Em Éfeso, cidade da
Jônia, na Ásia Menor, famosa entre os cristãos por ter uma epístola paulina
dirigida a ela, e uma carta do apóstolo João, em Apocalipse, surge outro pensador
pré-socrático, próximo ao fim do segundo sexto século antes de Cristo*. Seu nome
é Heráclito. Sobre sua vida, a única informação que conhecemos é uma oriunda de
Durant: “deixou a riqueza e suas preocupações para levar uma vida de pobreza e
estudo à sombra dos pórticos dos templos em Éfeso, desviou a ciência da
astronomia para preocupações mais terrenas” (DURANT, p. 67). Portanto, parece
que ele não segue a tradição dos filósofos que o precederam, os famosos
filósofos de Mileto, que não deixavam de ser astrônomos. Provavelmente, pois,
tratava-se de um ‘homem livre’ da sociedade grega.
Chalita nos diz que
há muitos filósofos que consideram Heráclito o mais importante pré-socrático
(CHALITA, p. 35). A característica de seus escritos é a obscuridade porque ele
resolve “apresentar seu pensamento por meio de aforismos, com um estilo propositadamente
enigmático” (CHALITA, p. 35). Osborne expõe um pouco mais. Ela diz que o estilo
de Heráclito “é feito de sentenças misteriosas, das quais muitas são sem dúvida
voluntariamente ambíguas” e completa “Do livro de Heráclito, conservamos uma
grande quantidade de extratos truncados, principalmente sob a forma de uma
única frase, algumas vezes desprovida de qualquer verbo. Nada se assemelhando a
um argumento construído” (PRADEAU, p. 23).
O FLUXO UNIVERSAL
A ideia mais
fundamental de Heráclito é a do fluxo universal. Ele acredita “Todas as coisas
fluem e se alteram sempre, disse ele; mesmo na mais imóvel existe um invisível
fluxo e movimento” (DURANT, p. 67). Diferentes autores conservaram sua
ilustração principal, a ilustração do rio. Osborne as apresenta. Vamos
reproduzir as duas menores, suficientes para nossa instrução: “Sobre aqueles
que entram nos mesmos rios escoam sempre outras novas águas” e “Entramos e não
entramos nos mesmos rios. Somos e não somos” (PRADEAU, p. 25). Gaarder
sintetiza: “quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu quanto ele já
estamos mudados” (GAARDER, p. 47). Sproul é ainda mais claro nessa parte quando
expõe a ilustração do rio: “Suas margens, numa erosão imperceptível, terão
mudado, e você mesmo terá mudado – se de nenhuma outra forma, pelo menos no
fato de ter ficado alguns segundos mais velho” (SPROUL, p. 21).
Osborne observa que
Heráclito não estava pensando apenas no fluxo permanente das águas dos rios
mas, sim, na própria essência ontológica, a natureza das coisas (PRADEAU, p.
25). Por isso, Chalita está certo ao observar que a ideia de Heráclito é a de
que “o mundo não é um lugar estático, mas um fluxo, uma mudança permanente de
todas as coisas, um constante vir-a-ser. Para Heráclito, nada permanece o
mesmo, nem por um instante” (CHALITA, p. 35). Acreditamos que Sproul é, mais
uma vez, hábil com as palavras na exposição: “De acordo com Heráclito, tudo
está fluindo sempre e em todo lugar. Introduzindo aqui um conceito filosófico
importante, isso significa que todas as coisas encontram-se no estado de vir a
ser, em oposição ao estado de ser” (SPROUL, p.21). Em suma, nada é, antes, está
constantemente vindo a ser, se transformando, mudando.
De onde Heráclito
teria tirado essa ideia? Obviamente ele, ao contrário de Parmênides, acreditava
piamente nos sentidos, como observado por Gaarder (GAARDER, p. 47). Por onde
quer que ele andasse veria que as coisas estão em constante transformação, e
constante mudança. Nada ‘para no seu lugar’. Tudo se altera de alguma forma.
Heráclito deve ter observado isso e abstraído que, de repente, a essência do
‘ser’ é justamente o ‘vir-a-ser’.
Há, claro, uma
constante em toda essa metafísica da mudança: a lei. A lei da mudança é algo
que não muda. Durant também percebe isso: “Essa ordem, a mesma para todas as
coisas, não foi feita por nenhum dos deuses e dos homens; mas sempre existiu,
existe e existirá” (DURANT, p. 67).
