A imagem é proposital. Esperamos que a compreendam até o final do artigo.
O MUNDO
DAS IDÉIAS
A questão do mundo das ideias
parece-nos a principal ideia de Platão [para conhecer a vida desse importante filósofo, clique aqui], e é de cunho metafísico e
epistemológico. Entretanto, a excepcional obra de Durant lhe confere pouco mais
que uma página (cf. p. 44-45). Durant está mais preocupado com a filosofia
política e moral, embora, noutras oportunidades, expondo outros filósofos,
explore bem a questão metafísica. Seja como for, é um dos grandes pecados da
obra, do qual ele não se justifica no começo dela, seção reservada para
isso. Lado outro, Sproul não menciona outra coisa senão a doutrina do mundo das
ideias e alguns implicações antropológicas. Gabriel Chalita afirma
categoricamente “Para compreender a doutrina platônica, o primeiro conceito a
considerar é o de mundo das ideias” (CHALITA, p. 53). Gaarder também dá
proeminência a essa doutrina, reservando um espaço muito menor para as
reflexões políticas. Ronald Nash, sem dúvida, é o mais completo, dedicando
páginas e mais páginas à questão e declara, sem titubear: “O cerne da filosofia
de Platão está na sua teoria das ideias ou formas” (NASH, p. 67). Luc Brisson é
bem equilibrado em sua exposição, mas começa dissertando sobre as formas. Em
nossas exposições buscamos complementar cada obra desses autores com pontos que
não abordaram. Aqui, dificilmente alcançaremos a qualidade da exposição de
Ronald Nash, que será nosso principal guia. Mas tentaremos completar as lacunas
que Nash deixou com o que os outros observam. Sigamos, pois, o exemplo destes
que exploram o mundo das ideias, e não daquele que ignora o assunto.
ANAXIMANDRO,
HERÁCLITO, PARMÊNIDES, PITÁGORAS, EMPÉDOCLES, DEMÓCRITO E ANAXÁGORAS.
Platão é aquele corajoso
homem que retoma, em Atenas, a discussão metafísica. Talvez o fato de ele ter
saído de lá o fez entrar em contato com outros povos que refletiam sobre a
natureza da realidade, e ele tenha percebido que, antes de mais nada,
precisamos saber o que é o mundo (incluindo o homem), e como conhecer, para,
então, falar sobre como guiar nossas vidas individual e socialmente.
Nos seus escritos, como
observam praticamente todos os autores, ficará clara a influência da tradição
anterior. Ao passo que Durant aprecia isso, Maria Lacerda de Moura, seguindo a
Antístenes, o critica dizendo que ele “se perdeu em um emaranhado de cultura,
de doutrinas diversas que ele quis harmonizar em um todo platônico” (PLATÃO, p.
72), já valendo-se do termo ‘platônico’ no sentido ‘utópico’ que veio adquirir.
Bom, se ele conseguiu ou não, vamos ver adiante. O fato é que todos reconhecem
que ele apresenta elementos de concórdia com Heráclito, Parmênides, Pitágoras,
Demócrito e, nossa sugestão quando ele se refere à matéria, com Anaximandro.
Em Platão ficará, como nunca,
clara a relação entre epistemologia, metafísica e antropologia filosófica.
Sendo assim, os assuntos se entrelaçarão de modo que não será possível
mencionar um sem mencionar o outro. Mesmo assim, tentaremos fazer uma exposição
particularizada de cada assunto.
METAFÍSICA
Podemos pegar Platão
justamente onde o empasse Heráclito-Parmênides nos deixou. Sendo assim, Gaarder
se expressa: “Platão interessava-se pela relação entre aquilo que, de um lado,
é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, ‘flui’. (Exatamente como os
pré-socráticos, portanto!)” (GAARDER, p. 97).
Gaarder ainda é feliz em nos guiar
até a raiz da discussão onde Platão segue Empédocles e Demócrito (bem como
Anaxágoras, que Gaarder se esquece de mencionar): “Empédocles e Demócrito já tinham
nos chamado a atenção para o fato de que, apesar de todos os fenômenos da
natureza ‘fluírem’, havia ‘algo que nunca se modificava (as ‘quatro raízes’ ou
os ‘átomos’). Platão também se dedicou a este problema, mas de uma forma
completamente diferente. Platão achava que tudo o que podemos tocar e sentir na
natureza ‘flui’. Não existe, portanto, um elemento básico que não desintegre.
Absolutamente tudo o que pertence ao ‘mundo dos sentidos’ é feito de um
material sujeito à corrosão do tempo. Ao mesmo tempo, tudo é formado a partir
de uma forma eterna e imutável” (GAARDER, p. 98).
A questão das coisas
‘fluírem’, claro, veio de Heráclito. Chalita é perspicaz em observar essa
relação de forma explícita: “De maneira semelhante a Heráclito, Platão afirmava
que o mundo sensível é um eterno fluxo eterno. Mais exatamente, a doutrina
platônica considerava que as coisas materiais são meras aparências [...]. Para
alcançar a verdade, o homem deveria dirigir sua inteligência para as ideias,
para além do mundo sensível” (CHALITA, p. 53).
Osborne observa que
Parmênides levantou uma questão que instigou os filósofos posteriores,
inclusive Platão: “Os argumentos contra a mudança e a multiplicidade que
encontramos no ‘Caminho da verdade’ tiveram, com efeito, uma influência
considerável, em Platão e para além dele, encorajando a distinção entre a
‘realidade’ metafísica e o mundo físico das ‘aparências” (PRADEAU, p. 24-25).
Mas a citação de Gaarder
menciona o ‘mundo dos sentidos’ e ‘forma eterna’. Esses conceitos caem aqui de
paraquedas. Precisamos esclarecê-los.
Nash é conciso mas brilhante
para expor basicamente a essência da doutrina num único parágrafo: “Platão cria
que os seres humanos participam de dois mundos diferentes. Um deles é o mundo
físico que experimentamos por meio de nossos sentidos físicos. Nosso contato
com o mundo inferior é efetuado através dos nossos sentidos corporais [...]. As
coisas físicas que existem no mundo inferior existem no tempo e no espaço. O
outro mundo do qual participamos é mais difícil de ser descrito [...]. O mundo
superior é composto de essências imateriais e eternas que apreendemos por meio
da nossa mente. O mundo das ideias (chamado de mundo das formas) é mais real
para Platão do que o mundo físico, uma vez que as coisas particulares que
existem são cópias, ou imitações, de seus arquétipos, as formas” (NASH, p. 67).
Sproul, ainda mais conciso, também menciona a doutrina nos termos de Nash: “Platão
imaginou dois ‘mundos’ diferentes. O mundo ou esfera da realidade principal é o
mundo das ideias. Esse lugar metafísico está além ou por trás da esfera das
coisas materiais. Para Platão, o mundo das ideias não apenas é real, mas também
‘mais real’ do que o mundo dos objetos físicos” (SPROUL, p. 34).
Portanto, primeiramente,
temos dois mundos distintos. Um onde existem ideias, formas, e que Platão
achava mais real do que o outro, que é o mundo que captamos pelos sentidos.
Quanto a esse mundo sensível
não há muito o que falar. É aquilo que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos ou
degustamos. Todos o ‘conhecemos’. Mas, e quanto ao tal mundo das ideias. Isso
não parece uma ideia estranha demais? Certamente, ao ouvir isso, temos algum
tipo de repulsa natural. O leitor não muito afeiçoado à filosofia deve parar
agora e imaginar o porquê de os estudantes de filosofia nas universidades serem
tão voltados para o consumo de drogas. Parece coisa de louco mesmo. Nash
disserta um pouco sobre esse estranhamento: “Do nascimento à morte, a
experiência humana é limitada às particularidades físicas. É compreensível que
tais prisioneiros creiam que somente o mundo que têm experimentado as sobras) é
o único mundo que existe. [...] Nada sabem sobre o mundo não físico que é bem
mais real e importante do que seu mundo de sombras. Tal como os prisioneiros
acorrentados na caverna, cada ser humano percebe um mundo físico que nada mais
é do que uma pobre imitação de um mundo mais real. A alegoria de Platão ajuda a
explicar a razão pela qual tantos seres humanos têm dificuldade em apreciar a
doutrina de Platão quanto ao mundo ideal. Ela se choca com um dos paradigmas
mais básicos dos seres humanos: o de que o mundo dos sentidos é o único mundo
que existe. [...] Assim, continuam a viver como se o mundo real fosse apenas o
que vêem, ouvem, tocam e cheiram” (NASH, p. 78-79).
