AS
FONTES
É
fato muito conhecido que não sabemos nada de Sócrates que provenha de suas
mãos. Isso mesmo. Ele não nos outorgou nenhuma linha se quer e, “não obstante,
está entre os que maior influência exerceram sobre o pensamento europeu”
(GAARDER, p. 79). Chalita nos informa sobre as fontes que temos: “Tudo o que
sabemos sobre a vida e o pensamento de Sócrates (470? – 399? a. C.) é
proveniente dos comentários que seguiram suas ideias, pois ele não deixou
nenhum escrito. Nossas principais fontes são Platão [...] e Xenofonte*1
(431 – 350? a. C.), pensador ateniense que foi um grande admirador de Sócrates.
Também conseguimos algumas informações sobre o filósofo a partir de Aristófanes
(450? – 388? a. C.), escritor de teatro que satiriza os sofistas em suas
comédias. Sócrates é personagem de uma de suas peças, As nuvens, mas aparece
ali como uma caricatura, como se fosse um desatinado” (CHALITA, p. 46-47).
A
fonte mais importante é Platão. Sócrates mesmo, segundo Platão na Apologia de
Sócrates, lamentou e demonstrou como as representações de Aristófanes não
deviam ser consideradas. O Sócrates de Aristófanes era um mágico, um ilusionista.
Sócrates, por sua vez, se diz ignorante quanto a esses assuntos, não sabendo,
nem mesmo se havia sapiência neles. Sócrates, para provar que aquilo não
passava de um espantalho, apresentou os seus próprios ouvintes como
testemunhas. Questionou-lhes qual deles poderia dizer que o viu fazer algo
daquela estirpe (cf. o capítulo 3, PLATÃO).
Mas,
um problema ocorre. “Os estudiosos debatem se a pessoa retratada nesses
diálogos é o Sócrates real e histórico ou apenas uma personagem apreciada por
intermédio de quem Platão expressa suas próprias ideias” (SPROUL, p. 32-33).
Platão,
indubitavelmente, ‘desvirtua’ o Sócrates verdadeiro, ou seja, Platão que
começou seus diálogos (escrevia por meio de diálogos, como veremos noutro
artigo) relatando sobre disputas de Sócrates, passou a usá-lo como personagem
para os demais diálogos que envolviam suas próprias ideias. Agora, quando é que
termina Sócrates e começa Platão?*2 Gaarder arremata a questão: “Quando
Platão dá a palavra a Sócrates, não podemos afirmar com toda a certeza que foi
Sócrates quem realmente disse tais palavras. Por isso não é fácil separar os
ensinamentos de Sócrates dos de Platão. [...] Apesar disso, não é muito
importante saber quem Sócrates ‘realmente foi’. É sobretudo a imagem que Platão
pintou dele que inspira o pensamento ocidental há quase dois mil e quatrocentos
anos” (GAARDER, p. 79).
A
VIDA DO MESTRE
Sócrates
nasceu e viveu toda a sua vida em Atenas. ““Sócrates era filho de Sofronisco,
um escultor, e de Fanareta, uma parteira” (CHALITA, p. 47). Eles veio a nascer
cerca de 470 a. C., ou seja, no final das Guerras Médicas. Morreu cerca de 399
a. C. Viveu, pois, no ‘século de Péricles’ e presenciou a queda de Atenas
perante a liga do Peloponeso, de Esparta, na Guerra do Peloponeso.
Era
casado e tinha filhos, como nos informa Will Durant, mas parece que sua vocação
filosófica não lhe conferia sucesso como chefe da família: “Ele não era tão bem
recebido em casa, pois não ligava para a mulher e os filhos; e do ponto de
vista de Xantipa era um vadio imprestável que dava à família mais notoriedade
do que pão [...]. No entanto, ela também o amava, e não se conformou ao vê-lo
morrer, mesmo após 72 anos” (DURANT, p. 28).
E
qual era a ocupação de Sócrates? Viveu longos anos, como observamos. E
legaram-nos uma descrição de um homem ‘fofinho’. Durant, novamente, é uma fonte
peremptória: “Como vivia o mestre, quase ninguém sabia. Ele nunca trabalhou e
não pensava no amanhã. Comia quando seus discípulos lhe pediam a honra de tê-lo
às suas mesas; devem ter gostado de sua companhia, porque ele apresentava todos
os sinais de prosperidade fisiológica (DURANT, p. 28). Era, pois, um homem
livre da Grécia ateniense, um ‘theta’.
O
fato é que esse simpático ateniense era ovacionado por um grupo de seguidores.
O que será que o fazia tão querido? Sabe-se que “salvara, correndo um grande
risco, a vida de Alcibíades numa batalha; e sabia beber como um cavalheiro –
sem medo e sem excesso. Não há dúvida, porém, de que o que mais apreciavam nele
era a modéstia de sua sabedoria: ele não proclamava ter sabedoria, mas apenas
procura-la com afeto. Era um amador da sabedoria, não um profissional” (DURANT,
p. 28).
Sim,
aqui estava um homem diferente dos filósofos de então. Os sofistas eram
mestres, professores de filosofia, tidos como pessoas extremamente sabidas.
Eles gostavam do apreço, e ganhavam a vida ensinando, principalmente a
retórica, recebendo pomposas quantias, vivendo muito bem*3. “Mas
Sócrates diferia dos sofistas num ponto muito importante. Ele não se
considerava um sofistas, isto é, uma pessoa instruída, sábia. Ao contrário dos
sofistas, ele não cobrava absolutamente nada por seus ensinamentos. Não,
Sócrates se autodenominava filósofo, no sentido mais verdadeiro da palavra”
(GAARDER, p. 82). Há algo a mais. Uma digressão.
Sabemos
algo de seu dia a dia. Primeiro, claro, como um bom filósofo, ele refletia. Gaarder
nos informa que “E ela era capaz de ficar horas parado, totalmente mergulhado
em pensamentos” (GAARDER, p. 79)*4.
Mas
ele tinha uma agenda muito famosa. “Sócrates percorria a cidade com frequência,
dialogando com jovens e adultos nos espaços públicos. Essa atividade, aliás,
era condizente com a cultura ateniense da época; afinal, a democracia se
fundamentava justamente nos debates públicos” (CHALITA, p. 48). A ágora era,
pois, a principal ‘sala de aula’. Era, inclusive, uma atividade pertinente às
atividades filosóficas da época, envidadas pelos sofistas. Mas ele não se
restringia às diferenças etárias. Gaarder afirma “Sócrates nasceu em Atenas e
[...] ali passou toda a sua vida, sobretudo nas praças dos mercados e nas ruas,
onde conversava com toda a sorte de pessoas.” (GAARDER, p. 79). Ou seja,
Sócrates não recusava ensinar para qualquer classe social. Bastava, a ele, ser
humano.
Agora,
por que raios Sócrates ficava a dialogar na ágora? Ele não tinha nada para
fazer? Vimos que a ociosidade foi proporcionada pelas atividades políticas da
época. Mas, (já antecipando um pouco o assunto), embora Sócrates detivesse suas
reflexões a assuntos sociais, morais e antropológicos, ele não quis envolver-se
com política. Alceu Amoroso Lima nota que Sócrates dizia que fora instruído por
uma voz divina a não se envolver com política, pois não fora feito para
governar os cidadãos, e sim para instruí-los, argumentar com eles (PLATÃO, p.
15, cf. Capítulo XVIII).
Foram
nessas conversas que Sócrates angariou fãs e inimigos ferrenhos. Veremos, a
seguir, que tipo de diálogo ele fazia com os cidadãos. O fato é que ele
demonstrava a ignorância de seus interlocutores e isso não era, frequentemente,
agradável à vítima.