A ARCHÉ EM HERÁCLITO
Heráclito não fugiu
da moda filosófica de sua época, e também refletiu sobre o elemento fundamental
da natureza. Como o fato de tudo fluir era a proposição pivô, mestra, de sua
filosofia, ele elege o próprio ‘fogo’ como o elemento básico da natureza.
“Heráclito via o fogo como o elemento básico das coisas, pois está sempre
fluindo. O fogo tem de ser constantemente alimentado, mas ele também sempre
está emitindo algo: fumaça, calor ou cinza. Ele está sempre ‘em atividade’, em
constante transformação” (SPROUL, p. 21). Por isso, é o candidato perfeito para
a arché.
TELEOLOGIA COSMOLÓGICA
Ao falar do fogo
temos que partir para a teleologia cosmológica de Heráclito. Parece-nos que ele
é o primeiro a propor, no ocidente, uma história cíclica. Para ele o mundo
começaria no fogo e para ele voltaria, como nota Chalita citando Clemente de
Alexandria expondo Heráclito: “Este mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum
deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se
em medidas e apagando-se em medidas” (CLEMENTE apud CHALITA, p. 35). É isso
mesmo que Durant nota: “A história cósmica segue em ciclos repetitivos, cada
qual começando e terminando em fogo (eis aqui uma fonte da doutrina estóica e
cristã do juízo final e do inferno*)” (DURANT, p. 67). Os estoicos, no futuro,
vão se apropriar dessa ideia.
A UNIDADE DOS CONTRÁRIOS E A
ORDEM SUBJACENTE À MUDANÇA
Antes de expor essa
doutrina de Heráclito, é bom estarmos cientes das dificuldades. Heráclito expõe
algumas sentenças que sugerem tal doutrina. “Cada uma dessas sentenças indica
como os contrários estão ligados, sem que, no entanto, possamos discernir
claramente o que determina ou estrutura o conjunto desses contrários. Desse
modo, conservamos mais de uma centena de sentenças obscuras que não seguem nem
análises nem explicações elaboradas, de modo que é difícil reconstituir com
certeza a doutrina de Heráclito” (PRADEAU, p. 26).
Para esta última
parte, talvez a mais complicada de todos os pré-socráticos, teremos de retomar
dois assuntos já abordados previamente: a da lei, a constante da mudança; e a
da arché de Heráclito, o fogo. Esses dois elementos parecem estar intimamente
ligados na filosofia de Heráclito.
Voltemos, também, ao
rio de Heráclito. Ao entrarmos novamente no rio, entramos e não entramos no
mesmo rio. Osborne alavanca tal discussão: “é falso dizer que elas são ‘as
mesmas’ quanto admitir que o ‘mesmo’ não implique a mesma constituição física”
(PRADEAU, p. 25). Ou seja, em um sentido aquelas não são as mesmas águas. Mas
existe uma realidade adjacente, a qual chamamos de ‘rio’, que constitui-se de
um fluxo de águas por uma via. Esse predicado, ainda que não ignore a ontologia
fluida de Heráclito, ainda assim pode referir-se a uma coisa fixa ao nos
referirmos ao rio. “...um rio exige um fluxo constante de novas águas. É isso
que significa um rio. E se isso é igualmente verdadeiro para a natureza, então
o ‘mundo’ será um meio dinâmico no seio do qual as coisas têm lugar” (PRADEAU,
p. 25).
Nesse sentido,
parece que o locos, o mundo, é um ente fixo. O espaço, onde as mudanças
acontecem, parece fixo. Entretanto, se observarmos que o fogo logo consumirá
tudo, talvez pensemos na extinção e ressurgimento do próprio espaço. Aqui
começamos a nos aproximar da discussão em torno do big bang, e preferimos
deixar isso para outro momento.
O fato é que, em
certo sentido, observamos que as mudanças seguem algumas vias, algumas normas,
algumas leis. Osborne nota exatamente isso: “No entanto, esses acontecimentos
não teriam lugar ao acaso nem de maneira caótica: tudo, assim como a água do
rio, obedece a regras, escoando em um sentido e mudando de curso segundo certa
medida” (PRADEAU, p. 25). No entanto, é legítimo questionar a origem dessa lei,
dessa norma. O que faz as coisas seguirem determinado fluxo e não outro? O que
faz com que as coisas não movam-se de forma caótica? Chamemos Sproul para a
conversa: “A realidade não é uma diversidade pura; há uma unidade permanente.