A tal ‘alegoria’ mencionada
será descrita abaixo, doravante, e a exploraremos. Por hora, protelemos.
O fato é que, mesmo que achem
que Platão está completamente louco, deem-lhe o benefício da dúvida. Acompanhem
seu raciocínio.
Retomemos o ponto
interrompido. Dois mundo. Um, o ‘desconhecido’ (até esse ponto do texto) mundo
das ideias. “Platão acreditava numa realidade autônoma por trás do ‘mundo dos
sentidos’. A esta realidade ele deu o nome de mundo das ideias. Nele estão as
‘imagens padrão’, as imagens primordiais, eternas e imutáveis, que encontramos
na natureza. Esta notável concepção é chamada por nós de a teoria das ideias de
Platão” (GAARDER, p. 100). Falemos um pouco sobre ela.
O
QUE É ESSE MUNDO DAS IDEIAS?
Não, não se trata aqui
daquilo que chamamos de ‘campo das ideias’. É um ‘mundo’ mesmo. “Seria errôneo
pensar que Platão cresse que essas formas existissem apenas na mente das
pessoas. O ponto central de sua teoria é o de que as formas teriam uma
existência objetiva que vai além da mente” (NASH, p. 68). Chalita é muito feliz
nesse ponto: “... haveria um mundo imaterial, eterno e imutável, totalmente
separado do mundo sensível [...], a que só temos acesso por meio da razão.
Nesse plano de realidade estão as ideias, que não são simples cogitações
presentes na mente dos homens; elas são, na verdade, realidades que existem por
si mesmas, independentes do pensamento e de todas as coisas materiais”
(CHALITA, p. 53).
Portanto, além do mundo
material, há um outro plano, uma outra ‘dimensão’, metafísica, i. é., para além
da física. Nele ‘habitam’ as ideias, formas, ou seja lá que tipo de entidades
forem elas. Há entes, seres, a qual denominaremos ideias (ou derivados como
‘ideal’) ou formas, no decorrer do texto, salvo exceção facilmente perceptível.
Portanto, é bom notar essa conotação especial para os termos.
E O
QUE TEM A VER AS FORMAS COM O MUNDO SENSÍVEL?
Gaarder afirma: “... os
pré-socráticos [...] não tinham uma explicação aceitável de como estas
partículas mínimas, que um dia tinham se juntado para formar um cavalo, se
juntavam novamente quatrocentos ou quinhentos anos mais tarde para formar outro
cavalo [...]. O que Platão quer dizer é que os átomos de Demócrito nunca podem
se juntar para formar um ‘crocofante’ ou um ‘eledilo’. E foi isto,
precisamente, que colocou em marcha suas reflexões filosóficas” (GAARDER, p.
99). Justamente para explicar esse fenômeno temos a relação do mundo das ideias
com o mundo sensível. E esse é pano para muita manga.
Talvez Sproul, com a concisão
que lhe é peculiar, seja o mais adequado para nos explicar a ideia básica: “Ele
[Platão] chamava os objetos materiais de ‘receptáculos’ – coisas que recebem ou
contêm outras coisas. O objeto físico contém sua ideia ou forma. A forma é
distinta do objeto. A forma causa a essência de uma coisa. Nesse sentido, o
objeto material participa da sua forma ideal ou a imita. Mas não passa de uma
cópia da forma ideal, além disso imperfeita” (SPROUL, p. 37). Para ilustrar,
elucidar a questão, Sproul usa o exemplo de uma cadeira, ao passo que Gaarder
usa de um cavalo. Vamos citar as duas para que a questão fique bem reforçada na
mente dos leitores: “Quando você pensa em uma cadeira, que ideia ou conceito
vem à sua mente? Uma cadeira de madeira com encosto e assento de couro? Uma
cadeira de metal dobrável? [...] Esses são apenas alguns exemplos de uma grande
variedade de objetos chamados ‘cadeira’. Como definiríamos as características
comuns ou a ‘essência’ de uma cadeira? Podemos dizer simplesmente que cadeira é
‘um objeto em que se senta’? Isso não seria adequado. Sentamos em objetos que
não chamamos de cadeiras. [...] Podemos dizer que uma cadeira tem quatro
pernas, mas algumas têm três e outras têm mais, e cadeiras de balança não têm
pernas. [...] Platão argumentou que no mundo ideal existe uma ideia perfeita de
cadeira ou ‘cadeiridade’. Nossa alma vem do mundo ideal já com o conhecimento
da cadeira ideal. [...] O corpo é a caverna em que a alma ou mente é mantida
presa. As cadeiras que vemos no mundo físico são sombras ou cópias imperfeitas
da cadeira real, ideal. Reconhecemos as cadeiras como tais à medida que se
aproximam da ideia perfeita de ‘cadeiridade’ que é inata à nossa mente [...]
nosso encontro com uma dadeira física, que é receptáculo ou cópia imperfeita da
dadeira ideal ou da ideia de ‘cadeiridade’, estimula nossa memória da ideia
perfeita de cadeira. Por isso a chamamos cadeira” (SPROUL, p. 38-39).
Agora Gaarder: “Por que todos
os cavalos são iguais [...]? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas
existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais
teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o ‘exemplar’ isolado
do cavalo, este sim ‘flui’, ‘passa’. Ele envelhece e fica manco, depois adoece
e morre. Mas a verdadeira ‘forma do cavalo’ é eterna e imutável” (GAARDER, p.
98-99).
Com essas duas citações
acreditamos que o conceito ficou bem explorado. As realidades sensíveis são, na
verdade, cópias das ideias. São feitas à imagem do que existe no mundo das
ideias. Até aqui o conceito não causa problema algum. Mas a coisa começa a
complicar.
A primeira dificuldade é
esta, conforme expressa-se Nash: “Às vezes, Platão escreveu como se houvesse
uma forma, ou arquétipo, para cada classe de objeto no mundo físico. [...] A
possibilidade de um cavalo ou um cão perfeito levantou questões difíceis para
Platão, e alguns intérpretes pensam que ele tenha, mais tarde em sua vida,
abandonado essa posição” (NASH, p. 68). Mas Nash não nos fala sobre quais tipos
de problemas Platão enfrentou com essa ideia. Outros autores parecem admiti-la
sem preocupar-se com isso. Vejam Gaarder e Chalita, por exemplo: “Platão ficou
admirado com a semelhança entre todos os fenômenos da natureza e chegou,
portanto, à conclusão de que ‘por cima’ ou ‘por trás’ de tudo o que vemos à
nossa volta há um número limitado de formas. A estas formas Platão deu o nome
de ideias. Por trás de todos os cavalos, porcos e homens existe a ‘ideia
cavalo’, a ‘ideia porco’ e a ‘ideia homem’” (GAARDER, p. 100). Chalita também
dá a entender que todas as coisas têm uma forma no mundo das ideias: “...
haveria ideias correspondentes a todos os objetos, aos seres e coisas da
natureza, virtudes, entidades matemáticas (linha, círculo, ponto, etc.),
formas, cores, características da matéria (dureza, mobilidade, calor, etc.),
atividades, sentimentos...” (CHALITA, p. 55). No entanto, vamos frisar o que
Nash disse com uma citação semelhante: “À medida que seu pensamento amadureceu,
Platão parece ter prestado menos atenção às formas de objetos físicos. De fato,
ele, algumas vezes, parece ter ficado constrangido por causa de sua antiga afirmação
acerca do cavalo perfeito” (NASH, p. 71).
