com algum judeu, ou mesmo vivido entre um grupo... quiçá passado por Israel! Por que não? Claro, temos que reconhecer que é mera conjectura.
R. C. Sproul parece não concordar com a proposição que declara Agostinho ter cristianizado Platão, como Gaarder e tantos outros falam: "“Diz-se que Agostinho conseguiu fazer uma síntese filosófica entre platonismo e cristianismo, porém sua obra não evidencia um sistema como tal" (SPROUL, p. 59). Mas o que mostraremos é justamente o fato de seu sistema demonstrar exatamente isso: que ele sintetizou o cristianismo e o platonismo. Aliás, é tão evidente suas influências que Lillal observa que "Agostinho reconheceu muito claramente e sem reservas o papel que a filosofia desempenhou em sua formação intelectual" (PRADEAU, p. 123). Tal como aconteceu com muitos outros pais da Igreja, Agostinho declarava "a propósito dos filósofos gregos em seu conjunto: ‘Poucas mudanças bastam para transformá-los em cristãos’" (PRADEAU, p. 123).
Já observamos que tudo começa com seu despertar por parte de Cícero. Mais adiante ele chega à leitura do platonismo derradeiro, do neoplatonismo: “A formação filosófica de Santo Agostinho foi largamente influencidado pela literatura de Hortensius de Cícero, que suscitou nele o desejo ardente de se distanciar do mundo para se aproximar de Deus e da sabedoria. Mais tarde, as relações que ele estabeleceu, por volta de 384 em Milão, com o meio neoplatônico – do qual Simplicianus e Santo Ambrósio faziam parte –, assim como a leitura de diversos libri platonicorum – tratava-se de tratados neoplatônicos traduzidos em latim por Marius Victorinus –, desempenharam um papel determinate na orientação de seu pensamento” (PRADEAU, p. 127). Lillal, entretanto, observa que Agostinho não era um leitor ávido do próprio Platão: “Agostinho transborda de elogios em relação a Platão, ainda que ele só tenha lido parte do Timeu traduzido por Cícero (106-43 a. C.) e somente tenha conhecido sua obra através de indicações fornecidas por autores latinos, tais como Cícero, Varrão (116-27 a. C.) Cipriano (século III) e Ambrósio (340-397)" (PRADEAU, p. 126-127). Portanto, podemos dizer que Agostinho foi mais neoplatônico do que platonista. Seja como for, não há neoplatonismo sem Platão, e neste está os fundamentos do pensamento de Agostinho.

Terminar esse assunto aqui seria uma grande irresponsabilidade! Por isso, Nash salva o bispo de Hipona de ser considerado pagão: “A fidelidade de Agostinho à Escritura cristã e seu próprio gênio produziram alterações básicas na doutrina de Plotino, mas a influência deste neoplatônico não pode ser ignorada. De fato, muitos elementos do pensamento de Agostinho somente serão entendidos adequadamente quando considerados à luz da tradição platônica na filosofia. [...] Muitos dos elementos da filosofia de Agostinho forma formulados sob influência de Plotino, mas, com o amadurecimento de seu entendimento sobre as crenças cristãs, Agostinho reconheceu os erros do sistema de PLOTINO. Sobre qualquer questão em que os pensamentos de Plotino e o das Escrituras fossem irreconciliáveis, Agostinho divergia de Plotino e ficava com a Bíblia. Isso é visto, por exemplo, na rejeição de Agostinho à preexistência da alma” (NASH, p. 155). Ou seja, ele reconhece a graça de Deus na concessão de tão sublimes pensamentos a pagãos, mas quando vê a sabedoria humana confrontada com a Escritura, opta por esta ao invés daquela*!

Agostinho escreveu muitos livros. Enquanto pastoreava participou de muitas controvérsias e conclaves de importância máxima para a história do pensamento e da teologia cristã. Entretanto, ele não escreveu de forma sistemática e temos que colher em toda sua obra o que ele pensa sobre determinado assunto, como ensina Nash: “Agostinho não foi um escritor sistemático. Para organizar seus pensamentos sobre os principais elementos de sua cosmovisão cristã é preciso, portanto, coletá-los de muitas obras escritas ao longo de um período de quarenta anos” (NASH, p. 155).

Vamos, pois, estudar esse brilhante pensador e seguir nossas fontes para tentar expor seu pensamento tão valioso.

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*Não só neste, como nos artigos posteriores, iremos ver o que Nash quis dizer com isso.
*Se ainda não leu, leia aqui sobre esse tema: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/06/o-imperio-romano.html
*Não podemos deixar de notar que Aristóteles tinha um pensamento semelhante, e que, na verdade, é provável que representasse o zeitgeist da cultura grego-romana. Uma discussão pormenorizada sobre o assunto será tratada em outro artigo.
*Escrevemos, noutro lugar, do papel da apologética na evangelização, e esse evento com Agostinho é muito relevante para ilustrar o que dissemos aqui: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/01/postura-da-igreja-frente-aos-desafios.html
*Estamos elaborando, também, um artigo que fala sobre a relação entre filosofia e teologia. Protelemos, por hora.


BIBLIOGRAFIA

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

GRACIOSO, Joel. Introdução ao Pensamento de Santo Agostinho. Acessado no dia 29 de Agosto em: https://www.youtube.com/watch?v=yDJlRw-VtDY

LILLAL, Salvatore. A Filosofia na Igreja Primitiva _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.

SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.


sábado, 2 de agosto de 2014

Plotino e o Neo-Platonismo


No meio do texto irão entender a pertinência da imagem...

INTRODUÇÃO BIOGRÁFICA

Ronald Nash começa sua exposição sobre Plotino instigando-nos a lê-lo: “Indubitavelmente, Plotino foi o terceiro filósofo de maior importância no mundo antigo, ultrapassado somente por Platão e Aristóteles” (NASH, p. 133). Ele é principal nome e fundador de uma escola de filosofia, como informa Linguiti: “Plotino foi o fundador e o maior representante do movimento ao qual foi dado o nome de ‘neoplatonismo’ na época modera” (PRADEAU, p. 104).
Plotino nasceu cerca de 205 e morreu ao redor de 270 d. C. São, basicamente, as datas que os autores nos dão. Ele nasceu no “Egito, onde conheceu as teorias dos antigos gregos, bem como ao judaísmo helenista e ao cristianismo” (SPROUL, p. 57). Gaarder nos fala mais especificamente de Alexandria, no Egito, e acrescenta: “É interessante notar que ele veio de Alexandria, a cidade que já havia alguns éculos era o grande pondo de encontro entre a filosofia grega e a mística oriental” (GAARDER, p. 152). Mas, para Ronald Nash, não foi necessariamente em Alexandria que ele aprendeu a filosofia oriental. Lá ele aprendeu a filosofia grega (e, certamente, o judaísmo helênico e o cristianismo), indo aprender a filosofia oriental de outra forma, conforme nos conta o filósofo: “aprendeu a língua e a cultura gregas, e começou a estudar filosofia em Alexandria, no Egito. Depois, viajou pela Ásia na esperança de entrar em contato com as ideias de pensadores persas e indianos” (NASH, p. 134). No entanto, é em Linguiti que receberemos as informações mais detalhadas desse período da vida de Plotino: “Porfírio(+-232-304), seu biógrafo e editor, ensina-nos que, com vinte e oito anos de idade, em Alexandria, ele se tornou discípulo de Ammonius Saccas (175-242), ao lado de quem permaneceu durante onze anos. Em 243, levado pela curiosidade de conhecer as filosofias persas e indianas, ele esteve presente na expedição ao Oriente de Gordian III; no ano seguinte, depois da morte do imperador, ele foi para Antioquia, depois para Roma, onde estabeleceu a sua escola e permaneceu durante quase toda a sua vida” (PRADEAU, p. 105). Portanto, temos a seguinte conjectura a apresentar. Com o imperialismo romano, a circulação de ideias tornou-se mais fácil (desde os gregos, aliás). Prova disso é como Zenão de Chipre implantou ideias hinduístas em sua filosofia (admitindo, claro, que a influência pode ter vindo dos próprios primórdios da filosofia que, no final das contas, nasce na Ásia Menor). Dizer, categoricamente, que Plotino não tenha ouvido algo, quem sabe estudado mais sistematicamente, algo da filosofia oriental em Alexandria, aquele grande centro cultural, é exagero. Mas é certo que ele queria mais, e viajou para o oriente. Mas temos um, talvez próximo a dois anos no máximo, de viagem. Claro, não podemos nos evadir de imaginar algum intuito de imitar seu grande ídolo, Platão, nessa empreitada. Acabou se estabelecendo em Antioquia, ainda depois, em Roma, onde estabeleceu sua escola de filosofia. Dando uma pincelada geral no seu projeto em Roma, temos a exposição de Sproul: “Ele mudou-se para Roma aos quarenta anos de idade* e procurou conscientemente desenvolver uma filosofia que servisse de alternativa ao cristianismo. Sua intenção era reavivar o platonismo, mas modificando-o para tratar da principal questão levantada pelo pensamento cristão: a salvação. Sua filosofia foi eclética e sincrética, emprestando elementos de vários filósofos. Ele rejeitou o materialismo dos estóicos e dos epicureus, o esquema de forma e matéria de Aristóteles e a doutrina judeu-cristã da criação” (SPROUL, p. 57). Portanto, era um rival do cristianismo, embora fosse, por ele, influenciado a pensar sobre a doutrina da salvação. A esta altura, Gaarder se torna pertinente: “Plotino trouxe para Roma uma doutrina da salvação que viria a se tornar séria concorrente do cristianismo vigente naquela época. Mas o neoplatonismo também viria a exercer uma forte influência sobre a teologia cristã” (GAARDER, p. 152). Veremos essa influência particularmente em Agostinho, embora na Idade Média será corrente também, ou, como se expressa Nash: “Uma visão geral do sistema de Plotino é um passo essencial para o entendimento das cosmovisões de Agostinho e de Aquino” (NASH, p. 133). Protelemos as elucubrações de Plotino sobre a salvação neoplatônica. Notemos, apenas, o que é indispensável sobre o projeto filosófico de Plotino: “Para Plotino, filosofia e religião eram inseparáveis. Plotino desenvolveu um sistema que continha tanto uma apreciação especulativa do mundo quanto a da doutrina religiosa da salvação” (NASH, p 133). Portanto, ele elabora o que podemos chamar tanto de teologia quanto de filosofia.
Linguiti nos informa que “Plotino começou a escrever tarde, quase com a idade de cinquenta anos, a fim de não romper seu primeiro juramente, feito com seus condiscípulos Erenius e Orígenes, de não revelar as doutrinas de seu mestre Ammonius” (PRADEAU, p. 105). Nash nos diz que eram destinados “para um pequeno círculo de seguidores” (NASH, p. 134), mas Linguiti é mais completo, novamente, e notifica-nos: “encontrando suas origens nos seminários e nas discussões que tiveram lugar na escola, e destinados a circular entre os seus alunos” (PRADEAU, p. 105). Portanto, foi em Roma, em sua escola, destinados a seus alunos, que os textos surgem, tal como acontece com Aristóteles. Já depois que ele tinha morrido “ seus escritos foram publicados no início do século IV por Porfírio, que os organizou em seis livros, cada um deles contando com nove tratados, não sem produzir cortes e forçar seus ajustes. O título ‘Enéadas’ significa justamente ‘grupo de nove’” (PRADEAU, p. 105). Quanto a esses cortes e forçadas de ajustes é, desta vez, Nash quem tem a ampliar: “Algumas vezes, Porfírio cortou ou uniu material escrito durante diferentes estágios da vida de Plotino, frequentemente sem dar atenção a contradições e mudanças em seu pensamento. Esta é outra razão pela qual é tão difícil ler Plotino. [...] Até mesmo os filósofos que apreciam a obra de Plotino admitem um número de inconsistências e de confusão” (NASH, p. 134).
Quanto ao projeto filosófico de Plotino, embora já esboçado por Sproul, podemos expandir com Linguiti: “O objetivo fundamental de Plotino foi defender e desenvolver os princípios fundamentais dos dogmas do platonismo, por intermédio de uma ‘competição’ com o aristotelismo e o estoicismo, debate que envolvia também aberturas e concessões (ao contrário, suas relações com as tradições atomistas, hedonistas e céticas foram menos importantes e quase sempre polêmicas); os neoplatônicos seguintes permaneceram no interior dos limites de sua síntese filosófica, propondo, em suma, uma imagem homogenia do platonismo da Antiguidade Tardia” (PRADEAU, p. 104). Portanto, era um eclético filósofo, em busca do melhor que cada tradição tinha a oferecer (projeto, aliás, nem tão original assim, se contarmos com o desenvolvimento do estoicismo, que seguiu linha párea). Mas, é particularmente em Platão que ele tem sua inspiração: “Plotino permaneceu fiel aos fundamentos do racionalismo grego e à autoridade de Platão, cujos ensinamentos ele considerava como sendo o depósito da totalidade da verdade filosófica [...] Plotino de fato se via somente como um discípulo de Platão, não reivindicando para si mesmo senão ser um intérprete singular, convencido de ter alcançado melhor que os outros o sentido das afirmações do mestre” (PRADEAU, p. 104).
Ronald Nash nos diz, quanto a Plotino, que “sua morte, provavelmente, por causa de lepra” (NASH, p. 134). Linguiti complementa: “Plotino morreu em 270, na Campanha, para onde se retirou durante a última fase de sua doença e onde, alguns anos antes, ele tinha concebido o projeto de fundar uma cidade de filósofos, a Platonópolis, contando com o apoio do Imperador Galiano, e de sua mulher Salonina” (PRADEAU, p.). Portanto, atacado severamente pela lepra, ele foi para Campanha, um lugar que intentara transformar numa cidadela dos filósofos, e lá morre em algo em torno de seus 65 anos.
O neoplatonismo posterior não nos interessa muito, pois é mais relevante conhecermos esta vertente ortodoxa e filosófica. Segue-se à escola vertentes mais ‘religiosas’, pagãs (particularmente com Proclus e a partir de Jamblique) das quais, para os fins que pretendemos alcançar não vale a pena mencionar.

