terça-feira, 3 de junho de 2014

A Ética em Aristóteles


[para melhor aproveitamento desse artigo, leia este, sobre a metafísica, antropologia e epistemologia de Aristóteles]
Finalmente chegamos à Ética de Aristóteles. Claro, semelhante a Platão, ela também decorre, principalmente, da antropologia filosófica já vista, essencialmente, alhures. Aristóteles está plenamente cônscio de que está caminhando em outro tipo de atividade teórica, ou seja, atividade prática, como nota Berti: “A física e a ‘filosofia primeira’ são ciências ‘teóricas’, pois elas têm como fim o conhecimento puro (teoria), tal como as matemáticas, mas Aristóteles considera que há também as ciências práticas, tendo como objetivo a ação (práxis), a ação justa, o bem” (PRADEAU, p. 54). Chalita é mais completo que Berti nesse quesito, nos explicando com mais exatidão a divisão taxonômica que Aristóteles faz das ciências: “Ciências técnicas – são aquelas relacionadas com a produção de objetos ou a obtenção de resultados úteis ou estéticos [...]. Ciências teoréticas – Essas ciências têm fim em si mesmas, isto é, sua finalidade se concretiza na medida em que o próprio saber é produzido [...]. Ciências práticas – nesse caso, a finalidade buscada é o aperfeiçoamento do seu agente, isto é, do homem. A aplicação dessas ciências, segundo Aristóteles, leva o desenvolvimento do ser humano na direção de uma existência melhor. São duas: a ética e a política” (CHALITA, p. 64-65).
Isso mesmo. Tal como Platão, a Política e a Ética, em Aristóteles, estão intimamente vinculadas. Além de serem parte da mesma ciência, a ciência prática, há uma simbiose entre o bem do indivíduo e o bem público: “Como o bem de um indivíduo é uma parte do bem da cidade (polis), a ciência – ou filosofia – prática que abrange todas elas é a ‘ciência política’, apresentada, uma parte, nas Éticas (a Nicômaco e a Eudemo), tendo como objeto aqui o bem do indivíduo, e outra parte na Política, tendo como objeto aqui o bem da família e da cidade. A ciência daquilo que é o bem para a família se chama também ciência econômica (de oikia, ‘casa’ ou ‘família’), mas a obra consagrada a este objeto no corpus aristoelicum, ou seja, a Economia, é provavelmente apócrifa” (PRADEAU, p. 54). Berti, pois, nos conta de uma terceira doutrina prática, a ‘Economia’, e isso sem mencionar a ‘Estética’. Iremos discutir todos esses ‘locos’ aristotélicos de forma particularizada. Entretanto, não é possível desassociá-los completamente. Portanto, na porção destinada a um assunto, volta e meia, teremos de mencionar outro.
Gabriel Chalita é quem mais argumenta de forma a sintetizar ética e política, ao passo que Ronald Nash, completíssimo na Ética, nem mesmo menciona a Política do estagirita. Para se ter uma noção do conceito engendrado por Chalita, tomemos esta citação: “O filósofo definia a ética como a ciência que trata do caráter e da conduta dos indivíduos, e a política como os estudos que regem a existência dos homens vivendo numa comunidade auto-suficiente, no caso, a pólis. A doutrina aristotélica afirma que as duas são inseparáveis. Assim, a perfeição da personalidade individual (que se mostra através da honestidade, da honra, do respeito ao próximo, em suma, da virtude) é a finalidade almejada pela vida comunitária e pelas leis” (CHALITA, p. 65). Ou seja, o todo é composto por partes, e o bom andamento das partes garante o bem estar do todo. Podemos, também, partir de iniciativas voltadas para o todo em prol de atingir os particulares. Essa será a diferença entre o estudo que faremos das ciências práticas de Aristóteles. Nesta porção de agora iremos partir do particular para o todo para, na cessão destinada à Política e Economia, concebermos a proposta ‘de cima para baixo’.