E
a pergunta que fizemos permanece. Era, pois um boêmio ocioso que, na falta do
que fazer, ficava a importunar os interessados políticos e cidadãos em geral de
Atenas? Pareceu-nos que duas causas o levaram às atividades que exercia.
A
primeira aponta Gaarder: “Sócrates não vivia pegando no pé das pessoas apenas
por que queria atormentá-las. Havia qualquer coisa dentro dele que não lhe
deixava outra saída senão esta. Ele sempre dizia que ouvia uma voz divina
dentro de si” (GAARDER p. 81). A mesma voz divina que observamos acima, e que
ele relata lhe guiar a vida desde criança, sugerindo mas não coagindo, lhe
dizia ser seu dever instruir os cidadãos.
Mas,
além disso, aconteceu um evento singular que o levou às atividades. Sócrates relata
que Xenofonte, amigo seu de infância, certa feita fora ao oráculo de Delfos, e
perguntou sobre o homem mais sábio da terra, ao que ouviu ser Sócrates (cf.
PLATÃO, cap. V). Sócrates, modesto, como notamos acima, achou aquilo um
absurdo. Mas o Oráculo de Delfos costumava falar em enigmas. Era preciso tentar
entender o que o oráculo quis dizer*5. Então ele passou a procurar
as pessoas tidas por sábias para, ao dialogar com elas, pudesse apresentar ao
Oráculo um exemplo de alguém que era mais sábio que nosso famoso filósofo
ateniense. Foi aos políticos e poetas, e a todos mais que julgavam-se sábios
que ele encontrasse por ali.
É
por isso, pois, que insistia em manter suas atividades filosóficas. Além da voz
divina que lhe mostrava os seus deveres vocacionais, ele estava instigado para
resolver o enigma do Oráculo.
Seja
como for, tais aparições de Sócrates lhe granjearam, como dissemos,
admiradores. Logo, como aconteciam com os sofistas em geral, ele ganha
seguidores. Temos que dizer que ele é tão superior aos demais sofistas que até
seus seguidores foram mais célebres. Durant, mais uma vez, tem que falar: “Formavam
um grupo heterogêneo, aqueles jovens que se congregavam à sua roda e o ajudaram
a criar a filosofia europeia. Havia jovens ricos, como Platão e Alcibíades, que
se deleitavam com a sua análise satírica da democracia ateniense; havia
socialistas como Antístenes, que gostavam da pobreza descuidada do mestre e a
transforaram numa religião; havia, até, um ou dois anarquistas entre eles, como
Arístipo, que sonhavam com um mundo em que não houvessem senhores nem escravos,
e no qual todos fossem tão livres de preocupações como Sócrates. Todos os
problemas que agitam a sociedade humana hoje, e fornecem a matéria-prima para o
interminável debate da juventude, também agitavam aquele pequeno bando de
pensadores e oradores, que achavam, tal como seu mestre, que a vida sem
discurso seria indigna de um homem. Todas as escolas de pensamento social
tiveram ali um representante, e, talvez, a sua origem” (DURANT, p. 27-28)*6.
Temos
que notar que surgiram, dos seguidores de Sócrates (e, segundo muitos, do
próprio Sócrates), escolas filosóficas distintas, até mesmo rivais. Por que
será? É certo que muitos podiam ter ouvido errado, outros poderiam ter
confundido seus próprios pensamentos com os do mestre, mas Gaarder nos fornece
uma hipótese excelente: “Enquanto viveu já era visto como uma pessoa enigmática
e logo depois de sua morte foi considerado o fundador das mais diversas
correntes filosóficas. E justamente porque era tão enigmático e porque o que
dizia podia ser interpretado de diversas formas é que correntes filosóficas tão
diferentes puderam reivindica-lo como o precursor de seus princípios” (GAARDER,
p. 79)
Sócrates,
como já observamos, em certo sentido, era um sofista. Ele participa do mesmo
projeto filosófico. Gaarder também nota isso: “Sócrates foi contemporâneo dos
sofistas. Como eles, Sócrates também se ocupava das pessoas e da vida das
pessoas, e não dos problemas dos filósofos naturais. Alguns séculos mais tarde,
um filósofo romano – Cícero – disse que Sócrates havia trazido a filosofia do
céu para a terra, transformado cidades e casas em sua morada e levado as
pessoas a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal” (GAARDER,
p. 82). O mesmo Gaarder diz algo que faz muito sentido nesse contexto: “Sócrates
dizia que a relva e as árvores do campo não podiam lhe ensinar nada” (GAARDER,
p. 79), ou seja, ele, como os sofistas, abandonava as reflexões fenomenais,
físicas e metafísicas. Quanto a elas, ele diria bem ao sabor sofista, conforme
nos apresenta Durant: “Isso é muito bom, disse Sócrates; mas existe matéria
infinitamente mais digna para os filósofos do que todas essas árvores e pedras
e, mesmo, todas essas estrelas: existe a mente do homem. O que é o homem, e o
que ele pode a vir se tornar?” (DURANT, p. 28).
Pretendemos
fazer observações mais delongadas sobre essa questão, mas podemos outorga-los
uma prolepse. Marx irá propor que a reflexão filosófica tanja a coisas úteis ao
invés de discutir metafísica, teologia ou epistemologia. Comte não ficará muito
pra trás quando considera a reflexão metafísica uma etapa superada da
humanidade, que agora chegara à maturidade e pensava cientificamente. O
problema é que pensar em ética e política não exclui a reflexão metafísica e
epistemológica. Antes de fazê-lo, carece dessas disciplinas e nem mesmos os que
as preterem conseguem evitar o tangê-las.
OS DIÁLOGOS SOCRÁTICOS
Chalita
é muito pertinente para introduzir nosso novo assunto: “O instrumento adotado por Sócrates
para o exercício de sua atividade filosófica foi o diálogo, dividindo em duas
etapas sucessivas” (CHALITA, p. 47). As duas etapas são a ironia socrática e a
maiêutica. Estudemos cada uma por sua vez:
IRONIA
SOCRÁTICA
Duas
citações relatam o método com extrema clareza: “Na primeira delas [das etapas],
a que se chamou de ironia*7, o filósofo, insistindo em que nada
conhece, leva o interlocutor a apresentar suas opiniões para, em seguida,
envolve-lo na estrutura confusa de suas próprias afirmações, terminando por
trazer à tona toda a ignorância desse interlocutor a respeito daquilo que até
então acreditava ser a verdade [...] fazia perguntas ao interlocutor,
supostamente desejando compreender o tema, a cada resposta, o filósofo
encontrava uma falha no raciocínio da pessoa e formulava outras questões, até o
interlocutor chega a uma contradição e demonstrar a sua ignorância” (CHALITA,
p. 47-48).
Gaarder
anuncia o método com igual perspicuidade: “Sócrates dava a impressão de ele
próprio querer aprender com seu interlocutor. Ao ‘ensinar’, ele não assumia a
posição de um professor tradicional. [...] Geralmente, no começo de uma
conversa, Sócrates só fazia pergunta, como se não soubesse de nada. Durante a
conversa, frequentemente conseguia levar seu interlocutor a ver os pontos
fracos de suas próprias reflexões” (GAARDER, p. 80).