Há, pois, uma dificuldade em
definir exatamente o que estaria no mundo das ideias, quais formas ali
‘habitariam’. Algo que definitivamente estaria nesse mundo seriam as virtudes e
as formas matemáticas: “Algumas das formas de Platão são de fácil entendimento.
Ele cria que aquilo que encontramos no mundo físico são exemplos imperfeitos de
absolutos imutáveis, como bondade, justiça, verdade e beleza, existentes em um
mundo não-espacial ideal: Platão cria também que o mundo das formas contivesse
exemplares de entidades matemáticas e geométricas, como números e o círculo
perfeito” (NASH, p. 68).
Vocês se lembram do que
estava escrito na entrada da Academia? Pois então, agora as coisas começaram a
se esclarecer. A matemática e a filosofia de Platão estão intimamente ligadas. “De
mais permanente importância em seu sistema está a crença na existência de
padrões perfeitos de verdade, beleza e bondade, assim como a existência de
entidades eternas encontradas na matemática, como o número um e o círculo
perfeito. Platão cria que as disciplinas matemática e geometria provavam a
necessidade de uma existência de uma forma eterna, imutável” (NASH, p. 71).
Como isso acontece? Gaarder
esbarra na questão: “... vocês sabem que a soma dos ângulos de um círculo é
exatamente 360º. Neste caso, porém, vocês estão falando de um círculo ideal,
que não existe na natureza, mas que vocês conseguem visualizar perfeitamente
com os ‘olhos de dentro’” (GAARDER, p. 102), porém é Ronald Nash quem nos
guiará novamente. Ele observa o argumento do círculo perfeito: “... um círculo
é uma linha fechada cujos pontos são equidistantes de um dado ponto central.
Segue-se daí que nenhuma figura encontrada no mundo físico é ou pode ser um
círculo. Um círculo perfeito teria de ser composto por uma linha que tivesse
apenas comprimento e não largura. A razão disso é que se a linha de nosso
círculo tivesse qualquer largura, o segmento de linha conteria, de um lado ao
outro, um número infinito de pontos. A partir de quais desses pontos mediríamos
a distância até o cento do círculo?” (NASH, p. 72). E, cada ponto escolhido
poderia ser fragmentado em mais infinitos pontos de modo que não pudéssemos
dizer onde exatamente estaríamos delimitando um ‘locos’ na linha. Não há, neste
mundo, linhas com comprimento sem largura. Mas a proposição que define um
círculo é perfeitamente concebível.
Então Nash arremata a
questão: “Da maneira como Platão vê isso, o verdadeiro objeto da reflexão sobre
os círculos é o círculo ideal perfeito apreendido pela mente. As imitações da
circularidade que encontramos neste mundo de coisa materiais particulares não
podem satisfazer a definição de um círculo. A menos que haja um círculo ideal
que já conheçamos de alguma forma, nosso conceito ou pensamento sobre um
círculo será vazio; não terá referencial [...] [e] uma vez que ele deve existir
em algum lugar e uma vez que ele existe ou no mundo inferior ou no mundo
superior, o círculo perfeito tem de existir no mundo das formas” (NASH, p. 73).
Desse jeito, a matemática seria um pré-requisito indispensável para provar a
existência do mundo das ideias e um bom motivo para ser apreciado por
Aristocles. Isso tange à questão epistemológica já, embrionariamente, abordada.
Voltaremos a refletir sobre as entidades ideais quando abordarmos a dialética.
ANTROPOLOGIA
E EPISTEMOLOGIA
Assim como Parmênides
argumentava, aquilo que é mutável não pode ser conhecido. O eterno devir não
deixa que sobre algo para o conhecimento, argumentava o eleata, como já foi
visto noutra oportunidade. E Platão concordava em gênero, número e grau.
Gaarder, por isso, informa: “Platão é da opinião de que nunca podemos chegar a
conhecer verdadeiramente algo que se transforma. Sobre as coisas do mundo dos
sentidos, coisas tangíveis, portanto, não podemos ter senão opiniões incertas.
E só podemos chegar a ter um conhecimento seguro daquilo que conhecemos pela
razão” (GAARDER, p. 101) e Nash termina: “A fim de que os seres humanos
obtenham genuíno conhecimento (em oposição a alguns outros estados
epistemológicos, como uma crença ou uma opinião), o objeto desse conhecimento
deve ser imutável [...] Mas Platão cria que imutabilidade é uma propriedade
exclusiva das formas. Todas as coisas particulares que existem no mundo físico
sofrem mudança. Uma vez que nossos corpos fornecem apenas consciência das
coisas particulares que existem no mundo físico, segue-se, para Platão, que
nossos sentidos jamais podem nos dar conhecimento [...]. Em razão da análise de
Platão do significado do conhecimento, experiências sensoriais falham no teste.
Somente a razão pode dar conhecimento” (NASH, p. 74-75).
Já que só pode ser objeto de
verdadeiro conhecimento aquilo que é imutável, Platão atribui imutabilidade às
formas, inclusive predicando-as com a eternidade: “Formas jamais sofrem
mudanças [...]. As formas são também eternas. Elas existiam antes de o mundo
físico vir à existência. Continuarão a existir até mesmo se todas as coisas do
mundo físico, ou mundo inferior, vierem a deixar de existir” (NASH, p. 73).
Mas como é que conhecemos as
formas?
Na República, Platão
desenvolve um quadro apresentando quatro modos de conhecimento correspondente a
graus distintos, proporcionais, de realidade. Ou seja, os graus mais elevados
de conhecimento correspondem a objetos mais nobres, com ‘existência mais real’.
“Platão distingue quatro
níveis de consciência ou cognição [...] Para Platão, conhecimento é uma
apreensão racional de formas imutáveis, enquanto opinião é uma consciência
sensível de mudanças particulares. Os objetos da opinião são as coisas particulares
que existem no mundo físico; os objetos próprios do conhecimento são as formas
eternas e imutáveis que existem no mundo ideal de Platão. Com respeito aos
meios de apreensão, o conhecimento usa a razão, enquanto a opinião utiliza a
experiência sensorial” (NASH, p. 75).
Aqui não podemos nos esquecer
dos termos conforme Parmênides, novamente. Para Parmênides, o que é ‘conhecido’
por meio dos sentidos não passa de ‘opinião’. Platão, embora de forma
modificada, concorda. O verdadeiro conhecimento é o racional.
Podemos dividir esses quatro
níveis, ou modos, em dois grupos, um que diz respeito ao conhecimento racional,
e outro que diz respeito ao conhecimento empírico. Cada grupo, pois, fica com
dois modos de conhecimento.
Quanto ao conhecimento
inferior, empírico, temos um modo mais elevado que o outro. O modo mais
elevado, pois, de opinião é o da crença, onde empregamos os sentidos para
formar convicções muito seguras do que estamos percebendo. É o uso normal das
faculdades sensíveis do homem. Mas existe, ainda, cognições sobre imagens das
coisas sensíveis, como um reflexo, uma foto, ou algo assim. Considerando que as
coisas sensíveis são imagens das formas, nesse mais raso nível de cognição
temos uma imagem de uma imagem! Esse é o nível da conjectura. Nash torna a
coisa mais ‘profunda’: “Certamente Platão estava pensando em algo mais profundo
do que isso. Quando refletimos sobre nossa experiência no mundo, podemos
reconhecer que algumas experiências são mais confiáveis e fidedignas que
outras. Nossos sentidos geralmente nos enganam; as coisas não são sempre como
aparentemente se vê. Talvez fosse isso que Platão estivesse tentando mostrar em
sua distinção entre crença e conjectura. Algumas vezes, nossas percepções
sensoriais parecem tão confiáveis que temos boa base para uma crença. Outras
vezes, elas tornam o exercício de qualquer julgamento arriscado, deixando-nos
com uma conjectura” (NASH, p. 76).