A FELICIDADE

A ética de Aristóteles começa assim: “Aristóteles começa observando que toda ação humana é dirigida a um fim ou alvo. [...] Aristóteles questiona se podemos descobrir um único alvo comum a todos os seres humanos [...] Aristóteles conclui que sim e identifica esse bem supremo como sendo a felicidade” (NASH, p. 123). Certo, o objetivo, no final das contas, é ser feliz. Ética, pois, longe de ser concebida como regrinhas do certo e errado, é vista como o que se deve fazer para ser feliz. Toda ação humana visa um fim, e este fim é a felicidade. Este é o bem supremo. Parece um tanto quanto utilitarista, não podemos negar.
De todos os comentaristas consultados, Gaarder é o mais feliz no seguinte parágrafo, onde ele sintetiza o todo da ética de Aristóteles, e o que iremos desenvolver no decorrer da dissertação: “... o homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todas as suas capacidades e possibilidades. Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfação. A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livres, responsável. E a terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo. Aristóteles sublinha o fato de que é preciso integrar essas três formas a fim de que o homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele disse que a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral – e portanto tão lacunosa – quanto a vida de outra que só usa a cabeça” (GAARDER, p. 131). Temos de destacar o conceito da integralidade. O homem só é feliz quando é inteiramente feliz, tanto no sentido temporal quanto no sentido da extensão de áreas alcançadas. É de Adler que pegamos essa observação: “A felicidade, como diz Aristóteles, é a qualidade de uma vida inteira, e ele diz ‘inteira’ não só no sentido temporal, como também no sentido de todos os aspectos pelos quais se pode enxergar uma vida. O homem feliz é alguém, como diríamos hoje, que é bem resolvido em tudo – e permanece assim ao longo de sua vida” (ADLER, p. 293). Podemos resumir o conceito da seguinte forma: para que o homem seja feliz ele deve estar realizado intelectual, corporal e moralmente. Vamos expandir o conceito e acompanhar toda a discussão em torno da questão. Assim, Durant, com a competência peculiar nos assuntos éticos, determina: “Ele [Aristóteles] é realisticamente simples em sua ética. [...] Aristóteles começa reconhecendo francamente que o objetivo da vida não é a bondade pela bondade, mas a felicidade. ‘Porque escolhemos a felicidade por ela mesma, e nunca com vista a qualquer coisa além dela; ao passo que escolhemos a honra, o prazer, o intelecto (...) porque acreditamos que através dessas coisas seremos felizes’ [ARISTÓTELES apud DURANT]” (DURANT, p. 75).