INTRODUÇÃO À COSMOVISÃO NEOPLATONISTA

Como já observamos em outros sistemas, as inter-relações entre as partes da cosmovisão existem e são muito importantes de serem frisadas em um sistema como o de Plotino. Ou seja, particularmente em Plotino é muitíssimo difícil falar de epistemologia sem falar de metafísica, antropologia filosófica e afins. Mas, acima de tudo, Plotino relaciona todo o seu sistema à sua teologia, que, por sua vez, é um item discutido na metafísica. Por isso, iremos, em alguns momentos, tratar de temas neoplatônicos ao invés de locis da filosofia. A metafísica, a teologia, a epistemologia, a antropologia filosófica, a ética... etc., tudo estará dentro dos temas da filosofia desse filósofo egípcio. Volta e meia iremos retomar os mesmos temas para um novo corolário. Aprendamos, pois, essa importante mas também muito complicada (e controvertida) cosmovisão. 

A HIERARQUIA METAFÍSICA

Primeiro, temos que falar que Plotino é um panteísta. Mas, claro, não é um panteísmo qualquer. É algo muito mais complexo que isso. Há uma hierarquia ontológica toda especial, que, claro, foi inspirada em Platão. Por isso Linguiti diz: “Para ilustrar o pensamento de Plotino, os intérpretes privilegiam em geral a apresentação hierárquica, fazendo que sigam os níveis de realidade que descem do Um até a matéria [...]. Proceder assim não resulta de uma escolha errada, mas, ao contrário, faz que se compreenda bem que o cosmos plotiniano, divino e harmonioso em sua totalidade, caracteriza-se, no entanto, por articulações e distinções internas: ele não é a expressão de um panteísmo integral e indiferenciado” (PRADEAU, p. 104). É, portanto, a expressão de um panteísmo complexo mas, acima de tudo, hierárquico. Esse é o conceito chave para compreender o sistema. Vamos, pois, dar uma olhada sobre essa hierarquia para, noutro tópico, estudar pormenores, escólios e corolários.
Bom, apreciemos, primeiro, uma definição técnica: “Plotino retrata a realidade como uma série de camadas, cada qual derivada de sua camada superior. [...] Plotino explica o universo em termos de um movimento descendente do seu supremo princípio, o Um (o Deus de Plotino). Tudo o que existe está ligado, de algum modo, ao princípio último de Plotino, o Um” (NASH, p. 135). Claro, essa citação está longe de ser esclarecedora, mas já é um começo. A realidade é composta de camadas que começam no Deus de Plotino, o qual será chamado pelos autores de Um ou Uno. Jostein Gaarder, com sua peculiar habilidade didática nos fornece uma ilustração clássica para compreendermos, a princípio, a metafísica de Plotino. Ele nos convida a imaginarmos uma fogueira e o calor e luz emitidos por ela numa noite escura. Então nos convida a nos afastarmos gradualmente, e perceberemos menores influências do calor e da luz da fogueira, até que tudo se dissipa a certa distância, e já nem mesmo pode-se ver o menor sinal do crepitar das chamas. E a analogia proposta é apresentada: “Agora imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é Deus – e as trevas lá fora são a matéria fria, da qual são feitos homens e animais. Junto a Deus estão as ideias ternas, que são as formas primordiais de todas as criaturas. Sobretudo a alma humana é uma ‘centelha do fogo’. Mas por toda a parte na natureza aparece um pouco desta luz divina. [...] No ponto mais distante do Deu vivo estão a terra, a água e as pedras. Estou dizendo que tudo o que vemos tem um pouco do mistério divino” (GAARDER, p. 153). Portanto, todas as camadas são, em menor medida na medida em que se distanciam, ‘formas de Deus’. O conceito básico da metafísica está aqui exposto.
Aqui começamos com Sproul a estruturar um pouco melhor o pensamento metafísico neoplatônico que Plotino formula: “ele insiste em certa forma de transcendência do Uno, que é mais elevado como ser puro do que os modos de ser que lhe são subordinados. O primeiro nível de emanação é o nível da nous ou mente, que é eterna e fora do tempo. Aí está o mundo das ideias de Platão. Da nous origina-se o mundo da alma, e dele deriva o da matéria, o mais baixo de todos” (SPROUL, p. 57). Portanto, temos o Uno; após ele, o ‘nous’, o mundo das ideias de Platão; o mundo a alma; e, por fim, a matéria. Ronald Nash vale a pena ser citado para reforçar o conceito: “O Um produz primeiro, por meio de emanação [...] o nível da mente ou inteligência, o qual, por sua vez, produz o nível da alma, que dá origem aos corpos particulares que existem no universo. Segundo o curso descendente de se tornar, toda a realidade é uma emanação progressiva ou um movimento centrífugo em relação ao Um” (NASH, p. 136-137).
Antes de avançarmos, é importante notarmos um paralelo distintivo que Gaarder faz: “As imagens que Plotino usa lembram a alegoria da caverna de Platão: quanto mais nos aproximamos da entrada da caverna, mais perto estamos daquilo de onde provém tudo o que existe. Mas em oposição à nítida divisão da realidade em duas partes estabelecida pro Platão, a doutrina de Plotino nos convida a vivenciar a plenitude. Tudo é um, pois tudo é Deus. Até mesmo as sombras lá embaixo, na caverna de Platão, têm um tênue reflexo dessa ‘Unidade’” (GAARDER, p. 153). Portanto, longe do dualismo metafísico de Platão, temos um monismo gradual em Plotino. De fato, as coisas mais distantes da caverna são mais reais, e as sombras no fundo da caverna são ‘menos reais’, de forma bem semelhante ao que Platão concebe. Mas não coisa que não derive sua existência ‘diretamente’ (de uma forma ou de outra, são os alcances do Uno) do próprio Um, ainda que estejamos a falar das sombras bruxuleando nas paredes.
Ao seguir o assunto, Sproul irá alavancar outro tema: “Deus está no centro do neoplatonismo, que Plotino chamou de ‘o Uno’. Em última análise, diz Plotino, toda realidade flui ou emana do Uno. O Uno, porém, não cria, porque isso o ligaria a um ato de mudança. Em vez disso, o mundo emana necessariamente do Uno [...]. A realidade é estruturada em camadas ou modos que emanam do Uno. Quanto mais longe a realidade fica do cerne do Uno, mais material ela se torna” (SPROUL, p. 57). A emanação, já previamente mencionada, precisa ser estudada. É um conceito caríssimo ao neoplatonismo, e precisa ser analisada com cuidado. Não obstante, compreender os conceitos sobre o Uno se sobrepõe a esse tema. Compreendamos, pois, o Uno, segundo Plotino.

O UNO

Plotino diz algumas coisas bem pontuais sobre o Uno. Para começar, ele é ‘Uno’. Nash expõe: “Dizer que Deus é Um implica que Deus é transcendente e simples (sem partes), e não contém potencialidades ou limitações de corpo. Deus transcende todas as distinções [...] O Um possui autoconsciência imediata” (NASH, p. 138). Aqui há transcendência, unidade (ou falta de partes), e, tal como o ‘motor imóvel’ de Aristóteles, atualidade pura. Linguiti complementa: “O Um, chamado frequentemente também de ‘Bem’, ‘Deus’ ou ‘Primeiro’ é o fundamento de todas as coisas, absolutamente simples e único: como causa universal de todas as coisas, infinitamente poderoso, ele é o princípio de que tudo emana e para o qual tudo deseja retornar” (PRADEAU, p. 106). Temos um termo que o identifica com um dos candidatos a divindade de Platão: ‘Bem’. Também acrescentamos que o Uno é a causa de todas as coisas; onipotente; de onde tudo vem e para onde tudo deseja voltar. Até aqui não há muitos problemas. A coisa complica quando predica-se ao Uno (um tanto quanto com incoerência), o que Linguiti prossegue: “Tomando como ponto de partida a descrição platônica do Bem ‘acima do Ser em dignidade e em poder’, Plotino coloca seu princípio supremo acima dos paradigmas ideais (o Ser, justamente), acima inclusive do espírito divino (o Intelecto) que os pensa” (PRADEAU, p. 106). Isso abrirá uma discussão enorme sobre o Uno. Plotino o predica com a inefabilidade. É como se ele estivesse acima do próprio Ser. É um ente acima do ente, um ser acima do ser, que deve superar o ser em todas as potencialidades, inclusive a de simplesmente ser.