No ‘andar’ de cima temos o
grupo da cognição racional, também com seus dois modos. O modo mais raso é denominado
por Nash de ‘Entendimento’. Nash diz: “Ele [Platão] diz que o entendimento,
diferente da dialética, faz uso de imagens e hipóteses. Suas referências às
imagens podem sugerir que ele tivesse em mente coisas como círculos e
quadrados. Ele também relaciona entendimento a conclusões derivadas de
hipóteses que possam apontar para a geometria e possíveis raciocínios
científicos. As hipóteses de Platão não são suposições de cientistas, mas
verdades auto-evidentes ou axiomas” (NASH, p. 76). Brisson também nos ajuda
muito aqui: “O domínio do pensamento discursivo (dianoia) equivale ao domínio
da dedução considerada como um sistema formal axiomatizado. A partir de
proposições consideradas como válidas a priori, procura-se deduzir, aplicando
as regras da inferência, pouco numerosas e admitidas por todos, as proposições
verdadeiras chamadas ‘teoremas’” (PRADEAU, p. 38).
Platão está falando do
discurso racional onde se faz deduções a partir de axiomas e identificamos
teoremas. Talvez Euclides, mais que qualquer outro, tenha sido o grande mestre
nesta área, ou seja, o grande entendedor*1. Eis, pois, onde mais uma citação
que encontramos em um dos livros, agora, fará todo o sentido. É de Gaarder. Ele
observa outra razão para Platão apreciar a matemática, além daquela que já
notamos, onde a matemática provaria a necessidade da existência do mundo das
ideias: “Platão interessou-se muito por matemática, exatamente por que os dados
matemáticos nunca se alteram. Por isso podemos chegar a um conhecimento seguro
no que diz respeito à matemática” (GAARDER, p. 102). O que se conhece no mundo
do entendimento é de nível superior ao conhecimento empírico, fenomenal. As
realidades matemáticas são imutáveis, portanto, possíveis de se conhecer. Mas
elas não são o mais alto nível de realidade, de conhecimento.
Por fim, temos o nível da
dialética. Esse é o modo mais elevado de conhecimento. É aqui onde
encontraremos (ou tentaremos encontrar) mais esclarecimentos sobre a natureza
das formas. Ronald Nash nos notifica algo sobre esse nível: “Por dialética,
Platão parece dizer um conhecimento puro das formas, o conhecimento mais
elevado à disposição dos humanos. Enquanto o entendimento é conhecimento por
inferência, raciocinando da hipótese para a conclusão, a dialética é intuitiva,
isto é, conhecimento imediato, não mediado por qualquer outras coisa” (NASH,
p.76).
Brisson, sobre esse nível,
nos diz o seguinte: “... as Formas são objetos da dialética que, a partir de
processos de reunião eleva-se, primeiro, de Forma em Forma, para o Bem, depois,
por intermédio do processo de divisão, desce de Forma em Forma para chegar a
uma definição que permanece no domínio do inteligível. A dialética, assim
compreendida, descreve, portanto, as relações que as Formas mantêm em si; ela
permite de alguma maneira traçar a cartografia do domínio do inteligível. E ela
suscita a evidência de que, quando a atividade intuitiva do intelecto (nous) se
liga às Formas e finalmente ao Bem, ela serve de fundamento do processo
dedutivo” (PRADEAU, p. 38).
Esse é um ponto delicado, e
vamos tentar compreendê-lo com muito cuidado. Primeiramente, ele diz que aqui
não se trata de hipóteses e deduções. Trata-se de conhecimentos intuitivos. Ao
nosso entender, os dois autores estão se referindo à reminiscência, à
recordação. Por isso, precisamos fazer uma digressão pela antropologia para nos
voltarmos para esse ponto e terminarmos sua exploração.
A
TEORIA DA REMINISCÊNCIA OU RECORDAÇÃO
O que é o homem? Essa é nossa
pergunta inicial. A doutrina de Platão é muito bem sumarizada por Gabriel
Chalita: “O ser humano, de acordo com Platão, é composto de corpo e alma, sendo
a alma a parte mais importante e mais real do indivíduo. Ela seria imortal e
eterna, existindo desde sempre no mesmo plano do mundo das ideias. Desse lugar,
ela viria para se encarnar num corpo, constituindo então um homem” (CHALITA, p.
55).
Vamos por partes.
Primeiramente, o dualismo metafísico de Platão estende-se à antropologia
filosófica e é a fonte da explicação de como o homem conhece as formas, bem
como a explicação do porquê os sentidos não serem muito confiáveis: “Para
Platão, portanto, o homem também é um ser dual. Temos um corpo, que ‘flui’ e
que está indissoluvelmente ligado ao mundo dos sentidos, compartilhando do
mesmo destino de todas as outras coisas presentes neste mundo [...]. Todos os
nossos sentidos estão ligados a este corpo e, consequentemente, não são
inteiramente confiáveis. Mas também possuímos uma alma imortal, que é a morada
da razão. E justamente porque a alma não é material, ela pode ter acesso ao
mundo das ideias” (GAARDER, p. 103).
A alma, imaterial, poderia
conhecer o imaterial também. Mas como ela o conhece? Como a alma acessa as
ideias? Para Platão, a explicação está na imortalidade da alma. Com esta
doutrina ele viria a resolver o problema de como a alma conheceria as formas.
Nash enuncia e explica a
resolução de Platão para o problema: “Um dos problemas mais difíceis que Platão
criou para si mesmo é o da explicação de como os humanos vêm a conhecer o mundo
das formas [...] Quando a alma retorna à existência terrena por meio de um novo
corpo [...] a alma se esquece do que havia aprendido sobre as formas durante
seu estado desencarnado. Contudo, um conhecimento implícito e inconsciente do
conhecimento das formas continua presente na mente e emerge ao nível da
consciência quando estimulado por várias experiências corporais” (NASH, p.
87-88). Chalita consegue ser tão claro quanto: “A alma, antes de se encarnar,
conhecia as ideias, pois estaria junto delas. Ao encarnar-se, entretanto, esse
conhecimento se perderia numa espécie de ‘esquecimento’. Uma vez presente no
homem [...] ela poderia ‘recordar-se’ pelo processo da reminiscência [...]: por
exemplo, quando um homem vê um gato e aprende o que esse animal é, sua alma
estaria reconhecendo a ideia de gato. Assim, todo aprendizado seria na verdade
uma ‘lembrança’” (CHALITA, p. 55) e Gaarder não fica pra trás: “Platão também
achava que a alma já existia antes de vir habitar nosso corpo. E ela existia no
mundo das ideias. [...] Entretanto, no momento mesmo em que a alma passa a
habitar o corpo humano ela se esquece das ideias perfeitas [...] [e] quando as
pessoas entram em contato com as formas da natureza, aos poucos, uma vaga
lembrança vai emergindo dentro de sua alma. O homem vê um cavalo, mas um cavalo
imperfeito [...]. E isto é suficiente para despertar na sua alma a vaga
lembrança do cavalo ideal que ela conheceu um dia no mundo das ideias”
(GAARDER, p. 103).
Nesse momento, Platão
aproxima-se muito da maiêutica de Sócrates e tenta explica-la. A alma, antes de
vir a este mundo, esteve no mundo das ideias e lá tomou conhecimento das
formas. Quando ela se encarna, esse conhecimento é esquecido. Na medida que há
um contato com as cópias das formas, os objetos sensíveis, uma lembrança das
formas vai surgindo. Entretanto, somente o filósofo percebe que essas
lembranças correspondem à realidade do mundo real, e não a meras abstrações.
Portanto, as ideias que temos são inatas. As palavras de Sproul fazem-se
pertinentes: “As ideias fundamentais são inatas e não descobertas pela
experiência. A melhor coisa que os sentidos podem fazer é despertar a
consciência para o que ela já sabe. No pior das hipóteses, os sentidos podem
iludir a mente” (SPROUL, p. 39).
Nash ainda estabelece dois
modos de reconhecermos, por abstração, as formas. Aproveitando o teor
epistemológico de nossa discussão, vale a pena expô-los.