AS CIÊNCIAS E A REALIZAÇÃO PESSOAL

Enrico Berti avança um pouco mais: “Para Aristóteles, o bem supremo, tanto para o indivíduo quanto para a cidade, é a felicidade [...], ela se define pela realização, da melhor maneira possível, das capacidades próprias do homem, que as exerce com virtude [...], em outras palavras, em seu mais alto nível. Estas virtudes são dianoéticas e éticas, visto que, de fato, o homem não é somente feito de razão (dianoia), mas possui também outras capacidades que forma seu caráter (ethos), quando são realizadas em seu melhor nível” (PRADEAU, p. 54). O que Berti está nos ensinando, em outras palavras, é o seguinte. O homem é feliz ao realizar suas potencialidades particulares, singulares, da melhor maneira possível, i. é, de maneira virtuosa. Há, entretanto, dois tipos de virtudes, dois gêneros diferentes. Um tipo de virtude, dianoética, diz respeito às virtudes da razão; a outra diz respeito às virtudes morais. Ao que parece, Aristóteles já está concebendo o homem essencialmente não só racional como moral. Nash, embora já vá antecipar alguns temas, torna a coisa muito mais clara: “Aristóteles nada diz sobre lei moral, mandamentos, e suas relações com Deus. Antes, Aristóteles focaliza os traços humanos de caráter, disposições para se comportar de certas maneiras que ele discute em termos de virtude. [...] No livro 2 de Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue dois tipos de virtude: moral e intelectual. Estas são virtudes ou excelências de diferentes partes da alma. [...]. Uma parte de nós está preocupada primariamente com o pensamento e com a aquisição de conhecimento. Outra parte de nós está preocupada em fazer aquilo que nossa razão requer que façamos, com escolha e volição. Virtudes morais e intelectuais são adquiridas de maneira diferentes. A virtude moral é adquirida por meio de hábitos, enquanto a virtude intelectual é adquirida por meio do ensino” (NASH, p. 124).
Berti, então, dá mais um passo, extremamente sagaz, aliás: “As virtudes dianoéticas são a perfeição da razão ‘científica’ (ou teórica), quer dizer, a sabedoria [...], que une o intelecto [...], como conhecimento dos princípios, e a ciência [...], como capacidade de demonstrar a partir dos princípios elas compreendem também a perfeição da razão prática e ‘calculadora’, ou a prudência [...], capacidade de decidir justamente, de escolher a boa maneira de agir, para si mesmo, para sua família e para sua cidade. A prudência é superior à arte [...], considerada como capacidade de produzir bens, porque a ação é superior à produção [...], a finalidade da produção não se encontra nela, mas no objeto produzido. No entanto, a prudência é inferior à sabedoria, que é a virtude da melhor parte do homem; para alcançar a sabedoria, é então a prudência que indica quais ações devem ser praticadas e quais devem ser excluídas” (PRADEAU, p. 54-55). Berti está fazendo um balanço, uma consideração de valor entre as três classes de ciências que Aristóteles define. Para ele, acima de todas, reina as ciências teóricas. É da ciência teórica, que inclui o conhecimento do mundo e dos princípios da lógica, bem como das verdades auto-evidentes, que surge a capacidade de fazer avaliações morais, de compreender as virtudes, e, assim, decidir o que é bom para nós, para nossa família e para o Estado. Doravante veremos isso de maneira mais expandida. No fim, a prudência, ou a competência das virtudes morais, são superiores às ciências técnicas que não têm fim em si mesmas.
Vale a pena, também, destacar que há, também, uma simbiose entre a prudência e a sabedoria. É a sabedoria, ou ciência teórica, que outorga capacidade para a decisão justa, a prudência. Mas a prudência é que elege a sabedoria o bem mais próprio para se perseguir.
Bom, voltemos a um tema elencado acima. A questão da felicidade e o fim em si mesmo. Foi dito que as artes, ou ciências técnicas não podem dar felicidade porque não são um fim em si mesmo. Isso nos remete a um conceito um pouco mais trabalhado de ‘felicidade’. Já sabemos, de antemão, que a felicidade é encontrada na plena realização do homem. Mas esse não é um ponto pacífico, como irá nos aponta Berti: “Alguns especialistas consideram que Aristóteles limita a felicidade à vida teórica; outros sustentam que ele aí inclui a prática de todas as virtudes” (PRADEAU, p. 55). Bom, vamos compreender o que são as demais virtudes primeiro, antes de compreender o que seria a ‘felicidade intelectual’.