[...] Para Heráclito, o processo de mudança não é caótico, mas orquestrado por
‘Deus’. Coloquei Deus entre aspas porque, para Heráclito, ‘Deus’ não é um ser
pessoal, porém mais parecido com uma força impessoal. O movimento é produto de
uma razão universal a que Heráclito chamava de logos. [...]” (SPROUL, p.
21-22).
Percebamos, então,
que Deus, ou o logos, é algum tipo de ente, uma força impessoal que produz as
mudanças, que leva os seres ao eterno vir a ser. Ele é o motor do mundo. É o
logos que guia as mudanças de modo que não sejam aleatórias, caóticas.
Mas espere um pouco.
O que o ‘fogo’, o arché de Heráclito, tem a ver com isso? Como ele participa do
processo? Bom, parece que ‘logos’, ‘lei’, ‘Deus’, e ‘fogo’ estão em uma relação
simbiótica. Sproul mesmo, no parágrafo seguinte ao que mencionamos acima
menciona o fogo relacionado à ordenação do cosmos: “Heráclito estava à procura
de um princípio do telos, de uma teleologia ou propósito que desse ordem e
harmonia às coisas em movimento, que desse unidade à diversidade. Para ele, o
logos é a lei universal imanente em todas as coisas. Em última análise, é o
Fogo com ‘f’ maiúsculo. Seu sistema é, em última análise, uma espécie de
panteísmo” (SPROUL, p. 22).
Portanto, o fogo,
esse Deus incandescente de Heráclito, gera o mundo, permeia a todas as coisas,
e as leva à constante mudança. Esse fogo que permeia a todas as coisas é a
razão, o logos divino que a tudo dá direção.
Mas o sistema não
para aqui. E é nesse momento que a parte mais confusa, mais controversa,
mencionada por Osborne alhures, surge. É a questão dos opostos. Comecemos por
Gaarder: “Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, satisfação e
forme’, dizia ele. Ele emprega nesta passagem a palavra ‘Deus’, mas é claro que
com isto não se refere aos desses de que falavam os mitos.Para Heráclito, Deus
– ou o elemento divino – é algo que abrange o mundo inteiro. Para ele, Deus
se manifesta na natureza em constante transformação e crivada de opostos.
No lugar da palavra ‘Deus’ ele emprega com frequência a palavra grega logos,
que significa razão” (GAARDER, p. 48, itálico nosso).
Parece que o logos
manifesta-se, pois, na natureza, por meio da transformação que, por sua vez,
reflete o conflito de opostos. Nos opostos, pois, parece que temos a lei
divina, a atuação do logos, produzindo movimento, transformação e criação. Isso
estaria em consonância com a sugestão de Osborne: “O logos pode igualmente ser
a ligação entre os contrários” (PRADEAU, p. 26). O mundo, pois, seria formado
de antíteses ontológicas, como se o logos criasse tudo aos pares opostos,
antagônicos. À luz dessa consideração a citação de Durant é iluminada: “‘Através
da luta’, diz Heráclito, ‘todas as coisas nascem e se extinguem. (...) A guerra
é o pai e o rei de todos: alguns, ela tornou deuses; outros, homens; alguns,
escravos, e outros, livres.’ Onde não há luta, há deterioração: ‘a mistura que
não é sacudida se decompõe’” (DURANT, p. 67).
Entretanto, a
doutrina ainda permanece misteriosa. Parece que do conflito, da síntese do
conflito, o logos cria. Talvez seja uma alusão à transformação por meio da
síntese de opostos. É possível que o fluxo cosmológico siga a linha mestra dos
conflitos e o logos seja o condutor dessa ‘história’ até que “todos os
conflitos no fim são resolvidos no fogo que paria sobre tudo, ou no logos das
coisas” (SPROUL, p. 22).
Gaarder tenta trazer
perspicuidade à questão: “Heráclito também nos chama a atenção para o fato de
que o mundo está impregnado por constantes opostos. Se nunca ficássemos
doentes, não saberíamos o que significa a saúde. Se nunca tivéssemos fome, não
experimentaríamos a agradável sensação de saciá-la depois de uma refeição. Se
nunca houvesse guerras, não saberíamos o valor da paz, e se nunca houvesse
inverno, não poderíamos assistir à chegada da primavera. Tanto o bem quanto o
mal são necessários ao todo, dizia Heráclito. Sem a constante interação dos
opostos o mundo deixaria de existir” (GAARDER, p. 48). Temos, pois, o conflito
de opostos fazendo parte da realidade, uma dualidade necessária, essencial ao
que existe. Não conseguimos, entretanto, perceber a necessidade da dualidade,
dos opostos, para que o logos crie a realidade. Suspeitamos que esteja na
concepção de que o fogo queima e, disso, de alguma maneira, Heráclito tenha
deduzido que a realidade deve ser produzida (no sentido do eterno devir) pelo
conflito. Ao observar a realidade por esse prisma, realmente parece que as coisas
estão em pares conflituosos.