A INEFABILIDADE DO UNO

Antes de mais nada “é preciso, no entanto, lembrar que Plotino, em seus raciocínios, quase nunca parte do Um; em outras palavras, ele não coloca o princípio supremo sem explicar as razões que o levaram a postular sua existência; ele aí chega, ao contrário, a partir da discussão de questões que dizem respeito à estrutura do mundo inteligível ou à dimensão humana concreta, quer dizer, aquela de uma alma encarnada, imersa na diversidade e na imperfeição relativa do mundo sensível” (PRADEAU, p. 104-105). Portanto, o que ele afirma sobre o Um e sobre a realidade (ou seja, suas asserções metafísicas) é a posteriori, fruto de elucubrações. A estrutura do mundo, o fato de a alma estar encarnada e em contato com o mundo sensível (e uma série de pressuposições platônicas) fizeram-lhe concluir sobre o Um.
Bom, dado que, como dissemos, esse Deus está acima do nível do Ser, “o Uno em si é inefável. Ele não pode ser captado pela razão nem percebido pelos sentidos. É conhecido somente pela intuição ou percepção mística. [...] podemos dizer sobre Deus somente o que ele não é” (SPROUL, p. 57). Claro, no momento oportuno falaremos dessa intuição mística. Por agora, destaquemos que os métodos clássicos de conhecimento, pela razão ou pelos sentidos, não apreendem ao Uno. A alternativa é a predicação negativa, ou seja, dizer o que o Uno não é*.
Nash avança na exposição, acrescentando que a linguagem humana é incapaz de dizer algo sobre o Uno: “O ápice do universo de Plotino é um deus supremo, transcendente e desconhecido que ele chamou de o Um ou o Bem. Tal deus está tão distante acima e tão diferente de qualquer coisa que os humanos possam conhecer que a linguagem humana é incapaz de expressar qualquer verdade literal a seu respeito.” (NASH, p. 135).
É o mesmo autor quem tenta nos trazer uma luz sobre o porquê de Plotino insistir na ‘não-predicação’ do Uno: “O que Plotino quer dizer quando se refere a Deus como sendo o Um? Parece claro que ele sugere que Deus é puro, uma unidade não-diferenciada, isto é, que não contém partes. Plotino ensinou também que o Um está ‘acima de todos os seres’ [...]. Isso significa, pelo menos, duas coisas: o Um é transcendente [...]; uma vez que está acima de ser, o Um não pode possuir quaisquer qualidades ou propriedades, o que corresponde a dizer que ele é não conhecível. Tão logo atribuímos qualquer propriedade ou característica ao Um efetivamente negamos sua unidade. [...] introduzimos um dualismo no Um por meio da distinção entre sujeito e predicado. E tão logo o dualismo seja introduzido em sua natureza ele deixa de ser o Um [...]. De acordo com Plotino, nem sequer deveríamos atribuir existência ao Um” (NASH, p. 137-138). Portanto, não podemos predicar nada sobre o Uno, pois, fazê-lo, atribuir-lhe quaisquer das 10 categorias aristotélicas (até mesmo a substância primária), é reduzi-lo ao nível do ser. É um completo mistério.
Linguiti confirma, ampliando a discussão sobre o assunto: “Sendo dadas as qualidades próprias de sua natureza, o Um não admite ser descrito por definições negativas: de fato, nenhuma qualificação ou definição positiva, aí incluídas aquelas de ‘causa’, ‘princípio’, ‘bem’, ou mesmo ‘um’, poderia dar conta convenientemente de sua absoluta necessidade e de sua incomensurável superioridade. Muitas passagens [...] descrevem, portanto, o Um como não possuindo nem limites, nem figura, nem partes, não derivando nem de um deus, nem de algum lugar, não estando nem em movimento nem em repouso, permanecendo fora do tempo, sem qualidade, sem qualquer forma de ser, não sendo nem ‘algo’, nem ‘um’ também, inefável, incognoscível etc.; por meio desta ‘teologia negativa’ sistemática Plotino recusa, em suma, todos os atributos que são negados ao Um da primeira hipótese do Parmênides, o diálogo platônico que, no platonismo tardio, destitui o Timeu de sua preeminência” (PRADEAU, p. 106). Ou seja, aqui Linguiti está em franco conflito com Sproul. Mas não precisamos coloca-los para brigar. O problema está na incoerência de Plotino, e não nos dois filósofos contemporâneos. Prova disso, é a sequência do texto de Linguiti, onde se emprega muitas expressões negativas sobre o Um, e nota que até mesmo a unidade lhe é negada. Aliás, no final das contas, nega-se qualquer predicado ao Um. Ele é aquilo que não admite qualquer discurso sobre, nem mesmo o discurso de sua existência. Mas, claro, o sistema de Plotino não para de falar sobre...

EMANAÇÃO

Ronald Nash nos diz o seguinte: “Ele [Plotino], certamente, rejeitou uma interpretação literal da teoria de Platão sobre a criação, apresentada em Timeu. Plotino explicava a relação dos níveis da mente e da alma com o Um como resultado daquilo que ele chamou de emanação” (NASH, p. 138). Plotino poderia ser considerado um subversor de Platão (e, em muitos sentidos ele o é, nitidamente). Mas acontece que o próprio sábio ateniense era muito controverso, e parecia tergiversar em muitos pontos. Portanto, ao passo que ele está rejeitando o Timeu, está abraçando parte dele e particularmente está levando elementos também de outra obra, o diálogo ‘Parmênides’, a derivar determinados corolários.
Stumpf nos explica como Plotino desenvolve o tema: “Se Deus é Um, ele não pode criar, pois criação é um ato, e atividade, diz Plotino, implica mudança. [...] Esforçando-se par manter uma visão consistente da unidade Deus, Plotino explica a origem das coisas, dizendo que elas vieram de Deus, não por meio de um ato livre de criação, mas em função de ‘necessidade’. Para expressar o que entendia por ‘necessidade’, Plotino usou diversas metáforas, especialmente a metáfora da emanação. As coisas emanaram, fluíram de Deus da mesma maneiras que a luz emana do Sol [...]. O Sol jamais se exaure, ele jamais faz coisa nenhuma, ele apenas é, e sendo o que é, ele simplesmente emana luz. Desse modo, Deus é a fonte de todas as coisas, e toda essas coisas manifestam Deus. Mas nada é igual a Deus, não mais do que os raios de luz se equiparam, de algum modo, à luz do Sol” (STUMPF apud NASH, p. 139). Dessa citação temos a observação de que Plotino teve de desenvolver a doutrina da emanação para não dar qualquer atividade ao Um. Além disso, ao mesmo tempo que afirma o monismo panteísta, faz diferenciações entre o Uno e suas ‘derivações’.
Mas, claro, não podemos parar por aqui. Ainda não entendemos como é que essa emanação se dá. Linguiti é quem engendra uma explicação para nós: “a maneira como, a partir do um, é engendrada a hipóstase que decorre dele é bastante particular. O Ser-Intelecto emana de fato do Um, pois é a partir desse último que se difunde primeiro a potência (dynamis) ainda indistinta que, chegada a um certo ponto, detém-se, retorna para sua origem – que é o próprio Um – para contemplá-lo: é somente nesse momento que o Ser-Intelecto se determina, tomando forma em suas estruturas típicas, quer dizer, nas ideais” (PRADEAU, p. 106). Ou seja, pensemos, primeiro, na emanação de um Ser-Intelecto (um grau novo na escala hierárquica, que nenhum outro autor menciona) proveniente do Uno. Depois de ‘afastar-se’ um pouco do Um, ele se volta e contempla o Um. É a partir desse momento que essa mente é preenchida por pensamentos, e esses são as ideias. O primeiro grau, o ‘nous’, se apresenta a nós.
Linguiti segue: “Há, portanto, uma energia que surge, por superabundância, do princípio superior, se volta para sua origem no desejo de contemplá-la*, e, quando uma visão-pensamento assim se realiza, constitui-se então um novo estado da realidade, estável e autônomo” (PRADEAU, p.). O termo ‘superabundância’ nos lembra a explicação de Nash para o fato de o Uno produzir essa primeira emanação, o nous. “A progressão do Um à mente ocorre espontaneamente sem qualquer escolha, vontade, plano ou atividade da parte do Um. Plotino crê que se algo é perfeito necessariamente dá origem a outras coisas. Assim, os mundos do intelecto, da alma e do corpo emanam de Deus sem diminuir Deus em nenhum sentido. Mas o Um não opera de modo volitivo. É necessário e inevitável que, se algo é pleno, tenha de transbordar” (NASH, p. 139). Portanto, o conceito pressuposto aqui é que um ser perfeito, pleno, ‘sobra’, excede-se e, portanto, tem que emanar. Claro, é uma proposta sem prova alguma, mas é um dos fundamentos de todo o sistema. Embora iremos criticá-lo posteriormente, não podemos deixar de notar tão grave defeito assim que nos aparece. Mas, seja como for, continuemos a compreender a estrutura.
Vale a pena chamarmos a atenção para o fato de que Linguiti dá certa ‘autonomia’ à nova realidade que surge no processo de determinada hipóstase (ou seja, subsistência, grau de emanação) voltar-se para contemplar sua fonte. A propósito, esta é a ‘gênesis’ de cada camada da realidade, e não só das ideias, como atesta Linguiti: “Um processo análogo caracteriza a gênese de outros estados da realidade” (PRADEAU, p.).
Linguiti avança: “como prova o vocabulário que Plotino emprega, a energia que a cada nível se desliga do superior para produzir o inferior, é uma espécie de pensamento, de contemplação intelectual (teoria); resulta disso que o conjunto da realidade, considerada desse ponto de vista, não é outra coisa senão o pensamento ou o resultado da atividade do pensamento” (PRADEAU, p. 106-107). Portanto, a energia que, duma instância superior, produz a inferior subsequente é essencialmente pensamento e a atividade de um pensamento. Desse modo, podemos conceber que o ‘Ser-Intelecto’ pensa as ideias, que, por sua vez, pensam a alma, que, por sua vez pensam a matéria. Para brilhar os olhos de filósofos como Arthur Schopenhauer e George Berkeley, a realidade não seria outra coisa senão pensamento.
É importante destacar da explicação que fizemos, alhures, de Stumpf, que esse processo de emanação não tem propriedade cronológica, e, portanto, é de teor tão somente ontológico, como confirma Nash: “Plotino usa a imagem da emanação da luz, irradiando de uma fonte primária, para sugerir que Deus e o mundo (todos os níveis de ser que emanam do Um) são co-eternos. Se assumirmos que a fonte de luz seja eterna, os raios de luz também terão de ser eternos [...] O processo de emanação significa que aquilo que teria permanecido mera potencialidade no Um é atualizado no mundo” (NASH, p. 139).

NOUS

Bom, vimos que a primeira emanação é o Ser-Intelecto, ou seja, surge o ser (já que o Uno está acima do ser), que tem por propriedade essencial ser um intelecto. E esse intelecto, ao contemplar o Um, fica ‘cheio’ de ideias. Essa distinção não é observada, mas, a título de completude, vale a pena ressaltá-la. Vejamos Nash mencionar essa hipóstase: “O primeiro nível, que emana ou flui do Um, é a mente ou inteligência. [...] Uma das maneiras de entender nous é pensar a seu respeito em termos de resultado do pensamento de Deus. Vários filósofo entre Platão e Plotino foram além de Platão, interpretando as formas como ideias eternas na mente de Deus. Plotino adota esta posição e vai além de seus predecessores” (NASH, p. 135-136). Um dos pensadores que interpreta as ideias como os pensamentos de Deus é Filo, um filósofo judeu do primeiro século da era cristã. Claro, essa é uma nova subversão a Platão. Um tanto quanto repetindo Nash, citemos Linguiti: “No debate sobre o lugar e a natureza das ideias, quer dizer, sobre a relação que existe entre elas e a inteligência do Deus-demiurgo [...] Plotino interveio de maneira completamente original. A maioria dos platônicos contemporâneos acreditava que as ideias tinham uma existência autônoma, portanto, exterior ao intelecto divino; ao contrário, Plotino se colocará atrás daqueles que [....] tinham situado os arquétipos ideais* diretamente no interior do espírito divino, julgando que eles eram, falando propriamente, os ‘pensamentos de Deus’” (PRADEAU, p.). É interessante que o autor nota haver uma ortodoxia platônica que seguia o mestre e dava autonomia ontológica para as ideias, que eram usadas pelo Demiurgo para modelar a matéria, como já foi visto na metafísica de Aristocles (Platão). Agora, onde está a originalidade de Plotino falada por Linguiti? E onde foi que ele foi além de seus predecessores, como diz Nash?
É com Linguiti que temos o esclarecimento: “No entanto, a grande novidade foi conceber as ideias não mais somente como conteúdos ou instrumentos da inteligência divina, mas verdadeiramente como espíritos pensantes. Uma vez abolida a figura mística do Demiurgo, Plotino concedeu então a segunda hipóstase como o conjunto de uma pluralidade de entidades que são ao mesmo tempo ideias e faculdades de compreender; em suma, para ele, ser e pensamento não são mais coisas distintas ou, no melhor dos casos, unidos no mesmo lugar –o espírito divino –, mas não absolutamente idênticos” (PRADEAU, p.). Não há mais um demiurgo que usa as ideias. As ideias são, elas mesmas, ‘seres vivos’, ou seja, ao mesmo tempo que são, por definição, coisas que permeiam o pensamento, são também entidades pensantes. Nisso ninguém havia pensado. Pensamento e ser estão unidos não na mente de um Deus, que pensa e o que pensa é o que existe, mas nas próprias existências relativamente autônomas das ideias. Seguindo a estrutura dialética de Platão, Plotino segue concebendo o seguinte: “A identidade entre o pensamento e o que é pensado não é imaginada por Plotino de maneira estática, mas no quadro de um movimento espiritual, de uma ‘vida’, onde as ideias não param de se pensar a si mesmas junto com a totalidade orgânica que elas constituem. Em razão da interpretação total e recíproca que caracteriza o mundo ideal, cada ideia é ao mesmo tempo ela mesma e as outras; ela tem um conhecimento intuitivo de si mesma e de todas as outras, sem por isso perder sua autonomia e sua individualidade” (PRADEAU, p. 107-108). Ou seja, cada ideia está não apenas intuitivamente consciente de si mesma, mas também está consciente de todas as outras ideias. Mesmo assim, não perde sua particularidade, sua individualidade. Isso é difícil de conceber, visto que são essencialmente uma ideia, ou seja, um pensamento e, ao pensar em outra coisa, acoplam ao seu ser outros pensamentos, que, por sua vez, são outros seres. Linguiti nos conta de uma tentativa de ilustração: “Para ilustrar esse caráter particular – e em muitos aspectos – da natureza das ideias, Plotino os compara com os teoremas de uma ciência única na qual cada teorema só aparentemente é ele mesmo, mas implica na realidade todos os outros, quer sejam antecedentes ou consecutivos e, portanto, a totalidade da ciência em questão” (PRADEAU, p. 108). Ou seja, ao mesmo tempo que determinada proposição é ela mesma, ela pode implicar necessariamente uma série de outras proposições, e, assim, a necessidade lógica faz com que, na existência de uma proposição, todos os corolários existam consequentemente.