Em
suma, Sócrates aproximava-se, pois, de um dito sabichão, e começava a
questioná-lo sobre algum assunto, alguma questão específica que o dito cujo
alegava saber. Então um raciocínio afiado inquiria o pretensioso pseudo-sábio
com uma questão atrás da outra, até que esse tal não tivesse mais saída e
tivesse que, contrariado, admitir sua ignorância. Agora, imaginem um orgulhoso
e pomposo sofista, rodeado de seus fãs, ser reduzido a um ignorante perante os
mesmos! E quanto aos políticos e poderosos que igualmente almejavam a fama e o
prestígio público por pura vaidade ou para administrar os rumos do Estado para
cuidarem exclusivamente de seus próprios umbigos? A ironia fê-lo obter seus
inimigos. Gaarder, mais uma vez, torna a coisa muito lúcida: “E justamente
porque fingia que não sabia de nada, Sócrates forçava as pessoas a usar a
razão. Sócrates era capaz de se fingir ignorante, ou de mostrar-se mais tolo do
que realmente era. Chamamos a isto de ironia socrática. Foi assim que ele
conseguiu expor as fraquezas do pensamento dos atenienses. E isto podia
acontecer bem no meio da praça do mercado, no meio de toda a gente. Um encontro
com Sócrates podia significar expor-se ao ridículo, ao riso do grande público.
Não é de espantar, portanto, que ele incomodasse e irritasse muitas pessoas,
sobretudo os que detinham poder na sociedade” (GAARDER, p. 80).
Luc
Brisson notou a estrutura lógica que Sócrates havia desenvolvido, antes que
Aristóteles fundasse a disciplina: “...apresenta um desenvolvimento lógico
determinado: quem responde defende uma teses; em seguida, Sócrates faz com que
este que responde concorde com um dado número de proposições que contradizem a
tese colocada anteriormente. E como o verdadeiro saber exige que se diga sempre
a mesma coisa sobre os mesmos objetos, aquele que tem a respeito de um
determinado objeto propostas contraditórias denuncia sua ignorância” (PRADEAU,
p. 32). Sócrates, pois, argumenta de maneira lógica, demandando coerência da
parte de seus interlocutores. A incoerência, a contradição, era justamente sua
arma, ou melhor, seu desarme.
E,
afinal, como é que se dava essa tal de maiêutica? Que tipo de perguntas
Sócrates fazia e que irritava tanto a seus interlocutores? Sproul é bem
resumido ao comentar sobre o assunto: “Sócrates foi persistente em sua busca de
definições exatas, essenciais ao verdadeiro aprendizado e à comunicação
precisa. [...] Antecipando-se ao Iluminismo, Sócrates usou um método analítico
pelo qual examinava a lógica dos fatos. [...] Ele procurava os universais que
se vislumbram do estudo dos particulares” (SPROUL, p. 33). Mas aqui já temos a
essência do método. Ele demandava por definições exatas dos termos. As pessoas
respondiam às suas questões com termos como virtude, justiça, piedade e afins,
como panaceias. Mas esses termos precisam ser bem compreendidos e geralmente
não eram.
Nash
consegue elucidar a questão: “Em muitos dos seus primeiros escritos*8,
Platão está interessado em encontrar a definição apropriada para termos
importantes como justiça, piedade e virtude. Em Eutífron, Sócrates pede ao
jovem Eutífron que defina o sentido de piedade. Em vez de dar uma definição,
Eutífron fornece exemplos de piedade. Um ocidental contemporâneo na mesma
situação poderia dar exemplo de piedade em termos de ir à igreja, ler a Bíblia,
orar e ser um bom vizinho. Sócrates responde que não tinha pedido exemplos de
obras de piedade; queria saber o que esses exemplos tinham em comum [...]. No
curso da vida, entramos em contato com muitos exemplos de conceitos tal como o
de justiça. Mas, em cada instância, haverá um elemento sem o qual o ato
particular não seria um exemplo de justiça” (NASH, p. 69). Portanto, definir
algo é diferente de dar um exemplo de alguém praticando algo. Tudo bem que o
exercício da piedade consiste em ler a Bíblia, orar, ir à Igreja, praticar a
caridade e afins, mas esses são atos de piedade. Dão uma ideia do que seria
piedade, mas ainda o conceito não foi formulado. Há algo que subjaz a tudo
isso, algum mínimo divisor comum. Era essa definição que os seus interlocutores
não conseguiam encontrar para as questões que ele elaborava. Então tinham de
admitir, como Jó, que falavam de coisas que não sabiam.
Durant
expressa-se assim: “O que querem dizer com essas palavras abstratas com as
quais resolvem tão facilmente os problemas da vida e da morte? [...] Certas
pessoas que sofriam com esse ‘método socrático’, essa exigência de definições
precisas, de pensamento claro e de análise exata, opunham-se a ele, dizendo que
ele perguntava mais do que respondia e deixava a mente dos homens mais confusa
do que antes” (DURANT, p. 28-29)*9. Chato? Claro. Mas extremamente
necessário caso a discussão profunda fosse demandada. É preciso questionar,
duvidar. Mas a atividade filosófica não termina aqui.
MAIÊUTICA
A
crítica de que ele deixava as mentes mais confusas do que antes não é muito
precisa. Na verdade ele as desiludia, mostrando que aquela sabedoria que julgam
ter é onírica. Entretanto, não se detinham em escancarar a burrice dos que com
ele dialogavam. Ele enredava aquele com quem conversava num estado de
introspecção, onde encontraria, induzido por Sócrates, as respostas às
questões, baseado em sua natureza racional. Chalita comenta sobre a etapa: “Na
segunda fase do diálogo socrático, denominada maiêutica – ou ‘parto das ideias’
–, o interlocutor era levado a tentar elaborar as próprias ideias, ir ao
encontro da própria alma e adquirir, a partir de então, uma existência
autêntica e verdadeiramente original” (CHALITA, p. 48). Isso mesmo, ele se via
como um parteiro. Tal imagem certamente é oriunda da profissão de sua mãe.
Gaarder também elabora uma exposição: “Sócrates costumava comparar a atividade
que exercia com a de uma parteira. [...] sua tarefa era ajudar as pessoas a
‘parir’ uma opinião própria, mais acertada, pois o verdadeiro conhecimento tem
de vir de dentro e não pode ser obtido ‘espremendo-se’ os outros. Só o
conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento.
Deixe-me explicar melhor: a capacidade de dar à luz é uma característica
natural. Da mesma forma, todas as pessoas podem entender as verdades
filosóficas, bastando para isto usar a sua razão” (GAARDER, p. 80).
Assim,
Sócrates, confiante de que todo homem, por ser racional, pode, por isso, chegar
à verdade, bastando que por vias lógicas fosse lhe guiado os passos. Essa
confiança na racionalidade humana está presente, também, em Adler, quando está
falando da possibilidade de resolver discórdias: “Os seres humanos são animais
racionais. A racionalidade é a fonte da capacidade de concordar. A animalidade
e as imperfeições que ela imprime sobre a razão são a causa da maior parte das
discórdias. Os seres humanos são criaturas passionais e preconceituosas. A
linguagem que empregam na comunicação é imperfeita, obscurecida pela emoção e
colorida pelo interesse próprio, além de pouco transparente ao pensamento. No
entanto, dado que os seres humanos são racionais, tais obstáculos podem ser
superados” (ADLER, p. 158).
Essa
teoria, da maiêutica, será aproveitada por Platão e Agostinho, com suas
respectivas adaptações aos seus sistemas.
Era
essa confiança na racionalidade humana que fazia Sócrates pôr-se a dialogar com
qualquer ser humano que encontrasse. Afinal, todos são racionais. Chalita,
então, diz o seguinte: “Sócrates transmitia seus ensinamentos a qualquer homem,
tivesse ele um interesse especial pelo debate filosófico ou não [...]. Por
exemplo, por meio do diálogo, Sócrates teria levado um escravo – que
normalmente era desprovido de qualquer instrução e considerado inferior em
inteligência – à demonstração do Teorema de Pitágoras” (CHALITA, p. 48).