Vejamos Chalita
tentar expressar o mesmo: “A vida se transforma em morte, a morte em vida; o
úmido seca, o seco umedece; a noite torna-se dia, o dia torna-se noite; a
vigília cede ao sono, o sono cede à vigília; o jovem torna-se velho, o velho se
faz criança [ok, também pareceu-nos meio forçado essa última]. O mundo é um
perpétuo renascer e morrer, rejuvenescer e envelhecer” (CHALITA, p. 35). Aqui
pareceu que o mundo experimenta ‘micro-ciclos’ do que acontece de forma global,
macro, com todo o cosmos. No final das contas, o próprio cosmos está vivendo na
antítese entre o nascer e o morrer.
EPISTEMOLOGIA HERACLITIANA
Epistemologicamente
Heráclito parece entender que o verdadeiro filósofo que busca o logos o
encontra e, então, começa a compreender a realidade e entende os seres que,
apesar do vir a ser eterno que nos impede de reportarmo-nos a eles, têm uma
constante no logos*. Percebamos Osborne dissertando sobre: “Existem meios pelos
quais reconhecemos os ‘mesmos’ objetos: essas leis são determinantes para
compreender o mundo. Tal é o sistema (ou logo) que, segundo Heráclito, aparece
claramente àqueles que o procuram, mas permanece ignorado para aqueles que
estão demasiado adormecidos para percebê-lo” (PRADEAU, p. 25-26).
Gaarder também
explora questões epistemológicas em Heráclito: “Mesmo quando nós, homens, não
pensamos da mesma forma ou não possuímos a mesma razão, deve haver – segundo
Heráclito – uma espécie de ‘razão universal’, que dirige todos os fenômenos da
natureza. Esta razão universal – ou ‘lei universal’ – é a mesma para todos; é a
partir dela que todos se orientam. E não obstante, a maioria das pessoas vive
segundo sua própria razão, dizia Heráclito. Ele não considerava muito as
pessoas que o cercavam. Para ele, a opinião da maioria delas não passava de
‘brincadeira de criança’” (GAARDER, p. 48).
A nós parece que os
dois autores entendem que o conhecimento da realidade, em Heráclito, longe de
um empirismo rudimentar, como nos é normalmente ensinado, inclui a abstração
que deduz o logos. Os homens devem crer no sistema para compreender o mundo. O
sistema inclui a crença no logos que organiza, cria, destrói e recria o mundo
(claro, o sistema também inclui a pressuposição na confiabilidade dos sentidos).
Aí, então, teremos uma percepção correta sobre o mundo.
Antes de terminarmos
essa seção epistemológica, não podemos deixar de observar o que Chalita diz:
“Conhecer qualquer coisa só é possível porque existe o seu contrário; sabemos o
que é a alegria porque experimentamos a tristeza, e vice-versa. O mesmo,
segundo Heráclito, aconteceria com as qualidades de tudo o que existe, sempre
aos pares. Por exemplo, a guerra e a paz, o quente e o frio, o amor e o ódio”
(CHALITA, p. 36). Assim, a questão dos conflitos subjazem à própria
epistemologia segundo Heráclito. O logos, que criou (cria e criará) as coisas
aos pares opostos, também viabiliza o conhecimento nos homens por meio dos
opostos. Assim, se não ficássemos tristes, não saberíamos o que é a alegria e,
se ficássemos alegres, não haveria a tristeza. Tal conceito não nos parece
muito preciso, e suspeitamos que ele ignore alguns estados neutros entre as
coisas. Por exemplo, acreditamos que exista um estado normal, sem a euforia da
alegria, e sem o torpor da tristeza. Ou será que, na verdade, a alegria seria a
ausência de tristeza apenas? Poderíamos dizer que a tristeza é apenas ausência
de alegria? Será que não poderíamos imaginar um homem, num mundo utópico, que
não experimentasse tristeza alguma, antes, doses menores ou maiores de alegria?
Esse tal não poderia saber o que é a alegria pelo fato de nunca ter
experimentado a tristeza? Parece que Heráclito diria não. Permita-nos citar
Gaarder novamente: “Se nunca ficássemos doentes, não saberíamos o que significa
a saúde. Se nunca tivéssemos fome, não experimentaríamos a agradável sensação
de saciá-la depois de uma refeição. Se nunca houvesse guerras, não saberíamos o
valor da paz, e se nunca houvesse inverno, não poderíamos assistir à chegada da
primavera” (GAARDER, p. 48). Não estamos certos de que concordamos com
Heráclito.