A PSIQUÊ

Depois da hipostáse do Ser-Intelecto, há uma nova emanação, mais complexa e 'fragmentada'. É a hipostáse da 'alma', ou 'psiquê', ou ainda 'nível psíquico'. Nash enuncia a emanação de modo simples: “Assim como o Um dá origem ao nível da mente, a mente, por sua vez, dá origem ao nível da alma. [...] A separação de Plotino da mente e alma é uma reminiscência da distinção similar no sistema de Aristóteles. Conquanto Plotino pense a respeito da alma, aqui, em termos da consciência de vida de Aristóteles, sua ideia de alma está ligada essencialmente à mente” (NASH, p. 136). O Uno deriva o Nous; o Nous deriva o Psiquê e, este, por fim, derivará o mundo material. É claro que há muito a se expandir aqui. É o que faremos. Cabe-nos observar que a ideia de alma de Plotino, segundo Nash, está vinculada à ideia de consciência de vida, como em Aristóteles, mas também diz respeito a algum nível mental. Ter alma é ter, em algum sentido, uma mente.
Enfim, Linguiti nos informa que o processo de derivação é semelhante ao da derivação anterior: “A alma deriva do Ser-Intelecto em virtude de um processo análogo àquele pelo qual a segunda hipóstase deriva do Um; em relação ao Ser –Intelecto do qual ela deriva, ela é degradada, visto que dá forma e vida ao corporal" (PRADEAU, p. 10...). Mas nesse nível, há um número muito complexo de variações e subníveis ontológicos. Linguiti nos diz que Plotino não está muito interessado em distinções aqui: "Plotino não se preocupa absolutamente com ser preciso quanto às diversas articulações do nível psíquico" (PRADEAU, p. 10..). Esse é um grande problema, para nós e para ele. Mesmo assim, Linguiti e Ronald Nash tentam alguma compreensão das nuances, e iremos segui-los.
Linguiti parece dizer haver apenas dois níveis mais abrangentes: um nível que parece apenas ideal, e o nível cósmico, que abrange as almas individuais: "grosso modo, pode-se dizer que depois da Alma hipostálica se encontra a Alma do mundo e com ela as almas individuais, que são de uma natureza próxima à sua (a influência do Timeu é evidente)" (PRADEAU, p. 10...). Há, pois, uma alma cósmica da qual derivam todas as almas individuais. Esse é um ponto pacífico entre os autores. Plotino parece ser bem claro aqui: “Pense em uma cidade que tenha alma. A alma da cidade seria a mais perfeita e mais poderosa. O que impediria que as almas dos habitantes da cidade fossem da mesma natureza que a alma da cidade? Ou, de novo, tome o fogo universal de onde vêm os demais grades e pequenos fogos individuais; todos estes têm uma essência comum, isto é, a do fogo universal” (PLOTINO apud NASH, p. 141). As almas derivadas, portanto, são da mesma natureza que a alma cósmica, como uma gota d'água retirada de um rio tem a mesma composição.
Mas não entendemos o que seria essa alma hipostálica a que Linguiti se refere, e, de fato, Nash não a menciona: “O nível superior é a alma cósmica ou alma do mundo [...]. O nível médio é a fonte de Plotino para toda particular instância da vida no universo. [...] Quando os seres vivos morrem, suas almas são absorvidas pela alma do mundo. De maneira não muito clara, o nível inferior da alma origina o corpo em geral e os corpos específicos. Somente o nível inferior da alma é a fonte da matéria que entra em contato direto com os corpos” (NASH, p. 142). Linguiti também observa que existe esse nível inferior da alma, mas parece haver uma diferença entre o entendimento que eles têm sobre a ontologia do nível psíquico. Vejamos as palavras de Linguiti: "e que todas essas almas, tanto a alma coletiva quanto as almas individuais, têm uma dimensão superior, voltada para o inteligível, e uma dimensão inferior (Natureza), voltada para a produção do sensível” (PRADEAU, p. 108-109). Portanto, tentemos traduzir. Nash parece dizer que o nível psíquico é subdivido em três partes: a alma cósmica; a alma média de onde surgem as almas individuais que, ao morrerem, voltam para a alma cósmica; e a alma inferior que, de alguma forma não muito clara, emana a matéria. Apenas essa 'parte' inferior, continua o filósofo, é a fonte da matéria, e as partes média e superior não têm nada a ver com isso. Mas Linguiti parece dizer que o desenho dessa hipostáse psíquica configura-se um pouco diferente: ele diz haver um nível maior, uma alma hipostálica; e um nível derivado, a alma cósmica, onde estão as almas individuais, aparentemente como se estivessem num aprisco. E, tanto a alma cósmica quanto as almas que dela derivam participam tanto da nous (mente, inteligência) quanto da criação e interação com o mundo material. Obviamente Nash e Linguiti discordam um do outro. Somente um estudo nos originais poderão, talvez (afinal, Linguiti diz que Plotino é obscuro, misterioso, e talvez seja confuso e contraditório por natureza, per si), resolver a questão. O importante, por hora, é saber que há uma alma cósmica que abrange as almas individuais e que esse nível emana a matéria.

Mas a coisa fica ainda mais complexa. Na medida em que há um regresso ontológico, há um progresso numérico. Aqui Plotino está seguindo mais a Aristóteles ao distinguir mente e alma, e ao pensar nos níveis diferentes de almas, como alma humana (racional), animal e vegetal. Percebam que é exatamente isso que Nash ensina: “Tal como Aristóteles, Plotino separa mente e alma. Cada alma em particular (coisa vivas) é uma extensão da alma cósmica. Do mesmo modo que Aristóteles cria que houvesse distinção entre almas vegetais, animais e racionais, Plotino cria [...]. Todos esses três níveis da alma são extensão da alma cósmica. Á medida que se move para baixo nos vários níveis da alma, há crescente multiplicidade. O mundo contém mais corpos do que almas, mas almas do que mentes, e assim por diante” (NASH, p. 141). O mesmo autor faz uma citação da qual podemos fazer mais inferências: “da alma vêm almas que diferem em graus de racionalidade, pois só assim pode haver uma ordem hierárquica de seres animados” (O’BRIEN apud NASH, p. 141). Ou seja, a racionalidade vai degradando-se, de modo que o princípio de todas as almas pode ser considerada a racionalidade pura e/ou plena.

Aqui faz-se necessárias algumas prolepses. É na matéria que Plotino faz residir o mal. Só que essa afirmação é problemática para seu sistema. “Por mais que quisesse evitar qualquer sugestão de que almas particulares decaiam para o mal, Plotino não pôde escapar ao fato de que suas próprias palavras implicam que seja assim. Enquanto em seu túmulo corpóreo, a alma se envolve com o mal, sofrimentos, problemas, medos e desejos" (NASH, p. 14...). Ou seja, Plotino fala das almas como se encarnando nos corpos que delas são derivados. Ele fala desse evento como uma Queda (talvez tomando e reconotando o termo do cristianismo, com quem dialogava apologeticamente), e parece indicar, por um lado, que é um efeito derivado da liberdade humana, da liberdade das almas, ao mesmo tempo que considera uma necessidade metafísica, ou seja, uma necessidade divina: "Plotino também usa uma linguagem que implica que almas individuais se cansam de viver no âmbito da alma do mundo. Consequentemente, as almas particulares escolhem romper com a alma do mundo e se colocar sob o controle dos sentidos físicos. Ainda que a noção de Plotino a respeito da queda da alma envolva, em certo sentido obscuro, a liberdade humana, esta é também uma necessidade da parte de Deus" (NASH, p. 14...).

Dessa doutrina, Nash observa dois problemas. O primeiro é o óbvio, já observado, de que Plotino parece fazer o seus sistema necessariamente 'macular' a alma, de modo que a experiência dela com o mal torne-se necessária e inexorável. Mas Plotino tenta fugir por algumas vias duvidosas: "Mesmo que a queda permita que a alma aprenda sobre o mal, Plotino crê que nenhum dano haverá se a alma se recusar a permanecer em sua união com o corpo. Para Plotino, a queda da alma produz algo de grande valor, porque possibilita a potencialidade de as almas vegetativas e sensíveis se realizarem; sem tal queda, as almas vegetativas e sensíveis existiriam sem propósito. Obviamente, teria sido melhor para a alma ter permanecido no mundo superior. Deveríamos nos lembrar, entretanto, de que a alma é, por natureza, uma intermediária entre dois mundos, o mundo acima, da inteligência, e o mundo abaixo, do corpo. A alma tem de entrar em contato com o mundo físico, com a realidade dos sentidos. E, embora a decadência da alma a coloque em contato com o mal, isso tem a vantagem de implementar seu conhecimento do bem. Nenhuma alma está desesperadamente perdida no âmbito da sensação corpórea. A possibilidade de salvação está sempre aí. Mas o que isso significa e há qualquer coisa que suporte essa especulação?” (NASH, p. 146-147).
Vamos tentar desfragmentar esse parágrafo de Nash. Parece que Plotino está dizendo que há alguma necessidade metafísica nessa queda: "Deveríamos nos lembrar, entretanto, de que a alma é, por natureza, uma intermediária entre dois mundos, o mundo acima, da inteligência, e o mundo abaixo, do corpo. A alma tem de entrar em contato com o mundo físico, com a realidade dos sentidos". Portanto, a realidade e sua natureza demandam tal 'contato' da alma com a matéria.
Em seguida, Plotino parece dizer que, embora a queda proporcione o contato, a alma pode ficar imaculada se ela não se 'conformar' em permanecer em contato com a carne: "Mesmo que a queda permita que a alma aprenda sobre o mal, Plotino crê que nenhum dano haverá se a alma se recusar a permanecer em sua união com o corpo". Ok, mas, e daí? Ela ainda PODE entrar em contato com o mal e recusar-se à elevar-se para o 'mundo psíquico' novamente. E daí ainda há outro problema aqui mesmo. Vimos que a alma 'se cansa' de habitar essa realidade e, então, cai. Mas, o que garante que ela não vai se enfadar de novo?
Talvez a resposta esteja nesse novo ponto: " E, embora a decadência da alma a coloque em contato com o mal, isso tem a vantagem de implementar seu conhecimento do bem". Em outras palavras, é como se o conhecimento do mal criasse maior apreço pelo bem. Entretanto, esse pensamento é perigoso. Ele diz que o pleno bem desfrutado por si mesmo não é suficientemente satisfatório e só se torna imprescindivelmente agradável quando experimentamos 'algo pior', 'menos bom' ou de qualidade inferior. Pensamento delicado...
Há, por fim, outro ponto a ser explorado no parágrafo: "...a queda da alma produz algo de grande valor, porque possibilita a potencialidade de as almas vegetativas e sensíveis se realizarem; sem tal queda, as almas vegetativas e sensíveis existiriam sem propósito". Então esse propósito seria soerguer-se? Voltar ao estado original, que foi preterido? Sem a queda não haveria de fato, nesse sistema, seres sensíveis e plantas. Então, essa é uma questão deveras complicada para Plotino. Ele parece fazer do sentido da existência a 'salvação', mas Nash é bem pertinente ao perguntar o que, raios, seria isso.