O primeiro é por meio da
abstração do que existe em comum num conjunto: “Alguém pode abordar a teoria
das formas de Platão em termos da diferença entre um conjunto ou classe versus
as coisas particulares que formam o conjunto [...] ... (a forma) é uma maneira
de se referir ao conjunto de propriedades essenciais partilhadas por todos os
membros específicos desse conjunto. [...] Assim, o círculo representa uma
classe ou conjunto [...]. O conceito de classe existe no mundo das formas,
enquanto os particulares membros das classes existem no mundo inferior das
coisas particulares (mundo visível)” (NASH, p. 69-70). Assim, no conjunto
‘gatos’ abstraímos a ‘gatualidade’ pelos universais encontrados neles.
O segundo modo é a observação
da linguagem: “A linguagem humana significante ocorre quando um orador ou
escritor atribui um predicado a um objeto [...]. Platão explicou essa faceta da
linguagem humana, dizendo que há uma vermelhidão universal (a forma da cor
vermelha) que serve como padrão ou norma para todos os exemplos particulares e
tons de vermelho encontrados no mundo físico” (NASH, p. 68). Aristóteles,
embora com propostas metafísicas diferentes, trabalhará de modo muito adequado
a questão da predicação. Deixemos, pois, para o momento adequado.
A
ALMA
Pois bem, Platão propõe a
reencarnação. A alma é imortal. Quando o homem morre, a alma permanece e depois
vai encarnar-se noutro corpo. Assim, pelo menos, narra Platão a questão. Embora
Nash nos diga que muitos estudiosos vejam a questão como um mito platônico*2, nem todos pensam assim, e, na
verdade, o que vimos é que nossas fontes realmente acreditam que Platão
ensinava a doutrina da reencarnação.
Podemos discursar um pouco
mais sobre a alma. Brisson nota que Platão retoma toda a tradição precedente
nessa discussão: “Na tradição que Platão conheceu e que remonta pelo menos até
a Ilíada e a Odisséia, a questão da ‘interioridade’ humana se transforma, mas
não de maneira radical. [...] a alma, que se encontra no interior do corpo
segundo duas modalidades: como seu motor ou como seu hóspede provisório [...]
[em Platão] estes dois modelos se encontram associados. O modelo da alma presa
ao corpo que ela anima do interior se impõe em todo lugar em que se fala de ser
vivo, enquanto que o modelo do hóspede temporário de um corpo aparece quando se
acha evocada a reencarnação” (PRADEAU, p. 34-35).
Dizer que apenas o corpo se
vai e a alma permanece é simplista perto do que realmente Platão propõe. Ele
propunha três partes da alma. Cada autor coloca as três partes em seus próprios
termos. Assim, temos Chalita dizendo: “Platão afirmava que a alma se divida em
três partes: a racional, localizada na cabeça, a emocional, alojada no peito, e
a sensual, localizada no abdômen e partes adjacentes. A racional, o guia da
alma, conheceria a verdade e reuniria a inteligência, a moral e a lógica. A
parte emocional conteria as emoções superiores, como a honra e o ódio à
injustiça, e obedeceria fielmente a parte racional da alma. A última, pelo
contrário, seria rebelde, corresponderia aos desejos inferiores, carnais e, por
isso, desordenada e inquieta” (CHALITA, p. 55-56). Portanto, razão, emoção e
sensualidade.
Sproul expõe a questão da
seguinte forma: “A mente ou alma tem três partes, de acordo com Platão: razão,
espírito e apetite. Razão diz respeito à percepção de um valor ou objetivo. Espírito
é o que pressiona para a ação, sob impulso da razão. Apetite é o desejo por
coisas físicas. Experimentamos conflito moral quando o espírito sofre a
oposição do apetite” (SPROUL, p. 39). Sproul, pois, substitui ‘emoção’ por
‘espírito’ e ‘sensualidade’ por ‘apetite’.
Gaarder coloca-se assim:
“Segundo ele, o corpo humano consistia em três partes: cabeça, peito e
baixo-ventre. A cada uma dessas partes corresponde determinada característica.
A razão pertence à cabeça, a vontade ao peito e o desejo ou o prazer ao
baixo-ventre. Cada uma dessas características possui também um ideal ou uma
virtude. A razão deve aspirar à sabedoria, a vontade deve mostrar coragem e os
desejos devem ser controlados, a fim de que o homem possa exercitar a
temperança. Somente quando as três partes do homem agem como um todo é que
temos o indivíduo harmônico ou íntegro” (GAARDER, p. 106). Isso parece-se com a
divisão da alma. É como se cada parte do corpo tivesse uma característica, uma
parte da alma. Na cabeça estaria o que o que Chalita e Sproul chamaram de
‘razão’; no peito estaria a ‘emoção’ ou ‘espírito’, e Gaarder chama-a de
vontade. Aqui não parece haver um paralelo perfeito, visto que ‘vontade’,
‘emoção’ e ‘espírito’ não são exatamente a mesma coisa. ‘Espírito’ pode ser
sinônimo de ‘alma’, ou pode significar ‘ímpeto’, tal como quando falamos que
alguém está com ‘espírito de discórdia’ ou ‘espírito de luta’, o que coadunaria
(ou pelo menos se aproximaria) com o termo ‘emoção’. Por fim, no ‘baixo-ventre’
estariam os desejos, ao que Chalita chama de ‘sensualidade’ e, Sproul, de
‘apetite’.
Brisson nos explica que
somente essa primeira ‘espécie’, ou ‘parte’ da alma subsiste, ou seja, é
imortal em si mesma: “a primeira é imortal em si, enquanto que as duas outras
não gozam de imortalidade, senão na condição de que o corpo que elas regem seja
indestrutível” (PRADEAU, p. 39).
Cabe à parte racional, a
parte imortal, o conhecimento das formas. As duas outras formas ‘são declaradas
mortais quando se encontram associadas às funções que permitem assegurar a
sobrevivência do corpo sensível, ao qual a alma está provisoriamente atrelada” (PRADEAU,
p. 39). A vontade (ou emoção), pois, junto aos apetites (sensualidade) se
associam para manter o homem vivo.
O ‘espírito’, ou seja, a
‘vontade’, chamada por Brisson de ‘entusiasmo’, “permite ao ser mortal se
defender” (PRADEAU, p. 39). Aqui, talvez, Durant possa nos ajudar. Ele diz que
‘emoção, espírito, ambição e coragem’ são uma coisa só (DURANT, p. 39). A
discussão ética retomará essa tricotomia, onde traremos mais esclarecimentos.
Paremos por aqui.
A
DIALÉTICA
Uma vez que compreendemos a
epistemologia platônica, podemos prosseguir nossa busca pela compreensão da
dialética. Pelo ato da recordação, intuitivamente, pensamos nas formas. Mas
podemos estabelecer raciocínios em cima das formas, estabelecendo relações
entre elas. Esta também não nos parece uma questão muito clara, portanto,
iremos sugerir uma interpretação. Parece-nos que a dialética formal é aquela do
tipo em que a ideia de cão, gato e outros é sintetizada na ideia de animal, que
por sua vez é sintetizada na ideia de ser vivo, onde se sintetiza a ideia de
vida e ser até que se encontre os predicados mais essenciais no próprio Bem, o ser,
o ente, a realidade última. Ou seja, parece haver uma hierarquia ontológica nas
próprias formas. Nesse sentido, a forma animal é superior à forma cão, gato e
cavalo, e abrange essas. Por sua vez a forma ‘vida’ abrande a forma animal, bem
como a forma ‘planta’. A forma que abrangeria todas as outras formas seria o
Bem, a realidade primordial. Aqui não dá para não pensar em Plotino e no
neoplatonismo. Mas ambos cairão no mesmo problema: como se dá, e por que se dá,
a derivação ontológica. Mais uma vez, protelemos. No entanto, Nash, mais uma
vez, mostra-se extremamente competente em Platão, e achamos que agora é hora
deste trecho: “Realidade e conhecimento humano são construídos
hierarquicamente. O mais alto tipo de conhecimento é o conhecimento humano do
bem. Abaixo do bem, existe uma quantidade de outras coisas que os humanos
deveriam se esforçar para conhecer, como verdade, beleza e justiça. Mas outros
níveis de conhecimento ainda mais baixos podem ser possíveis, culminando no
conhecimento obtido por meio da matemática e da geometria e, finalmente, no
conhecimento humano acerca das formas que correspondem a classe de objetos
físicos. As camadas mais baixas da consciência humana estão relacionadas às
experiências sensoriais, que variam em confiabilidade” (NASH, p. 82).