OS PROBLEMA DA COERÊNCIA E DA
ABRANGÊNCIA NA COSMOVISÃO DE HERÁCLITO
Afora algumas
críticas, alguns questões levantadas, que fizemos, temos ainda alguns problemas
não resolvidos com Heráclito. A questão fundamental está na exposição, da parte
de Sproul, de Parmênides quanto ao ser. Tudo o que é, é, dizia o filósofo de
Eléia. “Não pode ser e não ser ao mesmo tempo e da mesma maneira. Se está se tornando, não pode estar
sendo. Se não está sendo, não é nada” (SPROUL, p. 23). A questão é que, se algo
constantemente está se tornando, nunca é. Mas, se não é, então não possui ser,
não existe. Sem uma base fixa para o ser as coisas não podem existir. Assim, as
coisas têm de ser antes de virem a ser. A única saída para Heráclito seria
dizer que o ser das coisas está no logos e encerrar o sistema num panteísmo.
Mas parece-nos que a ontologia das coisas está, mesmo, com o predicado de ser
essencialmente mutante.
E, afinal, o que é o
homem nesse processo todo? Porque ele existe num estado diferente? De onde vem
sua pessoalidade, sendo que o próprio logos é impessoal? Porque o homem é um
ser racional, que pode perceber e acessar o logos para compreender a realidade?
A antropologia filosófica de Heráclito se mostra a nós como o tendão de Aquiles
na cosmovisão de Heráclito.
Ainda nos incomoda a
questão teleológica. Porque esse fogo cria e consome todas as coisas? A própria
criação do cosmos por meio do fogo nos parece muito misteriosa. A razão
suficiente de Leibniz também parece lançar suspeitas ao sistema. Porque o logos
cria as coisas de um jeito e não de outro? Quando ele cria, as coisas são
sempre criadas da mesma forma?
Temos, ainda, que
observar os pressupostos de Heráclito. A falta de abrangência que não deixa o
sistema tanger suficientemente à antropologia filosófica faz com que
suspeitemos de como um heraclitiano defenderia a pressuposição de que os
sentidos são confiáveis.
O comprometimento de
Heráclito com o projeto filosófico de sua época, o Zeitgeist pré-socrático,
fê-lo pensar na arché, a qual ele identifica como o fogo. O fogo ganhar ares
‘racionais’, tornar-se ‘logos’, parece-nos o raciocínio seguinte para toda a
coerência do sistema. Não podemos deixar de considera-lo um pensador
formidável, entretanto, não poderíamos abraçar sua cosmovisão.
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* Gaarder diz
540-480 a. C., mas Durant diz 530-470 a. C. Osborne não dá data alguma. Antes,
informa-nos sobre a polêmica relacionada a essa questão. Ao observar que
Parmênides escrevia de forma argumentativa, e Heráclito por aforismos, e que
Parmênides teria influenciado a posteridade à argumentação, sugere, pois, que
aquele teria vivido antes do que este. Há quem conteste dizendo que Heráclito
não desejou expor suas ideias da forma que Parmênides, ou seja, não estava
querendo fundamentar sua filosofia pelo critério de provas e argumentos, mas,
antes, nos mostrar um modo de ver as coisas, uma hipótese explicativa do mundo.
Ao que parece, segundo Osborne, Heráclito já pensava em termos de cosmovisão,
embora tal ideia pudesse não estar estruturada (PRADEAU, p.23).
* Quando formos
estudar os estóicos, que se apropriam dessa ideia de Heráclito, mostraremos
como Durant, e tantos outros, estão equivocados ao alegarem algum tipo de
plágio, da doutrina judaico-cristã, aos estóicos ou, sendo mais elementar, a
Heráclito.
* Estamos muito
cientes do quão próximo a Platão tal ideia está. É como se houvesse uma ideia
da coisa, embora as entidades materiais em si estivessem sempre tornando-se,
não sendo algo nunca.
uma extensão da filosofia de Heráclito se encontra nos Estoicos, que pode ser conferida clicando aqui!
uma extensão da filosofia de Heráclito se encontra nos Estoicos, que pode ser conferida clicando aqui!
REFERÊNCIAS
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
OSBORNE, Catherine. O
nascimento da filosofia _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução
de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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