Uma nova citação de Nash encerra Plotino em mais problemas: “A propensão de Plotino para complexidades e aparentes contradições vem à tona quando ele ensina que as almas humanas particulares têm um tipo de união na alma do mundo. Por mais que isso pareça ser uma negação da imortalidade pessoal, Plotino insiste que cada alma humana é real e imortal. [...] Ele crê também na imortalidade da alma das plantas e dos animais. É fácil chegar a um ponto em que se pense que o melhor caminho para se introduzir rigor na posição madura de Plotino em relação à imortalidade é manter que todas as almas de plantas e de animais perderiam sua identidade para se tornar parte da alma do mundo. Se esse for o destino de baratas e tomates, a consistência requer que se creia que o mesmo acontece com Sócrates, a despeito do que Plotino diga sobre a imortalidade” (NASH, p. 147).

Plotino defende abertamente a realidade isolada e a imortalidade da alma individual. Mas então ele fala da união com a alma do mundo, e fala também da imortalidade das almas das plantas e animais. E, sua posição madura parece dizer que a alma das plantas e animais perderiam sua identidade ao ascenderem e serem absorvidas na alma do mundo. É difícil como não concluir que o mesmo se dê com as almas humanas, ou seja, elas também, no processo de ascensão, iriam unir-se à alma do mundo e perder sua identidade.

A MATÉRIA

Chegamos à última hipostáse. Aqui, como é de praxe com Plotino, há uma miríade de controversias e dificuldades. Ronald Nash explana de forma sucinta, para que possamos nos extender: “Abaixo dos nívels de Deus (o Um), da mente (nous) e da alma, existe no universo um grande número de corpos ou entidades físicas. E, logo abaixo deles, se oculta a matéria primária que encontramos no sistema de Aristóteles. Em uma maneira difícil de entender, o nível do corpo flui do nível da alma” (NASH, p. 136). Portanto, aqui, temos uma divisão, uma dupla de subsistência da realidade, ou seja, a última hipostáse é composta do mundo sensível e da matéria. Nash já antecipa outra dificuldade: como a alma emana a matéria é algo muito obscuro, diríamos até mesmo que misterioso.
Antes de tecer mais detalhes sobre esse nível ontológico, vamos nos lembrar qual a dinâmica metafísica de Plotino, e, para isso, evoquemos a Jostein Gaarder: “Plotino via o mundo como algo distendido entre dois polos. Numa extremidade estava a luz divina, que ele chamava de o Uno. Às vezes ele também a chamava de Deus. Na outra extremidade reinavam trevas absolutas, que não eram banhadas pela luz do Uno. Mas Plotino achava que essas trevas de fato não tinham uma existência concreta. Para ele, elas nada mais eram do que a ausência de luz. Ou seja, as trevas não são. A única coisa que existe para ele é Deus, ou o Uno. [...] a luz do Uno ilumina a alma, ao passo que a matéria são as trevas, que não possuem uma existência real. Mas as formas da natureza também possuem, segundo ele, um tênue reflexo do Uno” (GAARDER, p. 152). Acreditamos que Gaarder esteja equivocado num ponto. Ele entende que as formas, ou seja, a realidade como se apresenta a nós, são o último bastião de realidade, e que a matéria primária não é nada, é não-ens, um 'não-ser'. Entretanto, já aprendemos com Parmênides que o não ser não pode nem mesmo ser concebido*, quanto mais ter qualquer propriedade. Por isso, acreditamos que é mais feliz colocar a questão assim: “Plotino explica a presença da matéria no universo de modo singular. Trevas totais (ausência de luz) é a matéria primária. Conquanto a matéria seja um fator importante na existência do mundo físico, em seu estado mais distante do Um, ela acaba sendo a plataforma inferior do universo. [...] Somente a luz existe; o não-ser é escuridão. [...] Quanto mais alguém se aproxima de Deus, mais concentrado é o seu ser (luz). Quanto mais alguém se afasta de Deus, mais difuso é o seu ser (luz). [...] Quanto mais distante alguma coisa existente estiver de sua fonte, o Um, mais próxima estará de não-ser (trevas). [...] entre a luz mais fraca e as trevas – chegamos à matéria primária. No nível mais baixo da realidade está a matéria primária, a qual paira na beira do nada” (NASH, p. 143-144). Ou seja, o limiar, o extremo limite entre o ser e o não ser, aquilo que quase desaparece no crepúsculo do 'ens', é a matéria. Ela existe, embora quase não exista. E essa privação de existência é, justamente, a privação do bem. Nível ontológico e benignidade, pois, estão intimamente relacionados.
Vamos ampliar. Há mais distinções a serem feitas, e Linguiti, aqui, nos guiará: “Além disso, o dinamismo intelectual constitui a essência das ideias e, por conseguinte, de toda a realidade, que é uma cópia das ideias. No entanto, o mundo sensível não é a primeira cópia do mundo inteligível, visto que Plotino, pela utilização repetida da relação platônica de modelo/imagem e pela exploração exagerada de algumas indicações contidas no Timeu, multiplica os níveis das entidades ideais; as ideias que se encontram na Alma, chamadas também de logois (princípios racionais) primários, são, de acordo com ele, imagens esvaziadas das ideias que se encontram no Ser-Intelecto, enquanto que os ‘traços’ das ideias que se encontram na natureza ou logoi secundários, são imagens esvaziadas das ideais que residem na alma. Resulta disso que os logoi, que finalmente dão forma aos compostos sensíveis, não são outra coisa senão cópias de cópias de ideais” (PRADEAU, p. 108). Linguiti está ensinando que, naquele processo já estudado de derivação, as almas contemplam as ideias do Ser-Intelecto e, por sua vez, retém dentro de si cópias dessas ideias. Por sua vez, essas ideias são copiadas na criação da natureza. Portanto, o que temos no mundo sensível é uma cópia da cópia. Embora Platão seja retratado como acreditando em basicamente duas instâncias ontológicas: mundo sensível e mundo das ideias, Plotino amplia muito os níveis da realidade, embora pareça estar seguindo as indicações do Timeu, ampliando-as, desenvolvendo-as.
Linguiti continua: “O tema da matéria presente com muitos aspectos é objeto de discussões. Parece, no entanto, que, para Plotino, a matéria não é engendrada senão uma única vez e para a eternidade (no sentido de que ela está fora do tempo) pela Natureza, ou ainda pela parte inferior da Alma. Plotino descreve muito frequentemente a matéria como um puro não ser caracterizado pela privação, pela esterilidade e pela ausência total de vida. Resulta dessas premissas o seguinte: dizer que as formas ideais ou logoi se encontram na matéria é inadequado, já que esta última não é mais também um substrato capaz de acolhê-las; os logoi não fazem parte da matéria senão na aparência, visto que eles se unem a ela sem modificá-la, nem determiná-la de qualquer maneira que seja: a matéria não é, no melhor dos casos, senão uma espécie de espelho inerte, no qual as formas produzem um reflexo aparente (ou seja, ele não reproduz fielmente os traços do princípio formal), incoerente e fugaz” (PRADEAU, p. 109). Uma única engendrada da parte inferior da alma dá à luz as trevas, i. é., faz surgir a matéria. Portanto, enquanto as demais realidade são constantemente pensadas pelas próprias ideias e pela alma, a matéria não. Entretanto, isso se deu fora do tempo, e a linguagem aqui torna-se delicadamente simbolica. É como se Plotino quisesse dizer que há uma relação diferenciada entre a alma e o mundo inferior, sensível. E Linguiti expande essa relação. As logoi (primeiras cópias) não podem residir na matéria primária. Seria uma 'corrupção ontológica'. A matéria não pode acolher as ideias, pois é uma realidade tão medíocre que não tem essa propriedade. As ideias unem-se à matéria sem modificá-la. Como? O que vemos é apenas aparência, e não as ideias em si, e na matéria, temos, na melhor das hipóteses, um espelho para as ideias, refletindo-as como um espelho embaçado.

Temos de prosseguir para encarar os problemas e implicações mais pesados do sistema. Um resumo do que foi dito seria que a parte inferior do mundo psíquico, o nível ontológico imediatamente inferior, de alguma forma misteriosa gera o mundo mais basilar, o mundo sensível. Na verdade, cria-se a matéria e reflete-se as ideias copiadas do mundo da mente (nous). A matéria é o último alcance das luzes do Uno, mas ali a luz é muito fraca, e mistura-se à escuridão.

Ronald Nash então nos apresenta a problemática da vez: "ele se torna, algumas vezes, perigosamente próximo da teoria gnóstica de que a matéria aprisiona a alma... e de um sistema completamente dualista. Em tal visão, a matéria se torna o princípio do mal. Seria preciso demonstrar como qualquer movimento na direção do dualismo apresenta sérias incoerência para o sistema de Plotino, tornando-o gnóstico (movimento a que ele opõe, explicitamente) e fazendo de relato sobre o Um uma retórica vazia? Filósofos que representam o movimento conhecido como medioplatonismo têm arguido se a matéria primárias contribuiria ativamente para a existência do mal ou se ela seria uma entidade sem forma e neutra em relação ao mal. Plotino, de maneira inconsistente, ladeia ambas as posições" (NASH, p. 146). Nash faz observações pesadas aqui. Se todas as emanações são necessidades metafísicas, e a matéria prima acaba sendo igualmente necessária, então temos um dualismo metafísico. Bem e mal coexistem eternamente. Isso se aproxima do maniqueísmo, e Plotino tinha horror a esta posição. Por outro lado, quando se fala da queda da alma, e sua sequente subordinação ao corpo, então estamos bem próximos ao gnostismo (que não deixa de ser platonista). Tal posição também está longe de cair nas graças do filósofo.

Linguiti observa que há um paradoxo nas posições de Plotino. “Tratando-se do mundo sensível, resultado da interação entre a matéria e os princípios ideais, o pensamento de Plotino varia muitas vezes. Opondo-se às doutrinas de tipo gnóstico que condenam absolutamente a corporeidade e imputam a um Demiurgo mau a criação do mundo sensível, Plotino reafirma com vigor a bondade do mundo sensível e sua origem divina e perfeita. De acordo com esta concepção, a beleza e a harmonia do cosmos visível refletem justamente a beleza e a harmonia do mundo inteligível” (PRADEAU, p.). Plotino não quer dizer que o mundo sensível é mau. Essa doutrina, que credita a origem do mal à criação do mundo sensível por um Demiurgo mal, e faz da corporeidade algo condenável é reprovada insistentemente por Plotino. Para ele, a beleza e harmonia do mundo sensível refletem o mundo inteligível, e credita sua criação às fontes divinas. Não existe um mal coeterno que existe em si, per si. Tudo que existe deve sua existência ao Uno e o mundo sensível reflete as perfeições emanadas dele mesmo.
Quanto ao mal? Teoria que Agostinho iria seguir e 'cristianizar',  o neoplatonismo segue assim:“sérias tensões e aparentes inconsistências ocorrem no tratamento de Plotino quanto ao mal. Ele leva certas implicações de usa teoria da emanação até as últimas conclusões. [...] ele sugere que deveríamos pensar acerca do mal em termos da ausência do bem, assim como as trevas são a ausência de luz” (NASH, p. 145). Iremos nos valer desse ponto para a resoução do paradoxo. Primeiro, demonstremos a proposta oposta.