SÓ SEI QUE NADA SEI
Voltemos
para o fato de que Sócrates queria compreender o que o Oráculo de Delfos queria
dizer com o fato de ele ser o mais sábio homem que existia. Para começo de
conversa, havia um bom número de homens ali mesmo, em Atenas, que Sócrates
julgava serem muito mais conhecedores que ele. Mas, ao aplicar o método
socrático, a ironia, a eles, percebeu que ostentavam saber de coisas que, na
verdade, não sabiam. Se estavam conscientes de não saberem, não sabemos. O fato
é que ornavam sua ignorância com termos não compreendidos e se gabavam de ter
um conhecimento que ainda lhes era distante*10. Então Sócrates matou
a charada. O que o fazia mais sábio que eles era a consciência da própria
ignorância. Sproul elucida: “Sócrates estava convencido de que, para adquirir
conhecimento, é preciso primeiro admitir a própria ignorância. Esse
reconhecimento é o princípio do conhecimento, mas de forma alguma seu objetivo
ou fim. É uma condição necessária para aprender”*11 (SPROUL, p. 33).
Sproul
toca num ponto importante. Muitos cientes da frase célebre de Sócrates, ‘só sei
que nada sei’, vêm ali uma boa justificativa para sua idiotice, como um álibi;
ou ainda fundamentam, nisso, seu desprezo pela filosofia. De fato, tal como
Aristófanes, eles caricaturam o sábio de Atenas, como se fosse um sofista, no
sentido pejorativo do termo. Tal constatação, antes, é o princípio do
conhecimento, e não seu fim.
Tal
é a essência que define um filósofo, conforme brilhantemente observa Gaarder: “Um
filósofo sabe muito bem que, no fundo, ele sabe muito pouco. Justamente por
isto ele vive tentando chegar ao verdadeiro conhecimento. Sócrates foi uma
dessas raras pessoas [e] [...] o fato de saber tão pouco não o deixava em paz.
Um filósofo, portanto, é uma pessoa que reconhece que há muita coisa além do
que ele pode entender e vive atormentado por isto” (GAARDER, p. 83). Como, para
o sofista, o objeto de interesse maior do filósofo é, seguindo o concelho da
inscrição do templo onde estava o Oráculo de Delfos, ‘conhece-te a ti mesmo’, o
filósofo deve deter-se à reflexão sobre si, à introspecção, conforme aponta
Durant, que, inclusive, denomina de agnosticismo a fase inicial do filósofo: “...
agnosticismo que era o ponto de partida de sua filosofia – ‘Só sei uma coisa, e
é que nada sei’. A filosofia começa quando a pessoa aprende a duvidar –
particularmente duvidar de suas próprias crenças preferidas, de seus dogmas e
de seus axiomas. Quem sabe como essas crenças preferidas se tornaram certezas para
nós, e se algum desejo secreto não as gerou, vestindo o desejo com o traje do
pensamento?” (DURANT, p. 28). Notem suas palavras, a filosofia começa quando se
aprende a duvidar. Ela não termina ali.
Gaarder
também nota que é isso que difere um filósofo de uma pessoa comum: “... a
humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil
encontrar uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos
simplesmente enganar a nós mesmos e ao resto do mundo como se soubéssemos de
tudo o que vale a pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos
para essas questões importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isto
divide a humanidade em duas partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que
estão cem por cento certas, ou então se mostram indiferentes” (GAARDER, p. 83).
Sócrates, pois, via-se obrigado a despertar as pessoas desse, tomando as
palavras de Kant, ‘sono dogmático’. E, de fato, não podemos confiar nem mesmo
nas pessoas que estudam, como se fossem de fato interessados no saber. Tanto os
sofistas de antigamente, quanto a maioria das pessoas que conhecemos e
cursaram, estão cursando ou irão cursar um curso universitário não escapam
desta acusação de Schopenhauer: “Quando observamos a quantidade e a variedade
dos estabelecimentos de ensino e de aprendizado, assim como o grande número de
alunos e professores, é possível acreditar que a espécie humana dá muita
importância à instrução e à verdade. Entretanto, nesse caso, as aparências
também enganam. Os professores ensinam para ganhar dinheiro e não se esforçam
pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la. E
os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir, mas para poder
tagarelar e ganhar ares de importantes. A cada trinta anos, desponta no mundo
uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do
saber humano acumulado durantes milênios, de modo sumário e apressado, depois
querem ser mais espertas do que todo o passado. É com esse objetivo que tal
geração frequenta a universidade e se aferra aos livros [...] Quanto aos
estudos feitos simplesmente para ganhar o pão de cada dia, nem os levei em
conta” (SCHOPENHAUER, p. 17).
SÓCRATES EPISTEMÓLOGO
“Há
quem diga que, em sua época, Sócrates foi o salvador da civilização ocidental”
(SPROUL, p. 32). Vejamos o porquê.
Sócrates
não se diferencia dos Sofistas apenas pelo fato de não ser um viajante vindo a
Atenas, nem mesmo só por não cobrar por suas lições ou por saber que não sabia
das coisas. Aliás, muitos diriam que nisso eram iguais a Sócrates. No entanto,
aqui reside a grande distinção entre eles. E é de cunho epistemológico, se
assim podemos dizer. Sproul sumariza: ““Para Sócrates, porém, ao contrário dos
céticos, o conhecimento é possível, por meio do aprendizado” (SPROUL, p. 33).
Os ‘céticos’ aqui seriam melhores retratados como ‘sofistas’.
Como
vimos, os sofistas eram basicamente relativistas, i. é, eles não acreditavam na
própria verdade, o objeto de desejo da filosofia, segundo Sócrates.
Uma
demonstração peremptória da relação socrática com a sofística é esta: “’Não
posso refutar-te, Sócrates’, disse Ágaton, ‘Suponhamos que o que dizes é
verdade.’ ‘ Em vez disso, Ágaton, dize que não pode refutar a verdade, pois
Sócrates é facilmente refutável’” (PLATÃO apud ADLER, p. 157). Ou seja, ele
sabe que existe a verdade, e não gostava de ser identificado apenas como um
retórico. A filosofia não é mera retórica, insistiu Sócrates. Tanto é que, no
começo da Apologia de Sócrates, segundo Platão, a primeira coisa que ele faz é
dizer, de certa forma, que não era um sofista*12.
Ronald
Nash nos lega um importante diálogo de Sócrates com o famoso Protágoras:
“Sócrates:
‘Então, você crê que a opinião de cada homem é tão boa como a de qualquer outra
pessoa?’
Protágoras:
‘Tal é correto’.
Sócrates:
‘Como você ganha a vida?’
Protágoras:
‘Sou professor’.
Sócrates:
‘Acho isso meio confuso. Você admite que ganha dinheiro ensinando, mas eu não
consigo imaginar que você possa ensinar alguém. Afinal, você admite que a
opinião de cada pessoa é tão boa quanto a de qualquer outra. Isso significa que
o que seus alunos crêem é tão bom como qualquer coisa que você possivelmente
possa lhes ensinar. Uma vez que eles aprendam que cada pessoa é a medida de
todas as coisas, que possível razão teriam para pagar por futuras aulas? Como
será possível ensiná-los, tão logo aprendam que suas opiniões são tão
verdadeiras como as suas?’” (PLATÃO apud NASH, p. 252).
Sujeitinho
irritante, não? Pelo menos para os vigaristas, sim, sem dúvida!
Além
disso, o grande mestre de Atenas nos ensina como lidar com todo e qualquer
relativista em todas as épocas, independente de como ele venha a trajar sua
epistemologia da covardia. Há dois testes peremptórios.
Num
deles “Sócrates declara que a doutrina do homem-medida poderia parecer
plausível até que alguém a submetesse ao teste da experiência” (NASH, p. 252).