Neste ínterim nos vêm à mente
um contra-argumento contra o mundo das ideais que não podemos ignorar. É o
argumento do ‘terceiro homem’, conforme o concebeu Aristóteles. Neste argumento
entende-se que uma forma x deveria ter outra forma ‘y’ que abarcasse e ‘x’ e a
imagem de x. Por sua vez, a forma y sofreria da mesma necessidade, ad
infinitum. Voltemos ao exemplo da ‘vermelhidão’ que Nash abordou alhures. As
qualidades, os predicados, são formas também. As formas, por sua vez, devem
pertencer a outras formas e assim por diante. É particularmente forte esse
argumento se entendermos a derivação ontológica das formas até o bem.
Brisson explica como fugir
desta armadilha aristotélica: “No quadro desta relação, o inteligível faz o
papel de causa e, o sensível, o papel de efeito. Por conseguinte, a relação
entre o sensível e inteligível não é simétrica, pois o sensível depende do
inteligível que existe em si para sua existência e para a sua constituição.
Somente o reconhecimento desta assimetria indissociável de uma separação
radical entre o sensível e o inteligível, permite escapar das consequências do
argumento do ‘terceiro homem’, que implicava a existência de um termo que
englobaria o sensível e o inteligível, e assim, ininterruptamente até o
infinito” (PRADEAU, p. 34). Ou seja, as formas existem para si mesmas, e não
dependem de outras coisas para terem sua existência. Assim funcionam como
causa, sempre, e jamais como efeito de alguma coisa. Isso parece coadunar com a
proposta, inclusive, cosmológica de Platão.
Mas isso parece
contraditório, como observamos, com a derivação ontológica que estudamos
alhures. Se elas dependem de si mesmo, o que Brisson quer dizer com a ascensão
dialética das formas até o Bem?
Acreditamos que a solução
esteja, justamente, no ‘Bem’ como parada final das derivações ontológicas. Não
é um ad infinitum como postula o argumento do terceiro homem. É ad Sumo Bono.
Novamente reconhecemos que estamos interpretando Platão de forma muito parecida
com Plotino.
Temos que dizer, por questão
de consciência, que, melhor do que Plotino, o mais completo plantonista que
conhecemos na antiguidade, no sentido de ter elaborado e aparado a cosmovisão,
é Agostinho.
Nesse contexto, estas duas
afirmações que Sproul faz são, agora, perfeitamente compreensíveis: “Para
Platão, o mundo das ideias é a esfera do verdadeiro conhecimento. O mundo dos
objetos materiais é a esfera da mera opinião” (SPROUL, p. 35-36) e “Para
Platão, o conhecimento que se restringe ao mundo material, na melhor das
hipóteses, é mera opinião, e, na pior, ignorância” (SPROUL, p. 37). O
conhecimento da realidade perfeita se dá pela intelecção. Quando mais baixo se
voa, menos ciente da verdade se está e mais imperfeito, mais ‘derivado’ ou
‘copiado’ o ente é.
IDEIAS
INATAS?
Um dos conceitos mais caros
aos racionalistas, especialmente aos platônicos (incluindo os influenciados por
Platão), é o da existência de ideias inatas. Aristóteles, que se segue a
Platão, e fora um de seus melhores alunos, negará que exista conhecimentos
inatos. Depois dele muitos outros o seguirão. Para David Hume, por exemplo, é
um conceito indispensável. Antes dele, John Locke, famoso epistemólogo inglês, também
defendia que a mente não nasce com qualquer ideia presente. Para todos esses, e
muitos outros, todo conhecimento é a posteriori.
Mas eles não notaram que
Platão já havia demonstrado, em ‘Parmênides’, um argumento peremptório,
definitivo, que não vimos, até hoje, refutação, para provar que é preciso haver
conhecimento a priori. Novamente Ronald Nash é nosso guia. A citação é longa, mas
é excelente. Deixemos Nash falar: “... pessoas podem se lembrar somente de
coisas que sabiam anteriormente [...] [e] alguns tipos de lembrança existem em
todo ato de conhecer. Para ilustrar esse ponto, Platão usa julgamentos da forma
a é igual a b. Considere um caso em que nós julgamos que dois segmentos de
linha ou dois triângulos sejam iguais um ao outro. Quais as condições a serem
preenchidas antes que eu saiba que a é igual a b? Temos de ter consciência
perceptual dos dois segmentos de linha. Teremos visto a e depois b. Isso é
óbvio. Mas Platão insiste que devemos ter conhecimento também de algo mais, o
qual ele chama do próprio igual. Isto é [...] há algo mais, a saber, o padrão,
a ideia ou a forma de igualdade – que deve ser conhecida antes que eu possa
julgar se dois segmentos de linha são iguais em comprimento ou se dois
triângulos são iguais em tamanho e forma. Isso levanta uma questão óbvia: de
onde vem nossa consciência do conhecimento da forma de igualdade? [...] Segundo
a posição empirista, os seres humanos primeiro percebem por meio dos sentidos,
as diversas coisas que são similares de certa maneira [...]. A partir de nossa
consciência perceptual dessas coisas particulares (a e b), abstraímos uma ideia
da propriedade ou relação que elas têm em comum, isto é, igualdade ou
similaridade. [...] Universais ou formas comi igualdade podem estar presentes
na mente somente depois que exemplos particulares são apreendidos em objetos
sensíveis. Somente então a mente, pela abstração ou por outros meios apreende o
universal. Platão forneceu duas objeções [...]. Primeiro, Platão argumenta que
é absurdo crer que alguém primeiro saiba que a é igual a b, que c é igual a d,
e então, a partir desses julgamentos sobre particulares iguais, derive o
conhecimento mais geral sobre o que é igualdade. Uma pessoa não poderia saber
que a e b são iguais a menos que já conhecesse o padrão, o próprio igual. O
conhecimento do universal é logicamente anterior ao conhecimento do particular.
[...] Em sua segunda objeção, Platão argumenta que nenhuma coisa particular é
suficiente para fornecer uma noção do universal. Universais sempre têm
propriedades que jamais podem ser encontradas nos particulares terrenos que as
exemplificam” (NASH, p. 83-85).
A ALEGORIA
DA CAVERNA
Para arrematar a questão, ou
torna-la mais compreensível, Platão elaborou uma ‘historinha’, conhecida como o
mito ou alegoria da caverna. Praticamente todos os autores que lemos a
descrevem e não conseguimos nos decidir qual seria a melhor para citar. Por
isso, resolvemos expor uma versão nossa mesmo.
Platão nos pede para
imaginarmos uma cena que parece uma experiência sócio-antropológica bizarra.
Haveria um grupo de homens numa caverna, acorrentados, desde sempre, de modo
que não pudessem virar-se, nem mesmo virar seus pescoços, e tudo que vissem
fosse um ‘paredão’ diante de si. Logo atrás haveria um muro, e ainda atrás dele
algumas pessoas passariam com placas em forma de silhueta de coisas, como
pessoas, animais, objetos. Essas placas, por conta de uma fogueira depois
delas, refletiriam sombras no paredão. Aquilo seria tudo o que aquelas pessoas
acorrentadas veriam, e seria tudo que elas acreditam que existe. Podemos até
imaginar aqueles que passavam com as placas imitando sons de animais e, tal
como numa dublagem, os acorrentados iriam acreditar que aqueles eram os sons
adequados a cada coisa que passasse. Aquelas sombras é toda a realidade que
esses homens conhecem. Não poderiam dizer que um cão é diferente daquela
silhueta de cão que passa à sua frente.