“Quando, ao contrário, Plotino aborda as concepções aristotélicas ou materialistas, que negam a existência de uma esfera inteligível à parte e valorizam a experiência do prazer no sentido comum do termo, ele sublinha que o mundo dos corpos naturais é somente um pálido reflexo deformado das causas incorpóreas verdadeiras, tendentes a enganar o conhecimento e a perverter a moral” (PRADEAU, p. 110). Vejam bem, num determinado momento ele está falando que o mundo sensível é ótimo, maravilhoso e de origem divina. Noutra ocasião, diz ser ele enganoso e perversor. Num determinado momento, apresenta-se como monista, mas em outro, ao dizer que há bem e mal, parece um dualista. Como resolver toda essa confusão?

Mais adiante, Ronald Nash elabora as seguintes palavras: “Ele [Plotino] defendeu sua visão de que o bem está ligado à forma; porque a matéria primária, então, é desprovida de forma, a ausência de forma, nesse caso, parece liga-la ao mal. Isso parece forçar Plotino na direção de um tipo de dualismo no qual o bem e o mal existem em confronto como princípios co-eternos e co-iguais. [...] Tentando evitar qualquer espécie de dualismo, Plotino rejeita a crença de que a matéria exista em si mesma [...] O mal encontrado na matéria não é uma força positiva, como as trevas do mal do maniqueísmo. Ele é uma ausência de ser que passa suas deficiências para os corpos que não poderiam existir de outra maneira. Assim, a matéria primária se torna a razão para todas as imperfeições do mundo físico. É responsável também pela falha moral de almas humanas particulares” (NASH, p.146). Há dois argumentos aqui. Num, retornamos àquela questão de o mal ser apenas um parasita. Ele não existe de fato. A ausência de ser é que resulta em perfeição. As lacunas, os 'gaps' de ser são onde identificamos o mal. Interessante o novo argumento que Nash nos informa: a associação entre 'forma' é 'benignidade' de modo que, até o mundo sensível, acima da matéria prima bruta, tenhamos a bondade e a beleza como reflexos do mundo superior. Mas a matéria em si, onde se reflete os logoi primários (as ideias no mundo psíquico), contém pouca luz e, portanto, alguma quantidade de trevas e, por isso, o mal.
Linguiti acaba de desemaranhar a situação: “O papel da matéria e da corporeidade, do ponto de vista ético, é examinado principalmente no tratado [....] no qual Plotino julga que é na matéria que o mal primário, a origem de todo mal da alma, encontra lugar, ao mesmo tempo em que confirma a tese de que a matéria deriva de princípios superiores. Assim, de um lado, Plotino permanece fiel à teses monista que exclui a existência de um princípio negativo oposto, dede a origem, aos princípios supremos e, de outro, ele não hesita em sustentar a existência de um dualismo dos valores, de acordo com o qual a matéria é o princípio do mal moral, capaz de levar a alma humana para o que é inferior e negativo” (PRADEAU, p. 110). Portanto, Plotino está dizendo que, do ponto de vista moral, ético, há um dualismo, onde o mal reside na extremidade oposta do Uno. Mas metafisicamente ainda considera a matéria como derivada, em última instância, do próprio Uno, bem como toda realidade. Aqui, pelo menos, Plotino escapou.

O HOMEM

Como uma cosmovisão, claro, Plotino precisava falar algo mais sobre o homem. E ele o diferencia das demais realidades materiais. E é óbvio, também, que Plotino não elaboraria doutrinas fáceis aqui. Primeiramente, Gaarder observa que Plotino segue uma tradição antiga quanto à concepção sobre o homem: “o homem era uma criatura dual [...] Muito antes de Platão essa noção já era bastante difundida na Grécia. Além dela, Plotino conheciam também concepções asiáticas semelhantes” (GAARDER, p. 152). Em suma, o homem é parte material, corpórea e parte 'espiritual', 'imaterial.
Até aqui, tudo bem. Nenhuma dificuldade. Entretanto, a coisa complica quando formos ampliar o que Nash sintetiza nestas palavras: “os humanos participam dos níveis da mente, da alma e do corpo” (NASH, p. 136).

Ao que nos parece, segundo as exposições de Nash e Linguiti, o homem tem suas propriedades racionais por possuir uma mente, ou seja, sua alma é uma ideia original, que habita o mundo da mente (nous); mas também possui uma alma derivada da alma cósmica, proveniente do mundo psíquico. O que o diferencia do homem dos demais seres vivos, que também possuem alma, é justamente ele ter uma 'mente', ou seja, participa do 'nous'.

Quando falamos sobre a participação do homem no mundo da mente, no 'nous', temos o seguinte: “ Plotino distinguiu, pelo menos, dois níveis da mente, o superior e o inferior. Poderemos simplificar as coisas se virmos o nível superior da mente como a mente de Deus que contém as formas de Platão. Ainda que possamos pensar a respeito do nível de nous como a mente ou pensamentos de Deus, ela continua sendo distinta do Um. [...] Cada particular inteligência no mundo é uma extensão do nous cósmico. Há conexão ontológica entre a mente de particulares criaturas e a mente de Deus (nous). [...] Isso deu a Plotino uma resposta à questão de Platão sobre como a mente humana conhece as formas eternas. Os humanos conhecem as formas porque suas próprias mentes são extensões do nous cósmico, que é a habitação natural das formas” (NASH, p. 140). Plotino acreditava que o homem possui uma inteligência superior e uma inferior. Na superior, ele é uma extensão da nous cósmica. Não é a mente de Deus, mas é onde habitam as formas propriamente ditas, as ideias originais, que nasceram da contemplação do Ser-Inteligência ao Uno. É assim que Plotino respondeu a como o homem conhece às ideias: sua mente é parte do nous.
Aos nos lembrarmos de que no nível noético (nous) temos ideias que são entidades conceituais e também pensantes, ali encontraremos uma delas que é a própria alma humana! “Como uma espécie de ideia entre as ideias, esta parte da alma goza assim com a forma de pensamento própria da segunda hipóstase, ou seja, com a compreensão total e imediata das partes e do todo. Trata-se, assim, de uma intuição intelectual (noesis) que capta intemporalmente todos os inteligíveis em suas relações recíprocas, colocando-se assim acima do pensamento racional (dianoia), no sentido habitual destas palavras, onde o raciocínio se desenvolve no tempo e onde os conteúdos conceituais não estabelecem entre si senão relações parciais” (PRADEAU, p.). A importância desse conceito também é explorada por Linguiti: “Para Plotino, se é possível conhecer bem as realidade inteligíveis, é porque não é próprio da totalidade da alma humana decadente se encarnar no sensível de fato, uma parte permanece sempre no mundo das ideais, ao contrário do que pensam todos os outros intérpretes de Platão” (PRADEAU, p.). Eis, pois, algo inovador em Plotino. Com seu sistema ele garantiu um modo de explicar como o homem pode conhecer as formas.
E, ao falar de epistemologia é pertinente que mencionemos brevemente o que Nash observa: “A sensação depende do trabalho da alma imortal e imaterial em harmonia com o corpo” (NASH, p. 142). As sensações são um trabalho conjunto entre o corpo e a alma imortal e imaterial, onde temos a recepção e a intelecção. Aqui, provavelmente, Plotino segue a Platão em sua epistemologia.

A alma humana, segundo Linguiti, vive no mundo noético como uma ideia entre as demais ideias, e, por isso, tem intelecção imediata de todas as demais ideias. Com tal compreensão das demais realidades ideais, ela é praticamente 'onisciente', ou seja, sabe de todas as coisas, e isso está acima da capacidade racional, que desenvolve o pensamento no tempo e onde os conceitos não conseguem ser compreendidos completamente, ralacionando perfeitamente todas as ideias.
Agora, é intrigante pensar porque aquelas almas estão ali no mundo noético e não no psíquico. Ficou uma situação confusa, estranha. Seriam um tipo singular de ideia, como todas as demais têm suas características singulares?

Mas, enquanto tem o homem participação no mundo noético, há também uma participação no mundo psíquico: “As almas humanas existem no nível médio da alma, juntamente com todas as almas particulares existentes no universo. [...] Embora rejeite também o tipo de reencarnação apresentado por Platão em Fédon, Plotino ensina que as almas humanas são imortais e existem antes de suas incorporações neste mundo” (NASH, p. 142). As almas humanas habitam o mundo psíquico, e estão entre as demais almas particulares do mundo. Plotino diz que, antes de se encarnarem, já existem, e que após isso voltam e permanecem para sempre no mundo cósmico. Ou seja, com isso, Plotino está negando a doutrina platonista da reencarnação.
Mas é o próprio Ronald Nash que complica nossa compreensão nas seguintes palavras: “As almas dos particulares seres humanos que emanam da alma do mundo contêm elementos superiores e inferiores. A alma humana superior tem sua habitação no mundo cósmico ou nous. A alma humana inferior está em contato com o corpo. As almas humanas existem antes de sua união com o corpo. O elo entre a alma preexistente e seu corpo é descrito em termos de uma queda. Assim como preexiste em relação ao corpo, a alma continua a existir após a morte física; parece que a alma não tem memória de sua encarnação” (NASH, p. 142). Então, quer dizer que não é um elemento à parte do homem, como um espírito no tricotomismo, que participa do 'nous'. É uma parte superior da alma que habita o nous, enquanto uma 'parte' inferior está em contato com o corpo. Nesse sentido, a alma humana estaria num tipo de relação diferenciada com o mundo noético? As outras almas, e até mesmo a alma cósmica, são produtos daquele mundo, mas a alma humana, que é parte da alma cósmica, lhe supera e parece vir diretamente do mundo superior ao mundo psíquico.
É interessante observar que as almas existiam antes de se encarnarem, e ao fazerem, perdem a memória a respeito do seu 'passado'. Será que, com isso, ele está dando abertura à reminiscência como meio epistemológico mais avançado?
Complicado? Então aguarde para ver como ele desenvolve o assunto. “A defesa de Plotino da divindade da alma depende de seu argumento de que, a despeito da união da alma com o corpo, a alma humana jamais está verdadeiramente separada da alma do mundo. A insolúvel união da alma humana cósmica permite a Plotino crer que a nossa alma eterna vagueie pelas regiões celestiais e ajude a governar o universo. Consequentemente, a união da alma com um corpo físico não é uma instância do mal. A alma é sempre superior a um corpo (inferior). [...] Durante a encarnação em um corpo, a alma deixa de permanecer inteiramente no âmbito celestial” (NASH, p. 143). Embora haja a encarnação, a alma não se despreende totalmente do mundo superior, psíquico. Elas permanecem ali, governando o cosmos, pariando sobre a realidade material. Ela permanece parte da alma cósmica!
Portanto, parte do homem habita o mundo das ideias, e tem intelecção completa sobre todas as demais que, por sua vez, derivam as demais realidades. Parte do homem continua ligada à alma cósmica, no nível psíquico, e 'rege' o mundo juntamente com ela. Parte do homem é sua alma encaranam em um corpo.
Linguiti faz uma afirmação que pode confundir nossa interpretação de Plotino: “O ser humano, enquanto corpo governado por uma alma, é por uma alma provida de funções superiores (racionais e intelectuais) ou inferiores (sensitivas e vegetativas), é verdadeiramente e o ponto de encontro dos dois ‘mundo’ tradicionais de Platão: o inteligível e o sensível” (PRADEAU, p. 109). Pois bem, para 'salvar os fenômenos', ou seja, para encaixar o que foi dito aqui no que vimos, é bom entendermos que se trata de uma parte da 'alma' humana habitar o mundo das ideias (nous); e uma parte habitar o mundo material. Claro, uma parte do homem está habitando o mundo psíquico também, um tanto quanto 'acoplado', 'unido' à alma cósmica. Confuso, não?