De todos os testes há um em especial que nos cativou muito. James W. Sire cita
Robert Farrar Capon observando a impraticabilidade do niilismo, faz a seguinte
observação: “O cético nunca é real. Lá ele permanece, coquetel em uma das mãos,
braço esquerdo languidamente apoiado sobre a quina da lareira, dizendo a você
que não tem certeza de coisa alguma, nem mesmo de sua própria existência. Eu
lhe revelarei o meu método secreto de acabar com o ceticismo universal em
quatro palavras. Sussurre para ele: ‘Sua braguilha está aberta’. Se ele acha o
conhecimento tão impossível assim, por que ele sempre olha?” (CAPON apud SIRE,
p. 127).
“Em
outro argumento, Sócrates mostra a natureza logicamente autofrustrante da
posição de Protágoras. Se Protágoras crê que a crença de cada pessoa é
verdadeira, segue-se que cada cidadão de Atenas que creia que a teoria de
Protágoras é falsa terá de estar correto” (NASH, p. 252). Desde então tal
desconstrução da prepotência relativista ganha outros nomes, mas essencialmente
é a mesma coisa.
Vejamos
dois exemplos. Primeiro, Geisler e Turek dão-lhe o nome de ‘tática do
Papa-léguas’: “Ao processo de confrontar uma afirmação falsa em si mesma com ela própria, damos o nome de ‘tática do Papa-léguas’, porque ela nos lembra as
personagens de desenho animado Papa-léguas e Coiote. Como você deve se lembrar
das sessões de desenho animados da TV, o único objetivo do Coiote é caçar o
veloz Papa-léguas para transformá-lo em sua refeição. Mas o Papa-léguas é
simplesmente rápido e esperto demais. Quando o Coiote está prestes a agarrá-lo,
o Papa-léguas simplesmente para instantaneamente na beira do abismo, deixando
que o Coiote passe de lado e fique temporariamente suspenso no ar, apoiado em
nada. Tão logo o Coiote percebe que não tem um chão no qual se afirmar, cai
verticalmente rumo ao fundo do vale e arrebenta-se todo” (GEISLER; TUREK, p.
39-40).
Já
Ronald Nash ensina esse brilhante raciocínio socrático sob o nome de ‘absurdo
auto-referencial’: “Uma importante aplicação dos princípio da não-contradição é
a descoberta de posições que sofrem de um absurdo auto-referencial. Tal
condição existe sempre que a aplicação de uma teoria a si mesma envolva uma
pessoa em uma falsidade necessária ou em um absurdo lógico” (NASH, p. 218, cf.
o resto da exposição nas páginas 218-223).
Portanto,
existe a verdade. Por definição, pela lógica, temos que admiti-la. Sócrates é o
pai de todas as refutações ao relativismo, em quaisquer das formas que ele
aparece no decorrer da história.
Gaarder
vê Sócrates como um racionalista: “Para Sócrates era importante encontrar um
alicerce seguro para os nossos conhecimentos. Ele acreditava que este alicerce
estava na razão humana. E porque acreditava muito na razão humana, Sócrates foi
também um racionalista convicto” (GAARDER, p. 84). Temos que considerar a
proposta nietzschiana de que, de repente, não haveria verdade mesmo, e lógica
fosse uma forma humana de compreensão. Mas nesse caso, jamais saberíamos disso.
Aliás, a própria ideia de saber já é estruturada conforme nossos padrões
lógicos. Se a lógica e a verdade não fossem substantivos concretos, antes
fossem abstratos, então estaríamos em sérios apuros. É claro que quando
pensamos que isso é impossível pensamos segundo nossos padrões lógicos de
pensamento. Mas como supor um padrão lógico diferente e superior? Supor isso é
uma crença arbitrária, uma fuga para o mistério com o fim de fugir da verdade.
É
nesse espírito que encerramos essa parte da exposição da filosofia de Sócrates
com uma citação de Durant, onde Sócrates instrui a Crito, e que fundamentará
nossos próximos passos: “Sê razoável, então, e não te preocupes se os
professores de filosofia são bons ou ruins, mas pensa apenas na Filosofia
propriamente dita. Tenta examiná-la bem e com sinceridade; e se ela for má,
procura afastar dela todos os homens; mas se ela for o que acredito que é,
segue-a e serve-a, e fica contente” (DURANT, p. 23). Sócrates, pois,
considerava a filosofia como encontro com a verdade e isso teria benefícios
existenciais e sociais. É o que veremos a seguir.
SOCRÁTES
SOFISTA
Já
vimos que Sócrates cria na verdade absoluta. Vimos também que ele dialogava com
os cidadãos romanos em prol de instruí-los, valendo-se da ironia e da
maiêutica. Mas ainda não tangemos aos principais assuntos da sofística, a ética
e a sociologia. Para isso, pois, comecemos com a usada afirmação de Durant:
“Apesar de tudo [das críticas que lhe faziam e fazem], ele legou à filosofia
duas respostas muito precisas para dois de nosso mais difíceis problemas: qual
o significado da virtude, e qual o melhor Estado?” (DURANT, p. 29).
ÉTICA
Evidentemente
Sócrates percebeu o impasse ético que os sofistas abordaram. É certo que os
mitos, os deuses dos gregos, não ofereciam uma teologia muito competente. E, no
decorrer das décadas, severas críticas já haviam sido feitas à religião, ou,
particularmente, à religião grega. Sócrates não queria endossar a fé religiosa
politeísta dos gregos. Entendia essa fé como um regresso. “Ele tinha a sua fé
religiosa: acreditava em um só Deus e tinha esperanças, como a sua modéstia, de
que a morte não iria destruí-lo por completo; mas sabia que um código moral
duradouro não poderia ser baseado numa teologia tão incerta assim. Se fosse
possível construir um sistema de moralidade absolutamente independente da
doutrina religiosa, válido tanto para os ateus quanto para os crentes, as
teologias poderiam surgir e desaparecer sem descolar o cimento moral que faz de
indivíduos voluntariosos os pacíficos cidadãos de uma comunidade” (DURANT, p.
29). Sócrates, pois, apesar de teísta, queria postular uma ética que não
dependesse de Deus. Afinal, ela deveria valer tanto para os crentes quanto para
os descrentes. Tanto para ele quanto para os terríveis sofistas.
Aqui
a associação de verdade e o bem é a solução socrática. As pessoas praticam o
mal porque não compreendem que ele é mal. Chalita assim compreende Sócrates:
“Para o filósofo, conhecer a verdade teria como consequência inevitável agir
bem; quanto aos maus atos, só seriam cometidos por ignorância. [...] Agir
conforme o bem seria decorrência do conhecimento” (CHALITA, p. 48), e Gaarder
confirma: “Só quem faz o que é certo – assim dizia Sócrates – pode se
transformar num homem de verdade. Quando agimos erroneamente, isto acontece
porque não sabemos como fazer melhor. Por isso é tão importante ampliar nosso
conhecimentos” (GAARDER, p. 85).
Mas
Sócrates não está falando de bem e mal no sentido estritamente moral*13. Ele fala de bem como aquilo que nos faz
bem, seja material ou espiritualmente. ‘Mal’ é tomado nos mesmos termos. A sua
proposta, pois, é que todo mundo age de um modo que acredita ser bom pra si.
“Sócrates achava impossível alguém ser feliz se agisse contra suas próprias
convicções. E aquele que sabe como se tornar uma pessoa feliz certamente
tentará fazê-lo” (GAARDER, p.85). Portanto, se uma pessoa pratica determinado
ato, no final das contas, ela o fez porque calculou que aquilo era a melhor
coisa que ela poderia fazer para atingir a felicidade.