Mas, de alguma maneira, um
homem se liberta das correntes. Ele se volta para suas costas e vê aquela cena
pitoresca. Primeiramente a luz da fogueira lhe afeta os olhos, ofuscando-o. Era
uma quantidade de luz incidindo sobre a retina a qual ele não estava acostumado.
Aquilo dói, mas logo passa. Ele se arrasta e consegue fugir da caverna em pleno
meio-dia. Os olhos são novamente atacados pela luz estonteante do sol mas, como
da outra vez, dentro de algum tempo se acostuma. Agora esse ser tem a
oportunidade de ver o mundo como ele realmente é. Tudo aquilo era uma
maravilha. Ele via a vida, as formas verdadeiras, as cores vivas da natureza.
Ao perguntar-se o que daria vida a tudo aquilo ele se depara com o sol que a
tudo animava.
Depois de gozar um bocado de
sua liberdade esse homem se lembra que os outros que ficaram na caverna ainda
estavam sendo enganados, e privavam-se de conhecer a realidade. Ao voltar lá e
começar a falar sobre o que vira é encarado com ceticismo. Chamam-no de louco
ou gracejam com suas ‘teorias’. Tudo o que existe, insistem, são aquelas
sombras. Como ele insiste em importuná-los, acaba sendo pego e assassinado.
Eis o mito da caverna.
Esse mito tem muitas
utilidades para o projeto filosófico de Platão. Gaarder, por exemplo, observa
que “Na certa Platão também estava pensando em Sócrates, que tinha sido morto
pelos ‘habitantes da cavernas’ por ter colocado em dúvida as noções a que eles
estavam habituados e por querer lhes mostrar o caminho do verdadeiro
conhecimento. Desta forma, a alegoria da caverna é uma imagem da coragem e da
responsabilidade pedagógica do filósofo” (GAARDER, p. 105). Nessa perspectiva,
pois, Sócrates, e todo filósofo, é quem se liberta das opiniões, do
conhecimento raso, baixo, ilusório, ou seja, da caverna, e liberta-se rumo à sabedoria,
ao bem.
Nash, como tem sido costume
em assuntos platônicos, é o que mais explora o assunto: “Um dos propósitos da
alegoria da caverna é demonstrar que há níveis diferentes de consciência
humana, ascendendo das percepções sensoriais ao conhecimento racional das
formas e, finalmente, ao mais elevado conhecimento de tudo, o conhecimento do
bem. Somente depois que, com grande esforço, os humanos deixam os objetos de
sensação na caverna, eles podem ver os objetos do conhecimento como as formas
da verdade, beleza e justiça. Com persistência, é possível que eles vejam a
própria luz, isto é, o bem” (NASH, p. 78-79).
Sobre o possível paralelo
entre as linhas da cognição e a alegoria da caverna, assim Nash conjectura: “A
natureza árdua da subida para fora da caverna e a cegueira temporária que se
segue ilustram as grandes dificuldades que acompanham a obtenção da dialética.
A consciência adquirida pelo prisioneiro fora da caverna claramente representa
a linha do nível superior, a dialética, apreensão das formas superiores.
Parecer certo concluir que os prisioneiros e seu mundo sombreado, visível na
parede da caverna, representam o âmbito da opinião. Em outras palavras, a
alegoria não faz distinção entre crença e conjectura. A experiência do
prisioneiro liberto que se volta e vê as estátuas que lançam as sobras é,
provavelmente, uma referência ao nível mais baixo de conhecimento, isto é,
entendimento. [...] Uma das razões pelas quais faz pouco sentido interpretar a
visão das estátuas como crenças é a significância que Platão confere ao
prisioneiro se libertando de suas cadeias. No momento em que se vê livre da
percepção sensorial, a pessoa já se encontra no âmbito do conhecimento. [...]
Eu argumento que aquilo que o prisioneiro vê sob a luz que entra na caverna representa
a apreensão de um nível inferior ao das formas; seria então algo semelhante ao
nível de entendimento” (NASH, p. 80).
Gaarder ainda menciona uma
questão que será discutida na ética platônica [veja a discussão aqui], mas que podemos antecipar a
título de completude: “... a maioria das pessoas está satisfeita com sua vida
em meio a esses reflexos sombreados. Elas acreditam que as sombras são tudo o
que existe, e por isso não as veem como sombras. Com isto, esquecem-se também
da imortalidade de suas almas” (GAARDER, p. 104).
UM RESUMO
Gostamos de como Brisson
começa seu artigo sobre Platão (e nós terminamos a exposição sobre o Mundo das
Ideias), sintetizando seu projeto filosófico em uma dupla subversão e resumindo
a exposição que fizemos: “Primeira: As coisas percebidas pelos sentidos, no
meio das quais vivemos, são somente imagens, imagens de realidades inteligíveis
separadas ou Formas, que são os modelos das coisas sensíveis e constituem a
realidade verdadeira; diferentemente das coisas sensíveis, as Formas possuem em
si seu próprio princípio de existência. Segunda subversão: O homem não se reduz
a seu corpo, e sua verdadeira identidade coincide com o que designamos com o
termo ‘alma’. Este último dá conta não somente no homem, mas também no
universo, de todo movimento material (crescimento, locomoção etc.), ou
imaterial (sentimentos, percepção sensível, conhecimento intelectual etc.)”
(PRADEAU, p. 32-33).
DE VOLTA À
METAFÍSICA: COSMOLOGIA
Temos que dissertar, ainda,
sobre alguns assuntos metafísicos. Temos que dissertar sobre a cosmologia
platônica. Chalita é, novamente, útil por sua concisão: “O universo como nós o
conhecemos teria sido criado por um deus inferior, o demiurgo*3, que teria modelado o mundo a
partir das ideias, usando uma matéria preexistente e disforme. No entanto, essa
cópia seria imperfeita e inferior ao mundo das ideias” (CHALITA, p. 55). A
ideia é, basicamente, esta. Mas podemos explorá-las, com os auxílios que nos
dispomos, um pouco mais.
Primeiramente há o problema
do material que o Demiurgo usou. Ele se vale da matéria. Mas, afinal de contas,
o que é a matéria? Nash admite o problema: “É difícil explicar aquilo que
Platão chama de matéria. Esta é um tipo de coisa básica da qual o mundo seria
feito. Mas é improvável que a matéria seja qualquer coisa que já tenhamos
experimentado. A matéria é desconhecível, pois não tem feições ou propriedades
identificáveis. Não tem cor, tamanho ou textura” (NASH, p. 90). Pareceu-nos bem
próximo ao ápeiron de Anaximandro. É algo sem qualquer predicado além da
existência material. É, de fato, algo muito obscuro.
O demiurgo, pois, modela a
matéria segundo as formas. Mas essa ideia também conta com a existência do
espaço-tempo. Nash informa: “Se há uma criação, ela deve ter sido criada em
algum lugar e em algum tempo. Platão, como muitos filósofos e cientistas, cria
que o mundo teria sido criado dentre de alguma coisa. Essa coisa seria uma
caixa muito grande que incluiria espaço e tempo. Conquanto as formas fossem
não-espaciais e atemporais, todo objeto físico existiria em um espaço e em um
tempo contínuo, ensinou Platão” (NASH, p. 90-91).
Mas é Brisson que discute
esse aspecto de modo mais estridente. Duas coisas são ditas: “Se Timeu pode
dizer do khorá que ‘ele participa do inteligível de uma maneira particularmente
desconcertante’, isto não significa que haja uma forma inteligível do khorá,
mas que este apresenta muitos aspectos que pertencem ao inteligível: ele é um
princípio, ele é imutável, ele não é perceptível pelos sentidos, etc.” e
“Platão distingue, portanto, não mais dois, mas três gêneros: além das formas
inteligíveis e das coisas sensíveis, ele evoca a existência do khorá, em que se
encontram as coisas sensíveis e a partir do qual elas são constituídas”. Temos
de observar, pois, que embora o espaço-tempo exista no ‘mundo físico’, não há
uma forma para esse ‘recipiente’ da matéria. Futuramente Kant irá explorar esse
conceito.