Plotino ainda encontra espaço para discutir a controvertida questão de a alma ser extensa ou não: “De fato, como –se interroga Platão – um princípio que governa e anima a totalidade do mundo sensível pode não implicar a extensão? Como o princípio psíquico pode residir nas várias partes complexas do corpo, sem ser por sua vez dividida em partes? Uma resposta possível é que a alma está presente em sua totalidade em cada parte do corpo animado; outra resposta é que não é a alma que está no corpo, mas o corpo que está na alma, da mesma maneira como um corpo claro e quente está na luz e no calor" (PRADEAU, p. 109). Linguiti, entretanto, não nos informa qual desses argumentos é usado e/ou preferido por Plotino.

Há ainda um último fator que não pode ser descartado, a saber, a questão da individualidade. Aristóteles entendia que a matéria era a base última da individuação, ou seja, da diferenciação entre as coisas do mesmo gênero, tipo. Mas Plotino não parece seguir tal pensamento, não, pelo menos, em relação ao homem: “Plotino afirmou a existência de formas de indivíduos humanos e de outras formas de vida. [...] Para Plotino, não é a matéria que assegura a individualidade humana, mas sim o tipo singular de forma que as almas imortais possuem” (NASH, p. 142). Ou seja, as almas individuais carregam a forma que é apenas refletida na matéria.

O MISTICISMO GNÓSTICO DO NEOPLATONISMO



Já se observou que Plotino tinha declarado intuito de afrontar o cristianismo. E, desde que tal pensamento judaico se expalhara pelo mundo afora, o tema 'salvação' não podia ser ignorado. Ele trazia, consigo, temáticas éticas e existenciais, e Plotino as desenvolve sobre esse prisma. Estamos falando da ascese da alma, e aqui, mais do que nunca, as influencias orientais no pensamento de Plotino se mostram gritantes.
Podemos começar com Gaarder e a afirmação genérica de que: "o ponto mais próximo em que nos encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma.  Só lá é que podemos nos re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns momentos podemos sentir que somos, nós mesmos, este mistério divino” (GAARDER, p. 153). É na introspecção que encontramos a 'Deus', ensina Gaarder. Mas isso é muito simplista, e não corresponde exatamente ao ensino de Plotino.
Já vimos, em Platão, o que ele considera uma ascese da alma. O caminho da filosofia faz com que, finalmente, nos desvencilhemos do mundo sensível e devotemos nossa alma à contemplação das formas, das ideias e, por fim, do bem. Plotino considera esse trabalho muito importante. Mas ainda não é a experiência mística em si. Há um passo adiante. Linguiti se expressa da seguinte maneira: "Mas a intuição perfeita do mundo inteligível não constitui o cúmulo da ascese espiritual, que não se realiza plenamente senão quando a alma se une o Um, numa experiência mística na qual os limites do indivíduo tendem a se anular e o objeto e o sujeito tendem a coincidir. [...] Plotino, ainda que permaneça consciente da incomunicabilidade fundamental da experiência mística, fala disso frequentemente, empregando expressões e palavras altamente sugestivas, como se a alma se revelasse a si mesma, se identificasse com o divino, tivesse uma pura visão da luz, - que é Deus – num sujeito humano tornado si mesmo luz” (PRADEAU, p.110-111). Gaarder é, também, elucidativo. Para ele, a experiência mística consiste em "sentir-se um só com Deus ou com a ‘alma do universo’. Em muitas religiões, diz-se que há um abismo entre Deus e sua criação. O místico, porém, não conhece este abismo. [...] Trata-se do seguinte: aquilo que geralmente chamamos de ‘eu’ não é nosso eu verdadeiro. Em poucos e efêmeros momentos podemos experimentar a sensação de nos identificarmos com um eu muito maior. Alguns místicos chamam este eu maior de Deus, outros de ‘espírito cósmico’, outros de ‘natureza cósmica’, outros ainda de ‘universo’.  Nessa identificação, nessa fusão, o místico experimenta a sensação de ‘perder-se a si mesmo’ [...] como uma gota d’água ‘se perde’ quando se mistura à água do mar" (GAARDER, p. 153-154?). Ela consiste na percepção de que o 'eu' é ilusório e, de súbito, experimentamos a sensação de identificarmo-nos com um 'eu maior', com o único eu, com o todo, com o cosmos, Deus. Está acima da racionalidade, para além das concepções cognitivas. “Em sua forma final, a salvação não é uma questão de o que a pessoa conhece; ela ocorre, antes, na forma de um transe místico. A mente do pensador humano é absorvida rápida, inconsciente e inexoravelmente pelo Um. Durante esse transe místico, as pessoas perdem toda consciência do corpo. [...] Depois que acaba o transe, a pessoa não pode relatar nenhuma informação sobre a experiência. Contudo, não deveríamos nos preocupar quando somos convidados para dar um salto cego nos braços de uma divindade desconhecida? Como saber ao certo que a entidade que nos ampara é mesmo o bem, e não um ser mau e sinistro?” (NASH, p. 148).
Nessa amálgama de citações colhemos, já, alguma críticas que devem ser consideradas. Percebamos que Plotino considera a experiência mística algo que transcende nossas capacidades cognitivas. É, pois, uma experiência inefável. Entretanto, observa Linguiti, ele não para de falar dela, e de lhe atribuir predicações. É muito inteligível dizer que se sente parte do cosmos, em união com ele, visto que se percebe emanação do Uno e compreende-se dentro de um espectro monista. Plotino comete o mesmo equívoco ao falar do indizível Uno. Além disso, Nash nota que parece uma empreita arriscada se nos lançarmos a tal experiência quando não sabemos nada sobre esse Deus, e nem mesmo se ele nos quer bem. É claro que o neoplatonista poderia, ainda, falar sobre os valores existenciais de tal empreitada. Entretanto, o que Nash observa não deixa de ser intrigante.
Há ainda a objeção de que alguém poderia ficar receoso de perder 'seu eu'. Se perguntássemos a Plotino se valeria a pena, ele diria que sim. Gaarder explica: "o que se perde é infinitamente menos do que aquilo que se ganha. Você se perde nesta forma que você tem agora, mas ao mesmo tempo compreende que você é algo infinitamente maior. Você é o universo inteiro. [...] Você é Deus. Se para isto você tem de perder-se [...], então talvez sirva de consolo o reconhecimento de que um dia você terá de perder este ‘eu cotidiano’, de uma forma ou de outra. Para os místicos, o seu verdadeiro eu, que você só poderá experimentar se conseguir se libertar de si mesma, é o fogo misterioso que queima para toda a eternidade” (GAARDER, p. 154). Ao passo que se perde o próprio eu, ganha-se muito mais. Torna-se tudo! Torna-se Deus! Uma hora ou outra perderemos esse 'eu cotidiano', e nada melhor do que fazê-lo agora, nos libertando da ilusão e abrançando o cosmos. Essa é a doutrina da salvação de Plotino.

Ok, sabemos que a reflexão filosófica como ditada por Platão não é o patamar final da ascese psíquica. Plotino ainda vai ensinar que a experiência mística acontece expontaneamente. Sendo assim, a vida contemplativa é inútil? Não há nada que o homem possa fazer para 'se salvar'? “Só que tal experiência mística nem sempre ocorre espontaneamente. Com frequência, o místico tem de percorrer ‘o caminho da purificação e da iluminação’, a fim de poder se encontrar com Deus. Este caminho consiste na meditação e numa vida extremamente simples. Ao fim da jornada, porém, o mítico chega a seu objetivo e pode dizer: ‘Eu sou Deus! Eu sou Você!” (GAARDER, p. 154). O problema em Gaarder é que ele concebe que o místico pode, por seus esforços, alcançar tal experiência. Não é o caso. Entretanto ele já traz à tona um assunto muito relevante. A saber, que a ascese espiritual consiste em meditação e ascetismo. É nesse sentido que Nash se expressa da seguinte forma: “Contudo, há também uma ascensão quando a alma se liberta da dominação do corpo e encontra seu caminho de retorno ao seu ambiente natural, o âmbito de Deus e da verdade eterna” (NASH, p. 135). Aqui já começamos a vislubrar melhor o conceito. A parte 'baixa' da alma, em contato com a matéria, com o corpo, deve se libertar e, pois, a maneira mais adequada é justamente a negação do próprio corpo e a elevação de nossos pensamentos às coisas do mundo inteligível: “Conforme o curso ascendente da salvação, a obtenção humana de conhecimento, virtude e salvação requer que encontremos uma maneira de conseguir livramento da dominação do corpo e de adquirir unidade com o Um. Enquanto os humanos estiverem preocupados com seus corpos e sensações, suas almas permanecerão acorrentadas e soterradas, como os prisioneiros na caverna de Platão” (NASH, p. 137).
E é aqui que a filosofia de Plotino ganha ares religiosos, conforme prossegue, um pouco mais adiante, Ronald Nash: “O neoplatonismo é tanto uma filosofia quanto uma religião. Corresponde ao curso descendente do ser, está o curso ascendente, de Plotino, para a salvação. O objetivo final dos seres humanos deveria ser o Um, mas, a fim de obter essa união, a alma teria de se mover para cima; teria de se livrar da escravidão ao corpo, ao prazer e à sensação. [...] Enquanto os humanos estiverem preocupados com seus corpos e sensações, suas almas estarão acorrentadas e soterradas, tal como os prisioneiros da caverna de Platão. Os humanos que realmente anseiam pela união dom o Um, podem, no máximo, chegar à beira [da caverna]. Raramente, em momentos inesperados, este ou aquele humano, de repente, experimenta uma visão mística do Um” (NASH, p. 144). Salientamos, pois, que o ascetismo é o canal para a negação do mundo material e, portanto, a via de ascensão da alma. Podemos, por esse meio, 'chegar quase lá', mas ainda não é a contemplação do Uno. É a ascensão platonista. A contemplação do Uno acontece em momentos inesperados, de súbito, sem razão aparente. Entretanto, essa vida abnegada (provavelmente aprendida no oriente) é colocar-se 'à porta da caverna', ou seja, à mercê do Uno, em situação favorável.
Estranha-nos que Plotino não tenha desenvolvido nenhuma explicação para essa experiência mística. Por que, pois, acontecem as experiências? Por que não acontecem? Quais as causas?