Felicidade,
aliás, é discutida em termos de realização existencial, de identificação de si
mesmo como homem. Alguém só é feliz quando consegue firmar-se como um
verdadeiro ser humano. E só alcança esse objetivo quem busca a verdade. A busca
da verdade é a busca do conhecimento. E a busca do conhecimento levará o homem
à prática do que é bom pra ele de fato. “Ele percebeu que conhecimento e
virtude são inseparáveis – tanto que a virtude poderia ser definida como o
conhecimento correto. Pensar e agir corretamente podem ser distinguidos um do
outro, mas jamais separados um do outro” (SPROUL, p. 32). É nesse contexto que
outra célebre frase de Sócrates faz sentido. Ele diz, na Apologia, capítulo
XXVI, que “uma vida não examinada não é digna de ser vivida”. Somente a vida
filosófica poderia levar o homem à realização de si como homem, e, assim, à
felicidade. Sem esse exame, o homem será sempre irrealizado.
Não
dá pra não pensar em Jeremy Bentham, Stuart Mill e Moore nesse momento.
Sócrates os precedeu e criou, já na antiguidade, segundo a interpretação de
Durant, o utilitarismo: “Se fosse possível ensinar os homens a perceberem
nitidamente seus verdadeiros interesses, a preverem os distantes resultados de
seus atos, a criticarem e coordenarem seus desejos para que saíssem de um caos
auto-esterilizados e atingissem uma harmonia proposicional e criativa, talvez
isso proporcionasse ao homem instruído e sofisticado a moralidade que, nos
iletrados, se apoia em preceitos reiterados e em um controle externo” (DURANT,
p. 29).
Essa
parece uma boa ética secular. Mas Nietzsche a destruirá definitivamente como
veremos, fazendo, na verdade, um favor à causa que o bigodudo tanto odiava: à
causa do teísmo. Protelemos.
Numa
citação de Xenofonte a questão está mais relacionada com uma ontologia para a
ética e a beleza que transcendam a mera sobrevivência humana. “A um tempo belas
e boas são todas as ações justas e virtuosas. Os que as conhecem nada podem
preferir-lhes. Os que não as conhecem não somente não podem praticá-las como,
se o tentam, só cometem erros” (XENOFONTE apud CHALITA, p. 48). De fato, ao
perceber que alguma coisa é boa, alguém irá correr ao seu encontro. O bem e o
belo são intuitivamente desejados. Mas podem não ser percebidos. Pode haver
engano quanto à identificação do que é bom. Talvez até mesmo a beleza seja
desconhecida, ao menos em proporções maiores. O fato é que a identificação do
que é certo e errado, belo ou feio, não seria definido como os sofistas
pregavam. “Contrariamente ao sofistas, ele acreditava que a capacidade de distinguir
entre o certe e o errado estava na razão, e não na sociedade” (GAARDER, p. 84).
As pessoas, pois, de uma determinada sociedade podiam até mesmo divulgar e
acreditar que algo ruim fosse bom. Mas isso seria apenas uma evidência de que
se trata de uma civilização não muito esclarecida e, se apelássemos para a sua
razão, com as perguntas certas, as levaríamos a admitir o que a moralidade
objetiva, bem como a se conformar a ela.
Essas
propostas filosóficas de Sócrates abrem espaço para muito debate filosófico
concernente à antropologia filosófica. Para Sócrates, talvez antecipando
Aristóteles, o homem seja predominantemente racional. Assim, volição e emoção
se subordinam à razão. Sentimos e desejamos em virtude de nossa compreensão.
Para Sócrates, pois, não se pode desejar algo apesar de compreendermos que nos
é prejudicial. Se o desejamos seria porque, no final das contas, acreditamos
que é o melhor pra nós naquele momento e até a longo prazo, mesmo que o ‘longo
prazo’ não seja considerado. Mas Durant parece não creditar tal primazia à
razão como faculdade da alma. Ele, como muitos outros no decorrer da história
do pensamento, irão pensar no homem como volitivo e emocional também, como
faculdades igualmente determinantes da alma humana, de modo que possamos
desejar algo que sabemos ser errado. Pode ser uma questão biológica, por
exemplo. Ainda assim Durant ressalta a importância do conhecimento filosófico
para o caráter do homem: “O homem inteligente pode ter os mesmos impulsos
violentos e anti-sociais do ignorante, mas o certo é que irá controla-los
melhor e diminuir a frequência com que resvala para a imitação do animal”
(DURANT, p. 29). É praticamente uma santificação por meio do conhecimento.
Mas
Sócrates não estava exatamente interessado, como futuros utilitaristas, em que
se planejassem leis, pensadas por filósofos, que correspondessem ao bem e
obrigassem externamente os indivíduos. Para ele “a finalidade da vida é a
felicidade, que estaria na capacidade do ser humano em estabelecer para si
mesmo, por meio do saber, suas próprias leis e regras de conduta. Não seria
essa, enfim, a condição fundamental do homem verdadeiramente livre?” (CHALITA,
p. 49). Ou seja, segundo Chalita, o problema em uma imposição externa seria que
os cidadãos não estariam cientes de que estariam fazendo o bem a si mesmos e,
com isso, não poderiam estar felizes. O certo seria que fossem educados e
instruídos para deduzir o que é certo e errado, em termos utilitários.
Para
nós, o grande problema da proposta de Sócrates, afora o fato de que ele não
parece dar um caráter concreto à ética, é que o filósofo estava plenamente
confiante na capacidade de ‘professores’ induzindo os homens, e nos homens
abstraindo corretamente. E se, por erro de raciocínio, os homens chegassem a
conclusões erradas sobre o que lhes é melhor? E se não percebessem que o que
elegeram como melhor fosse prejudicial, de maneira direta, para seu próximo?
Como
falamos nas leis, podemos partir para o campo forense-político.
POLÍTICA
Já
antecipamos a proposta. Quanto ao convívio em sociedade, “bastaria uma visão
clara para garantir a paz, a ordem e a boa vontade” (DURANT, p. 30). Alceu Lima
nota que “Sócrates nunca sonhou em organizar uma República que pudesse, pela
rigidez de suas leis, como pretendeu Platão fazê-lo, dar a felicidade aos
cidadão” (PLATÃO, p.15). Somente a educação filosófica para cada cidadão
poderia propor um bom convívio entre eles. É por isso que Chalita abstrai o
seguinte: “A procura pela verdade implica, para Sócrates, conseguir uma
convivência honesta e digna entre os homens” (CHALITA, p. 48). E nesse sentido
podemos concordar com Sócrates quando afirmava “o tempo todo que tudo o que
fizera fora para o bem do Estado” (GAARDER p. 81). Homens insatisfeitos não
poderiam seguir as leis de forma muito fiel, ao passo que homens cientes de que
agir de tal ou tal forma era bom para eles seriam extremamente fiéis à lei e
bons para o próximo.
Quanto
à forma de governo, Sócrates alia-se aos sofistas que criticam a democracia e
apreciam a aristocracia: “Não é uma superstição rasteira achar-se que a simples
quantidade dará sabedoria? Ao contrário, não é do conhecimento de todos que os
homens em multidões são mais tolos, mais violentos e mais cruéis do que
separados e sozinhos?*14 [...] Como
pode uma sociedade ser salva, ou ser forte, se não tiver à frente seus homens
mais sábios?” (DURANT, p. 30). Assim,
aquela grande quantidade de cidadãos participando das assembleias, decidindo,
por votos, o que lhes parecia bom, não era uma boa pedida. Afinal, não eram
homens especializados, e estavam à mercê do ludibriar, da lábia sofista, da
demagogia.