Nessa cosmologia ainda é
igualmente soturna a ideia da alma. Brisson, aqui, é quem elucida o problema
para nós: “A alma, definida como ‘fonte e princípio do movimento de tudo que se
move’, pode ser associada a um corpo que ela anima e a quem ela atribui um
movimento espontâneo, estabelecendo assim uma oposição entre o vivo e o não
vivo. Além disso, ela é invisível porque se situa num nível intermediário entre
o sensível e o inteligível, como Platão deixa entender nas duas passagens do
Timeu, no qual aparece descrita a mistura de onde todas as coisas saíram: a
alma do mundo, as almas dos deuses, dos demônios, dos homens e dos animais”
(PRADEAU, p. 35). Percebem? A alma não é uma forma, mas também não é algo
sensível. Parece, entretanto, que a alma é derivada da matéria, ou que tem
alguma forma da qual todas as demais almas surgem. Ainda parece que ela é algum
elemento especial que anima a matéria, levando as coisas ao movimento. Nesse
sentido, seria um quinto elemento ontológico na cosmologia platônica. Existe,
pois, as formas; o mundo sensível; a matéria; o espaço-tempo; e a alma.
Sproul ainda é sagaz ao
observar uma consequência importante dessa cosmologia platônica: “Esse conceito
da relação entre forma e matéria, ideia e receptáculo, está no centro da noção
grega da imperfeição inerente a todas as coisas materiais, o que levou
inevitavelmente ao desprezo pelas coisas físicas” (SPROUL, p. 37). Gnósticos,
por exemplo, valer-se-ão dessa perspectiva para alegar docetismo*4.
PROBLEMAS
NA COSMOVISÃO
Várias coisas ficam sem
explicação na cosmovisão de Platão. Uma delas, por exemplo, é a identificação
da deidade do sistema. Observamos, brevemente, que não se disserta sobre como o
Bem dá realidade derivada às demais formas.
Nash observa, também, que “é
difícil produzir, dos escritos de Platão, qualquer teoria sistemática e
coerente sobre Deus, embora diversas tentativas tenham sido feitas nesse
sentido” (NASH, p. 96). Noutro momento Nash é mais competente para expor o
assunto: “... a filosofia de Platão contém, pelo menos, dois candidatos para a
deidade. Platão jamais destronou os deuses gregos do Olimpo, embora esta
atitude fosse causada por sua preocupação com a opinião pública. Ainda assim,
sua atitude quanto a esses deuses foi descompromissada, e parece provável que
nem cresse neles. [...] Um deles é o artesão ou demiurgo de Timeu. O outro é a
forma do bem que desempenha um ponto central na alegoria da caverna [...]
Nenhum esforço para combinar essas duas figuras em um único ser tem sido
bem-sucedido” (NASH, p. 91). Veremos, na exposição ético-política sobre Platão,
que ele parece ter concebido, também, uma necessidade social para a existência
da divindade.
Ainda subjazem várias
questões, principalmente em questões epistêmico-antropológicas. Por que, pois,
a alma se encarna? Se isso a prejudica, por que acontece? É praticamente um
sadomasoquismo da alma vir a esse mundo.
Outra questão semelhante é
entender porque acontece o esquecimento. Porque o corpo limita o conhecimento?
Porque não existe um corpo com capacidade mental de intuição plena das formas
sem precisar do processo de reminiscência?
Há ainda outra questão no
mesmo teor. Como é que a alma conhece as formas no mundo das ideias? Seria uma
‘visão’ das ideias? Ou seria algum tipo de ligação ontológica?
Ronald Nash também é sagaz em
observar que Platão é falacioso ao propor a imortalidade da alma. “Ainda que
minha alma tenha sobrevivido a diversas ou a muitas mortes físicas no passado,
isso não prova que minha alma continuará a viver da próxima vez que eu morrer.
Em tais questões, desempenho passado não é garantia de um desempeno futuro”
(NASH, p. 86). Tudo bem que a alma tem que ter existido no mundo das ideias
para, depois, encarnar-se e, só então, garantir que conheçamo-las. Mas isso não
prova que a alma é imortal. Não prova, aliás, nem que deve haver uma
reencarnação. Apenas que a alma deve existir antes da encarnação. Mas a
doutrina da reencarnação está ligada à ética platônica, como veremos noutra
oportunidade.
Aliás, afinal de contas, o
que é a alma? Já observamos que ela parece um elemento distinto de tudo o mais.
Ela não é matéria e também não é forma. Não é espaço-tempo e nem pertence às
coisas sensíveis. Ela tem a característica de explicar o movimento. É uma
criação especial. Aparentemente, mais um elemento eterno. No final das contas,
essa cosmovisão parece apenas pressupor uma série de elementos para, então,
tentar explicar a realidade. No final das contas, parece nos deixar com uma
série de mitos.
Isso não quer dizer que
Platão seja um imbecil. Seria imbecilidade sim, da nossa parte, dizer uma coisa
dessas. Sem dúvida é um dos maiores vultos da humanidade. Mas, tal como outros
filósofos, parece-nos ter errado em vários pontos. Nash mesmo, que tece-lhe
muitos elogios, e demonstra-se grande entendedor, conclui: “Platão não
completou seu sistema, e isso significa que ele jamais resolveu um número de
importantes questões que surgem nos seus escritos” (NASH, p. 96). Adler chega
até a afirmar que Sócrates e Platão não criaram um sistema, mas um modo de
criar um, o que, claro, parece-nos um exagero: “Aparentemente Pla~tao não criou
um sistema filosófico, não criou uma doutrina – a menos que ela significasse
que não há doutrina e que devemos simplesmente continuar dialogando. E fazendo
perguntas, Platão e Sócrates, que o antecedeu, de fato levantaram a maior parte
das questões importantes que os filósofos posteriores julgaram necessário
discutir” (ADLER, p. 287).
Entretanto, Platão acertou
muitas coisas e contribuiu inexoravelmente para o conhecimento filosófico. Nash
termina: Platão fez, no mínimo, [...] importantes contribuições à tradição
racionalista. Primeiro, ele ensinou que todo conhecimento humano contém uma
inegável referência a um elemento universal que é conhecido independentemente
da experiência sensorial; o termo técnico para esse tipo de conhecimento é a
priori. Segundo, Platão argumenta que a razão é superior à percepção sensorial
porque a sensação é impotente para fornecer o elemento universal, crucia e
necessário presente no conhecimento” (NASH, p. 82-83).
No final das contas podemos
sintetizar o que expusemos, a título de classificação de Platão como filósofo,
nas palavras de Sproul: “Ele era um idealista por causa do significado central
que atribuía às Ideias (Com ‘i’ maiúsculo). E era realista porque argumentava
que as ideias não são meros construtos mentais ou nomes (nomina), mas entidades
reais” (SPROUL, p. 35).
----------------------------
*1 Para um conhecimento ‘apud’, cf.
‘Como Ler Livros’, p, 269-271.
*2 “Poucos acadêmicos creem que
Platão tomava esse relato de modo literal. Ele é geralmente explicado como mito
(isto é, uma espécie de faz-de-conta). Frequentemente, em seus escritos, a
inabilidade de Platão para fornecer uma resposta satisfatória a uma questão
difícil é seguida por um mito, o qual ele não insiste que seja tomado
literalmente” (NASH, p. 88).
*3 “Demiurgo, do grego demiougos,
significa literalmente ‘artesão, artífice’ (CHALITA, p. 55). Lembremo-nos
daquela classe social de comerciantes que já vimos alhures. Platão vivia nessa
sociedade, e usou uma figura comum ao povo para a instrução. É importante notar
isso para mostrar que ele não falava de ‘demiurgo’ como um nome próprio, como
se fosse o nome de um deus.
*4 Doutrina que estudaremos noutra
oportunidade quando formos dissertar sobre Cristologia.
REFERÊNCIAS
ADLER, Mortimer J; VAN DOREN,
Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro
Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.
BRISSON, Luc. Platão_
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Muito bom esse texto!!! Amei!
ResponderExcluirPuxa! Obrigado, Alessandra. :)
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