A REALIZAÇÃO MORAL

Aristóteles está tentando definir as virtudes, conceber o que é bom e, para isso, ele propõe o inovador* conceito do ‘meio termo justo’. Percebam que aqui temos a discussão ética de viés epistemológico. Gaarder se expressa, aqui, com muita clareza: “Também no que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um ‘meio-termo de ouro’. Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas corajosos. (Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia). Também não devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas generosos. (Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância)” (GAARDER, p. 131). O equilíbrio é buscado, pois, em tudo. Até mesmo nas coisas relacionadas à saúde: “O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais também o é” (GAARDER, p. 131). O mesmo Gaarder nos lembra que esse conceito está intimamente ligado à medicina grega vigente: “A Ética de Platão e de Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou ‘harmônicas’ (GAARDER, p. 132).
Percebam que é a razão que distingue e identifica as virtudes éticas, como nota Berti: “As virtudes éticas se acham também no justo centro entre duas faltas opostas, determinado pela razão” (PRADEAU, p. 54). Durant é notadamente elucidativo nesse momento. Vejamos como ele nota que a felicidade, em última instância, depende da competência filosófica, da razão: “A principal condição para a felicidade, então, excluídos certos pré-requisitos físicos, é a vida da razão. [...] A virtude, ou melhor, a excelência, irá depender de um julgamento claro, autocontrole, simetria de desejos, mestria dos meios [...]. há um caminho até ela, um guia que leva à excelência, que pode poupar muitos desvios e demoras: é o caminho do meio, o meio-termo justo. As qualidade do caráter podem ser dispostas em tríades, em cada uma das quais a primeira e a última qualidades serão extremos e vícios, e a qualidade do meio, uma virtude ou uma excelência” (DURANT, p. 75). Embora as virtudes morais devam ser exercidas em alto nível, o enfoque de Aristóteles está no exercício filosófico por excelência. É o exercício filosófico que irá determinar os caminhos do andar virtuoso, a saber, identificar o meio termo-justo. Durant também está ciente de que determinar e identificar o meio-termo de ouro não é tarefa das mais fáceis. Muitas vezes demanda um intelecto treinado e capaz: “O meio-termo justo, entretanto, não é, como a média matemática, uma média exata de dois extremos que podem ser calculados com precisão; flutua com as circunstâncias colaterais de cada situação e só se revela à razão madura e flexível” (DURANT, p. 75).
Aristóteles, no entanto, nos adverte que no ato de identificação pode encontrar alguns embargos: “A juventude é a idade dos extremos [...] A grande dificuldade da juventude (e de muitos dos mais velhos) é sair de um dos extremos sem cair no opostos. [...] Àqueles que estiverem conscientemente em um dos extremos darão o nome de virtude não ao meio, mas ao extremo oposto. À vezes, isso é bom; porque se estivermos cônscios de que erramos em um dos extremos, ‘devemos visar ao outro e, assim, talvez possamos alcançar a posição intermediárias [...]’” [ARISTÓTELES apud DURANT]” (DURANT, p. 76). Assim, um jovem (às vezes, até mesmo um adulto) completamente avarento, cônscio de sua culpa moral, pode julgar que, na verdade, a verdadeira virtude esteja na liberalidade desmedida, na extravagância. Aristóteles concebe que isso pode ser benéfico se, na tentativa de buscarmos o ‘lado oposto’ conseguirmos atingir o ‘meio’. Durant amplia a discussão falando dos extremistas inconscientes, que não percebem estar fora da virtude: “Mas os extremistas inconscientes consideram o meio-termo justo como o maior dos vícios; eles escorraçam um para outro o homem que estiver na posição intermediária” (DURANT, p. 76). Talvez o conceba como um hipócrita, alguém indeciso, ou algo do tipo. Seja como for, tanto o extremista inconsciente quanto o consciente idealizam equivocadamente a virtude, ensina Aristóteles. Ela está no equilíbrio. Temos de nos lembrar que Aristóteles concebe o bem em termos utilitários, ou seja, o que é bom é o que gera felicidade.
Notemos que Aristóteles outorga um valor objetivo à moral a ponto de considerar algumas ações realmente imorais: “Algumas ações são sempre erradas. Um exemplo que ele dá é o do adultério. Em tais casos, não há meio áureo” (NASH, p. 125). Não podemos transitar entre fidelidade e infidelidade. Talvez o meio termo justo, aqui, seria entre a paixão idólatra, à lá a personagem Werther, de Goethe, e a ausência de consideração, o desprezo, que geraria a infidelidade. Vejam como não é tarefa fácil, ao mesmo tempo que é estimulante, identificar o ‘meio áureo’!