Não podemos encerrar essa seção sem tocar numa questão. Gaarder começa nos informano que “em alguns poucos momentos de sua vida Plotino experimentou a sensação de fundir sua alma com Deus” (GAARDER, p. 153). O próprio Plotino, pois, não era alguém que vivia em transe o tempo todo. Mas, como observamos, é bem possível que tal doutrina tenha sido aprendida junto às filosofias orientais (e o próprio monismo metafísico parece-nos oriunde de lá) e, por isso, faz sentido a afirmação de Gaarder:
“Plotino não foi o único a viver tal experiência. Pessoas de todas as culturas, em todos os tempos têm relatado experiências semelhantes" (GAARDER, p. 153). Jostein Gaarder reconhece que essa experiência mística é algo transcultural. Várias culturas e religiões, com roupagens diferentes, relatam-na, defendem-na e ensinam-na“Encontramos vertentes místicas em todas as grandes religiões do mundo. E tudo o que os místicos escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis semelhanças, a despeito de todas as diferenças culturais. Somente quando o místico tenta uma interpretação religiosa ou filosófica para sua experiência mística é que se evidencia o pano de fundo cultural” (GAARDER, p. 155). Claro, esse não é o ensinamento de Plotino, conforme nos esclarece Linguiti: “Plotino experimentava desconfiança em relação às práticas mágico-rituais e as formas de religiosidade supersticiosa; para ele, é essencial a vida filosófica que permite se emancipar do corporal, pois para ela convergem a disciplina moral e a disciplina intelectual. É preciso superar as formas primeiras do conhecimento ligadas à percepção sensível para reunir aquelas que são mais racionais, suscetíveis de nos conduzir à visão das ideias.” (PRADEAU, p.). Embora Gaarder tenha feito a clássica asseveração pluralista de que as doutrinas são limitações, e que há um ponto de convergência, Plotino não estava tão interessado nesse discurso politicamente correto. Para ele não era interessante os rituais mágicos e superstições. Ele entendia que o caminho mais adequado para a ascensão estava na disciplina filosófica e moral, e não em qualquer ofício religioso per si.

ÉTICA

Jostein Gaarder ainda acha espaço para discutir a ética, propriamente dita, do panteísmo, o que se encaixa aqui. “A experiência mística também pode ser de importância para a ética. Um antigo presidente indiano, Radhakrishan, disse certa vez: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo, pois tu és o teu próximo. É ilusão acreditar que teu próximo é outro, e não tu’” (GAARDER, p. 155). Entretanto, A. A. Hodge, comentando uma determinada variante do panteísmo, também nota que "se tal é o caso, então se faz evidente que Deus é o único agente real no universo; que ele é a causa imediata de todas as coisas; inclusive de todas as paixões más e pensamentos e atos perversos; que a consciência é uma completa ilusão, e alivre agência e responsabilidade moral do homem, vãs imaginações" (HODGE, p. 133). Isso mesmo. Aliás, a consciência seria um fenômeno ilusório do próprio Deus, e nos perguntaríamos porque há uma necessidade metafísica de que isso aconteça. No panteísmo neoplotino (quiçá em todos) é difícil como não conceber todo evento como uma ação necessária, e a própria individualidade e responsabilidade moral como mera ilusão. Tudo é ação do próprio uno, uma demanda metafísica. As coisas são, e ponto final*.

CRÍTICAS

Não pudemos deixar de fazer algumas críticas óbvias no decorrer do texto. Plotino é gritantemente incoerente. É criativo e será explorado por outros filósofos, bons e ruins. Mas seu sistema é uma especulação todo furada. Mais uma vez, Nash é nossa principal fonte de críticas a Plotino.
Bom, comecemos o topo do sistema, do Um. Gordon Clark nota com propriedade: “Se o supremo princípio é o puro Um, como pode a multiplicidade ser inteligível? Ilustrações de espelhos e de luzes não são suficientes. Se houvesse multiplicidade e distinções no Um, até mesmo virtualmente, este não poderia ser unidade pura; mas, se não houver multiplicidade no Um, como essa multiplicidade pode ser dele derivada?” (CLARK apud NASH, p. 148). Claro, do nada, temos o ‘Ser-Intelecto’ voltando-se para o Um, contemplando-o e enchendo-se de ideias. Essa é uma descrição. Mas não há qualquer boa razão para as coisas serem assim. E, pior, a multiplicidade surge do nada, de forma completamente arbitrária. Ou, nas palavras do próprio Nash: “Plotino multiplica desnecessariamente o número de entidade em seu sistema” (NASH, p. 148).
Certa feita fomos inquiridos por um fã de Karl Barth sobre o porquê não gostávamos de seu ídolo. Dentre os vários motivos, estava uma crítica que é feita a Plotino. Primeiro, entendamos o que Barth pensa sobre Deus: “O motivo fundamental desse agnosticismo em relação ao conhecimento humano sobre Deus parece ser o compromisso firme de Barth com a tese de que Deus é ‘totalmente outro’ e por isso transcende todas as categorias humanas de pensamento e lógica. [...] De acordo com Barthe, Deus é tão transcendente que não há nenhuma analogia entre ele e a criatura. [...] Deus permanece incompreensível, e as declarações que fazemos sobre ele são incompreensivelmente verdadeiras” (CRAIG, p. 24). Craig cita Barth para não termos dúvida de que é mesmo sua posição: “Ele [Deus] nos encontra como aquele que está oculto, aquele a respeito do qual temos de admitir que não sabemos o que estamos dizendo quando tentamos dizer quem ele é” (BARTH apud CRAIG, p. 24)*. Vimos que isso está muito próximo (senão idêntico) ao que Plotino afirma sobre Deus. Ambos concebem-no como um ‘totalmente outro’, ou ‘acima do ser’. É aquele do qual não podemos discursar. Qual o problema com isso? Ronald Nash, mui sagaz, arremata: “O próprio Plotino sabia algumas coisas sobre esse deus inconcebível. Considere a seguinte citação de Plotino: ‘Tendo gerado todas as coisas, o Um não pode ser nenhuma delas – nem coisa, nem qualidade, nem quantidade, nem inteligência, nem alma’. Como poderia alguém saber o que Deus não é sem saberem primeiro o que Deus é? Primeiro, Plotino sabia que seus deus inconcebível existia. Esta é uma informação importante. Segundo, ele sabia que seu Deus inconcebível era inconcebível. Tal declaração tem toda aparência de uma firmação lógica autofrustante. Terceiro, Plotino sabia que havia um deus, não dois, vinte ou milhares, como era o caso de algumas religiões das quais tinha conhecimento. Outra coisa que Plotino parecia saber sobre seu Deus não-conhecível é que este era imaterial e mental. Plotino saiba também que o Um não era uma mente, nada que desse surgimento à mente (nous)” (NASH, p. 138). O problema é que esses postulados estão recheados de informações sobre Deus. Plotino sabia muitas coisas sobre Deus. O princípio que concebe que Deus está completamente acima de qualquer conhecimento, acima até mesmo de qualquer predicação, incorre em ‘atirar no próprio pé’. Não fosse o fato de Plotino falar o tempo todo de seu Uno, ele seria algo completamente dispensável. Algo que não tem nem mesmo a propriedade de ser simplesmente não é. Se ele não causa nem faz nada que podemos conceber ou predicar, é um ‘sujeito’ sem qualquer atributo. É um sujeito-não-sujeito. É uma completa aberração lógica.
Engendramos, nós mesmo, outra objeção. O argumento sobre a quebra da unidade no ser pelo simples ato de predicação é um disparate. Diz respeito ao discurso sobre o ser, e não sobre divisões no ser em si. E, se é ridículo dizer que não se faz necessariamente fragmentações no ser ao distinguir seus atributos, é completamente idiota dizer que ao distinguir a substância (o sujeito) do predicado estamos quebrando a unidade no ser.
Armstrong é convocado por Nash para continuar a inquisição: “A relação entre o absoluto e os seres relativos e derivados tem de permanecer sempre misteriosa, porque um termo dela é inacessível ao nosso conhecimento e porque ela é uma relação singular sobre a qual não podemos formar nenhum conceito geral. O filósofo sábio se contentará com a observação de que, neste ponto, há um abismo ou rachadura no ser, e deixará a coisa assim” (ARMSTRONG apud NASH, p. 148-149). Claro, isso é menos ‘filosófico’ do que a própria mitologia. É colocar um item mágico no meio da equação e pedir para que simplesmente aceitemos, como uma superstição, o que está sendo proposto. Não sabemos como o Um deriva o mundo das ideias. As descrições que temos não nos respondem muita coisa. Não conhecemos o Um, e, então, não podemos falar muito bem sobre sua ‘extrapolação ontológica’, ou seja, não sabemos como ele transborda em seu ser. Estamos à mercê do puro mistério, e nem mesmo a especulação sonda a partir de uma certa etapa.
Por fim, Nash nota que “parece que a única razão de Plotino para colocar uma alma cósmica abaixo dos níveis do Um e do nous, a fim de governar o mundo físico, foi seu compromisso cego com o legado de Platão. As funções diversas que Plotino atribuiu ao Um, ao nous e à alma poderiam ter sido atribuídas ao único Deus transcendente” (NASH, p. 149). Ou seja, a ideia bíblica do Deus transcendente (e imanente) pode desempenhar os papéis do Um, do nous e da alma cósmica de maneira adequada e coerente. Definitivamente, não podemos abraçar o neoplatonismo.


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* Impossível não observar a disparidade nas datas. Temos, claro, como é de praxe, olhar para elas de forma aproximada. Segundo os dados de Linguiti, ele teria estudado dos 28 aos 40 anos em Alexandria e, só então, saído para viajar, tendo ficado até 41 ou 42 anos peregrinando, vindo depois a morar em Antioquia (sabe-se lá por quanto tempo), por fim indo a Roma. Ou a data do tempo que ele estudou (ou de quando começou) de Linguiti está errada, ou os demais confundiram as datas de sua chegada a Roma. Por exemplo, Nash diz que “Por volta de 244, suas viagens o levaram a Roma, onde fundou uma escola de filosofia” (NASH, p. 134). Mas se foi em 244, ele teria chegado a Roma aos 39 anos! Portanto, contentemo-nos com a informação de que suas viagens ao oriente foram curtas. De 2 a, digamos, 5 anos no máximo. As influências, claro, ficarão patentes no decorrer do discurso.
* R. C. Sproul amplia e diz que “esse método da negação funciona até certo ponto na teologia cristã. Apesar de o cristianismo também ter um ‘meio de afirmação’, ele emprega a via da negação quando descreve Deus como infinito (não finito), imutável (não mutável), incriado (não criado), e assim por diante” (SPROUL, p. 58). É precipuamente em Tomás de Aquino que iremos ter tal método explorado (e, Sproul, tomista de carteirinha, não poderia deixar de fazer uma observação dessas).
* Não podemos evitar a dúvida de que, se o ‘Ser-Intelecto’ surge e depois intenta contemplar sua fonte, já temos, antes desse ato, algo bem presente nessa mente: o desejo de contemplar a fonte, bem como o modo de fazê-lo e afins. A cosmovisão teria de lidar com uma boa explicação para isso a fim de ostentar-se como uma cosmovisão coerente e abrangente.
* Estamos falando exatamente do mundo das ideias de Platão, e esta citação irá tirar qualquer dúvida (se ainda houver): “No sistema de Plotino, nous é a habitação das ideias eternas (ou formas de Platão). As formas são pensamentos eternos de Deus. Conquanto não exista multiplicidade ou diferenciação no nível do Um, existe multiplicidade no nível da mente ou intelecto. Essa multiplicidade é vista, por exemplo, nas formas de Platão” (NASH, p. 139-140).
* Para quem ainda não leu, veja o seguinte artigo que elaboramos: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/04/parmenides-e-encrenca-de-sproul.html.
* Numa futura oportunidade dissertaremos em particular sobre os problemas do panteísmo. Por hora, fiquemos com o que já vimos aqui. É bom nos lembrarmos que outros panteístas surgirão no decorrer da história do pensamento. Spinoza e Schopenhauer serão, certamente, trabalhado por nós.
* Antes que algum barthiano venha nos encher, isso se aplica, no pensamento de Barth, até mesmo à revelação por meio de Cristo. Barth tem a experiência cristã como padrão existencial que nos leva a admitir a Deus e a obedecer a sua Palavra. Mas é só o que podemos dizer. No mais, “mesmo em sua auto-revelação, Deus permanece oculto” (CRAIG, p. 24).

BIBLIOGRAFIA


CRAIG, William Lane. A veracidade da fé cristã: uma apologética contemporânea. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2004, 309p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.


HODGE, A. A. Confissão de Fé de Westminster: comentada por A. A. Hodge. Tradução de Valter Graciano Martins. [s.l.]: Os Puritanos, 2 ed., 2008, 600p.


LINGUITI, Plotino _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.

SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.