A
MORTE DE SÓCRATES
Bom,
como dissemos, Sócrates não fez apenas amigos e admiradores. Fez inimigos
ferrenhos. Pessoas que julgavam-se sábias e que foram humilhadas em público. Propostas
frustradas pelo afiado raciocínio socrático. Deuses ridicularizados por ele e
seus discípulos. Era inevitável que a ditadura democrática, tirânica, lhe
levasse à morte. Para piorar, segundo Sproul, “Um dos alunos de Sócrates, um
homem chamado Alcíbíades, traiu os atenienses entregando segredos deles aos
espartanos. Em consequência disso, Sócrates foi considerado mentor de traidores
e levado a julgamento” (SPROUL, p. 33). Durant complementa o quadro: “Imagine a
reação do partido popular em Atenas a esse evangelho aristocrático numa época
em que a guerra parecia exigir silenciar todas as críticas, e em que a rica e
letrada minoria tramava uma revolução?” (DURANT, p. 30). Sócrates era o líder
intelectual da aristocracia. Não era bom que ficasse vivo. Agora, “calcule os
sentimentos de Anito, o líder democrático cujo filho se tornara discípulo de
Sócrates e, depois, voltara-se contra os deuses de seu pai e ria na cara do
pai” (DURANT, p. 30).
Mas
Anito, Meleto e Lícon*15 não
levaram Sócrates ao tribunal especificamente por subversão. Na verdade, a
confusão era justamente por conta, como vai desenvolvendo Sócrates no decorrer
de sua Apologia registrada por Platão, de suas atividades filosóficas e dos
inimigos que conseguira por conta delas. “Alguns cidadãos de Atenas,
enfurecidos pela ironia que Sócrates não tinha medo de usar, acusaram-no
oficialmente de impiedoso (por desrespeitar os deuses, a religião) e de induzir
os jovens a se comportar de maneira imprópria” (CHALITA, p. 48).
Sócrates
se recusava a parar de agir como filósofo. Eram deveres incumbidos por Deus
(cf. a Apologia, cap. XVI). Acusavam Sócrates de corromper os jovens e de
ateísmo, negando os deuses do estado e introduzindo entidades demoníacas (as
quais corrompiam os jovens e os conduziam ao mesmo tipo de ateísmo). Tal
acusação de cunho religioso levava o caso para o rei, que tinha o dever de
defender a religião do Estado. O rei reuniu 501 jurados que, no final,
decidiram pela morte de Sócrates por envenenamento: tomaria cicuta. Antes,
Sócrates foi levado à prisão e fortemente trancafiado. Críton, amigo de
Sócrates, interviu para que o prisioneiro fosse melhor tratado, e garantiu que
ele não fugiria. Sócrates, pois, pôde conversar com seus amigos. Foi-lhe
concedida “a chance de escapar da pena se renegasse suas ideias diante do
tribunal, ao mesmo tempo alguns amigos arquitetaram um plano para que ele
fugisse de Atenas. Entretanto, Sócrates não aceitou nenhuma das alternativas,
ambas desonrosas do seu ponto de vista” (CHALITA, p. 48). Durant também comenta
sobre as possibilidades de fuga: “Seus amigos dirigiram-se à prisão onde ele se
achava e lhe ofereceram uma fuga fácil: haviam subornado todos os funcionários
que se achavam entre ele e a liberdade*16.
Ele se recusou. Estava com setenta anos de idade agora (399 a. C.); talvez
achasse que estava na hora de morrer, e que nunca teria nova oportunidade de
morrer de forma tão proveitosa” (DURANT, p.31). Se Sócrates fugisse seu
pensamento e palavra morreriam; ao passo que, se morresse, viveriam e os juízes
da posteridade poderiam olhar para seu exemplo e evitar o cometer injustiças.
Sua fala teria sido esta: “Minha fuga seria a morte da minha palavra, a morte
do meu pensamento. Conservando a vida, eu me tornaria indigno. Minha palavra,
espalhada e amada, pode fazer algum bem. Não me peças que eu mate a minha
palavra, outros juízes poderão se precaver contra a injustiça e outros
inocentes poderão ser poupados. Seria covardia e crueldade não procurar
salvá-los” (PLATÃO, p. 75). Era o único jeito, aos olhos de Sócrates, de
atingir o sistema. Eis a morte, pois, de um grande mártir. Na presença de
muitos de seus amigos*17, com uma
calma assombrosa, tomou cicuta e morreu*18.
É
legal observar o capítulo XXVIII da Apologia. Sócrates, conformado com a pena
que levaria, põe-se a vaticinar (e diz que é próximo à morte que os homens
vaticinam), e prognostica que em breve eles se arrependeriam do que fizeram, e
a paz que queriam obter ao mata-lo, (obtendo-a, pois, de modo nada belo), lhes
seria subtraída dentro em pouco. Os editores da edição da Saraiva observam, na
nota 20, que, de fato, pouco tempo depois seus acusadores foram levados à
juízo, e Meleto fora condenado à morte, ao passo que Anito fora exilado e Lícon
suicidou-se; a Sócrates foi erigida uma estátua (PLATÃO, p.81)*19.
---------------------------------------------------
*1
Moura fala que Xenofonte não é uma boa fonte. Em suma, seus argumentos são os
seguintes: Han Ryner chama-o de grande mentiroso, pois atribui a Sócrates
muitas atitudes que o livraria da cicuta, se ele consentisse com elas.
Xenofonte que era apaixonado por guerras faz de Sócrates, o pacifista, um quase
apologista da guerra.
Xenofonte
também fala de Sócrates sacrificando aos deuses, o que Antístenes desmente.
Xenofonte,
para demolir as leis de Atenas em prol das leis de Lacedemônia vale-se de
Sócrates, assim como o fez Platão. Agem como se Sócrates demolisse apenas as
leis vigentes, e não as que viriam.
Como
Xenofonte é soldado, criou um Sócrates observador das leis. (cf. PLATÃO, p.
69-70).
*2
Para dar um exemplo, tomemos Moura. Para ela, Sócrates entende que a reflexão
filosófica deve ter cunho existencial, ético e antropológico ao invés de
metafísico. Portanto, as afirmações metafísicas de Platão, atribuídas a
Sócrates, são falsas. Sócrates “não se limitava a sonhar, porque preferia ficar
na terra, aperfeiçoando os homens” (PLATÃO, p.60).
*3
“Esses sofistas eram ricos, vestiam-se luxuosamente, tinham maneiras finas, elegância
que deslumbrava os moços, os quais lhe pagavam caro a aprendizagem bacharelesca
das palavras banais e cintilantes” (PLATÃO, p. 61).
*4
Correndo o risco, arriscamo-nos a questionar se Sócrates não seria analfabeto.
Afinal, com todo esse tempo de reflexão, por que raios ele não escreveu nada?
Será que ele designou seus discípulos a registrar seus ensinamentos? Ou
simplesmente não se achava bom o suficiente para outorgar-nos algo?
*5
Lendo a ‘Apologia de Sócrates’ escrita por Platão ficamos em dúvida quanto a
essa questão. Às vezes ele parece perceber que, como o Oráculo teria falado da
parte de Deus, não podia errar. Noutras oportunidades parecia estar disposto a
demonstrar ao Oráculo que ele havia errado. Supomos que a resolução esteja no
que dissemos no texto. Talvez o intuito de demonstrar que o Oráculo estava
errado era para tentar desvendar o enigma daquela afirmação.