Pois bem, uma coisa é saber o que é a virtude, outra é ser virtuoso. Para isso, Aristóteles elabora noções bem pontuais. Pondé pode resumir o conceito para nós: “A chamada ética das virtudes de Aristóteles pressupõe que a prática das virtudes é como tocar um instrumento musical: quanto mais se pratica, mais virtuoso se fica” (PONDÉ, p. 38). Isso mesmo, é pela prática das virtudes que nos tornamos virtuosos. Durant assim se expressa sobre o tema: “A excelência é uma arte obtida com o treinamento e o hábito: não agimos corretamente porque temos virtude ou excelência, mas temos porque agimos corretamente [...] nós somos aquilo que fizemos repetidas vezes” (DURANT, p. 75-76). Ou seja, tornamo-nos virtuosos porque praticamos as virtudes. A proposição contrária é, para Aristóteles, falsa, ou seja, não agimos corretamente porque somos bons, mas somos bons (ou melhor, tornamo-nos bons) pela prática do bem. É como se a prática fosse amoldando nosso caráter. Já que precisamos praticar as virtudes para tornarmo-nos bons, o Estagirita parece afirmar, tacitamente, que somos naturalmente maus.
Nash complementa o conceito: “Pessoas verdadeiramente virtuosas no sentido moral, ao longo do tempo, desenvolvem certos traços de caráter ou disposições. [...] Se repetirmos certos tipos de conduta com suficiente frequência, torna-se fácil exercê-los. Somente quando a conduta de uma pessoa flui de uma disposição fixa e constante podemos considera-la moralmente virtuosa” (NASH, p. 124). Percebam a novidade. Ao praticarmos uma virtude não estaremos, ainda, sendo virtuosos. Somente quando aquela prática nos for natural é que poderemos considera-la virtuosa. Antes que alguém diga ter encontrado Aristóteles em contradição, o mesmo Nash o corrige: “Aristóteles parece envolvido em uma contradição. Devemos realizar atos virtuosos a fim de estabelecer uma disposição virtuosa. Mas não podemos agir de maneira virtuosa a menos que nossas ações fluam de uma disposição fixa e constante. Como, então, poderíamos progredir para a aquisição da disposição virtuosa que buscamos? Sua resposta: teríamos de realizar atos que parecessem com os atos virtuosos que realizaríamos se tivéssemos disposição para realiza-los” (NASH, p. 125).
Para finalizarmos, temos uma lição de Berti a apresentar. “Entre as virtudes éticas, a justiça tem uma importante particular, pois ela diz respeito às relações entre as pessoas. Quando se trata de distribuir as honras ou os poderes, a justiça (o justo meio), ela deve saber estabelecer uma proporção entre as honras e os méritos (justiça distributiva); mas quando se trata de trocar as vantagens e as penalidades, ela deve repartir a atribuição dessas coisas respeitando a igualdade (justiça comunitária)” (PRADEAU, p. 54). Parece que Aristóteles está concebendo ‘justiça’ como o fez Platão, ou seja, ela é ‘ter e fazer o que nos compete’, e isso num contesto de relações sociais. A justiça distributiva consiste em repartir honras e poderes de acordo com os méritos. Não se dá nem mais do que se merece e nem menos. Para com as vantagens e penalidades a justiça deve atribuí-las respeitando a igualdade entre os homens. Ou seja, nada de partidarismo e parcialidade. Não se pune ou abençoa mais ou menos do que se merece. Ele, pois, propõe a equidade.