*6
Maria Lacerda Moura observa que “Sócrates procurou escrever no coração e na
razão dos homens” (PLATÃO, p.61), de modo que não escreveu nada, e não nos
legou nada, diretamente. Seus discípulos são quem o transmitem, embora todos o
façam com alguma alteração, alguma transferência de si para o personagem. O
problema com essa perspectiva de Moura é que ela afirma categoricamente que
todos o deturparam, como se soubesse como ele de fato era. Como saber que todos
o deturparam? Não seria possível que algum deles o tenha retratado com
fidelidade? O testemunho de Platão, como vimos, é o mais aceito. Mas mesmo
Platão começou a desenhar um Sócrates muito estranho, diferente, no decorrer
dos seus escritos. Um Sócrates que contradizia o primeiro e que ninguém mais
havia ouvido, nem mesmo algo parecido que pudesse ter sido interpretado por
Platão.
*7
Kierkegaard publicou seu doutorado como ‘O conceito de ironia constantemente
referido a Sócrates’. Estamos morrendo de curiosidade para saber o que o
dinamarquês tem a dizer sobre o assunto.
*8
Portanto, quando provavelmente ele ainda não ‘alterava Sócrates’.
*9
Vejam Trasímaco a reclamar: “Que loucura tomou conta de você, Sócrates? [...]
Eu lhe digo que, se quiser saber o que é justiça, deve responder, e não
perguntar, e não devia orgulhar-se de refutar os outros ...0 Pois existem
muitos que sabem perguntar mas não sabem responder (336)” (Trasímaco, na República
de Platão, apud DURANT, p. 35).
*10
Quem já leu, nem que seja algumas partes, de livros como ‘O mínimo que você
precisa saber para não ser um idiota’, do grande filósofo brasileiro da
atualidade, Olavo de Carvalho; ou ‘A arte de escrever’, de Arthur Schopenhauer,
verão bons pensadores denunciando os mesmos erros nas suas respectivas pátrias.
Olavo observa que o brasileiro, principalmente a ‘classe falante’, vale-se de
termos que mal compreende, além do próprio vocabulários escasso, que limita sua
perspectiva teórica. Schopenhauer fala da prolixagem de idealistas alemães que
omite o pouco conteúdo que têm a transmitir. Quem já os leu não pode deixar de
perceber a semelhança de parte de suas empreitadas filosóficas. Quando formos
escrever mais detidamente sobre filosofia da linguagem abordaremos o tema.
*11 É interessante, a título de completude,
observar como Gaarder, mais tarde, vai falar sobre a ideia do eterno e mutável,
de Parmênides e Heráclito, virem a surgir no projeto sofista. Aqui, pois, uma
prolepse do que veremos adiante: “Sócrates e os sofistas ocupavam-se de certa
forma com a relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo
que, de outro, ‘flui’. E tocavam nesse ponto quando se tratava da moral do homem e dos ideais ou virtudes da sociedade. De modo muito geral, os sofistas achavam
que a questão sobre o que era certo ou errado modificava-se de cidade-Estado
para cidade-Estado e de geração para geração. Para eles, portanto, essa questão
de certo ou errado era ‘algo que fluia’. Sócrates não podia aceitar isto. Ele
acreditava em regras ou normas eternas, que governavam o agir dos homens. Se
usarmos apenas a nossa razão – dizia ele –, poderemos reconhecer todas essas
normas imutáveis, pois a razão humana é precisamente algo eterno e imutável”
(GAARDER, p. 97-98). Segundo essa interpretação, Sócrates estaria falando de
algo concreto, e não apenas uma abstração humana como iremos propor no texto.
Sócrates iria, pois, identificar o bem como algo concreto e eterno, ao passo
que os sofistas o considerariam algo ‘fluido’, determinado pela sociedade.
*12
O texto a qual nos referimos é o capítulo I. Em suma, ele ensina o seguinte: Sócrates
começa sua defesa, perante os 501 avaliadores, desconstruindo uma armadilha
psicológica que foi feita pelos seus acusadores. Disseram que eles teriam de
ter cuidado pois Sócrates era hábil com as palavras, e poderia enganá-los. Em
suma, acusaram-no de sofista. Sócrates observa que seria mais vergonhoso se
ele, sem habilidade de falar, os desmentisse com fatos. É como se ‘hábil no falar’ e alguém que está
falando a verdade fossem coisas inconciliáveis.
Sócrates
promete que não lhes daria um discurso pomposo, mas sim um discurso sincero,
conforme as palavras lhe viessem à mente. Disse que era inconveniente valer-se
de técnicas retóricas, em sua idade, como um jovem estudante da retórica grega.
E, além disso, pediu paciência aos seus ouvintes, pois provavelmente
discursaria de forma semelhante ao que fazia em seus discursos em público, pois
era assim que costumava discursar, e nunca tinha comparecido a um tribunal.
A
súplica de Sócrates é contra o ad hominem. Que não prestassem atenção ao modo
de falar, mas ao que era dito, se era justo ou não.
*13
Aqui acreditamos que Chalita cometeu um erro na exposição: “Sendo um homem sem
nenhum conhecimento especializado, deduz que sua sabedoria só poderia ser
resultado da percepção que tinha da própria ignorância e, seguindo a indicação
do deus Apolo, passa a questionar todo aquele se considerasse dotado de
sabedoria” (CHALITA, p. 47). Gabriel Chalita inverteu a ordem. Ele, primeiro,
questiona os que se consideravam dotados de sabedoria para concluir que ‘sua
sabedoria só poderia ser resultado da percepção que tinha da própria
ignorância’. Estamos certos disso, nesse caso, por termos lido o texto
original, de Platão.
*14 Confira o interessante ensaio de Luiz
Felipe Pondé, no livro ‘Guia Politicamente Incorreto da Filosofia’, intitulado
“A mediocridade anda em bando, e a democracia ama os medíocres”, p. 47-54.
Estamos protelando nossa investida sobre o assunto mais uma vez. Entretanto,
certamente, Pondé será uma de nossas fontes que já podem ser antecipadas para
quem quiser.
*15 Maria Lacerda de Moura nos informa:”Meleto,
poeta trágico medíocre, era o mais encarniçado inimigo de Sócrates, o mais
ativo, o motor da denúncia. Anito, curtidor e negociante de peles, era a bolsa,
o prestígio, influente no governo popular, era o real inimigo do filósofo.
Lícon, retórico, medíocre e desconhecido, é o terceiro comparsa necessário à
acusação” (PLATÃO, p. 64). Sócrates estava plenamente consciente de que um
representante de cada grupo dos desmascarados por ele é que ali se apresentavam
para acusa-lo. Tudo isso pode ser observado, e.g., no capítulo IX e XVII.No
capítulo XXIII, da segunda Parte, Sócrates diz acreditar que Meleto tenha ganho
a causa por conta das influências de Anito e Lícon.
*16 Maria Lacerda de Moura nos informa que se
tratava de Arístipo (precursor do anarquismo); Antístenes; Cebes; Símias e
Ésquines (PLATÃO, p. 75).
*17 Moura nos informa que Platão não estava no
momento da morte do mestre por encontrar-se doente (PLATÃO, p. 76).
*18 Há uma discussão muito grande sobre os
últimos dizeres e atos de Sócrates.
*19 Alceu Amoroso Lima ao invés de dizer que
Lícon suicidou-se, diz que ele sumiu da história; e quanto a Meleto e Anito só
fala que foram ‘lapidados pela multidão’. A título de completude, vejam: “Dos
acusadores de Sócrates, dois morreram, tempos depois, lapidados pela multidão,
como caluniadores. Meleto e Anito. Quanto a Lícon, desapareceu da história,
como os outros também. Graças à glória de sua vítima é que seus nomes ainda são
relembrados pela posteridade” (PLATÃO, p. 10).
REFERÊNCIAS
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Mortimer J; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward
Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.
BRISSON,
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de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
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Olavo de; BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para
não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.
CHALITA,
Gabriel. Vivendo Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p.
304.
DURANT,
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Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
GAARDER,
Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de
João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
GEISLER,
Norman L.; TUREK, Frank. Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu. Tradução
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