A REALIZAÇÃO INTELECTUAL

Bom, pensemos em pistas para compreender o porquê em pensar na vida teórica como a única detentora da real felicidade. “O que se quer é uma explicação mais clara da natureza da felicidade e o caminho para chegar até ela. Ele espera encontrar esse caminho perguntando em que ponto o homem difere de outros seres; e presumindo que a felicidade do homem estará no pleno funcionamento dessa qualidade especificamente humana. [...] e como o desenvolvimento dessa faculdade lhe deu a supremacia, assim também, podemos presumir, a evolução da faculdade lhe dará a realização e a felicidade” (DURANT, p. 75). Will Durant, pois, expõe com maestria o raciocínio aristotélico da proeminência da razão. Já vimos que o homem é, essencialmente, um ente vivo e que, portanto, possui algumas características essenciais presentes em todos os seres vivos. Ele herda da alma nutritiva o crescimento e a reprodução. Ele herda da alma animal a locomoção e a percepção. Por fim, exclusivamente seu, que lhe angaria a proeminência ano reino dos seres vivos, está sua racionalidade, a centeia divina. Realizá-la ao máximo é, para Aristóteles, o que, finalmente, fará o homem feliz. É daqui, provavelmente, que Aristóteles concebe que o homem instintivamente deseja conhecer. É por isso que Nash é tão taxativo: “Dizer que o bem supremo é a felicidade não nos ajuda muito, uma vez que as pessoas discordam sobre a natureza da felicidade [...]. E um dos problemas com essas identificações de felicidade é que todas elas não são senão meios para um fim. O que quer que seja a felicidade, ela tem de ser intrinsecamente boa [...] O oposto de um bem intrínseco é um bem instrumental, algo que seja desejado como meio para um fim. A verdadeira felicidade tem de ser boa como um fim em si mesma. Por isso, Aristóteles rejeitou o dinheiro como base para a felicidade. [...] Nada poderá ser o bem supremo se for escolhido em função de qualquer outra coisa. A felicidade é o bem supremo porque é buscada em função dela mesma, ela é auto-suficiente e é aquilo que todos os homens almejam. Não importa o que ela seja, o bem supremo tem de ser auto-suficiente. Isso significa que ele tem de ser algo a que nada possa ser acrescentado para torna-lo melhor” (NASH, p. 123). Alguém, a essa altura, poderia dizer que um homem bom seria alguém realizado. Nash diria que não, pois “tal critério desclassifica a virtude como a essência da felicidade. É possível para uma pessoa ser virtuosa, mas, ainda assim, miserável por causa de problemas de saúde ou de pobreza. É possível acrescentar outras coisas à virtude para melhorar a qualidade de vida. [...] A eudaemonia tem de estar conectada ao elemento distintivo da humanidade, a razão. Eudaemonia é agir de acordo com o bem maior da humanidade, a razão” (NASH, p. 123). Entretanto, nesse caso, o homem virtuoso estaria dependente mais das realizações ‘corporais’ ou ‘temporais’ do que do intelecto. Isso nos leva à uma nova discussão.

A REALIZAÇÃO CORPORAL E CARNAL

Aristóteles estava bem ciente de que o ‘hedonismo’ não era, nem de longe, uma doutrina que poderia trazer felicidade: “A busca ingênua do prazer é auto-enganadora. [...] O prazer é um ingrediente da vida boa e é uma parte da vida boa, mas não consiste na totalidade da vida boa. Usa-se fermento para assar um bolo, mas é impossível saborear um bolo feito apenas de fermento” (NASH, p. 126-127). Sim, o mero hedonismo não é capaz de nos fazer felizes. A natureza humana demanda mais. Ela quer conhecer, entender, compreender. Existe demandas morais a serem satisfeitas. Mas os prazeres naturais da carne, do corpo, também devem ser observados com a devida temperança. “Mas o meio-termo justo, diz o nosso prático filósofo, não é todo o segredo da felicidade. Devemos ter, também, um bom grau de bens terrenos” (DURANT, p. 76). É preciso, como Gaarder observa lá atrás, além da vida virtuosa, ter o que comer, beber, vestir. O abandono cínico da vida não parece, ao estagirita, o melhor caminho. Além de ter o que comer, beber e onde dormir, há outros auxílios à felicidade. “O mais nobre desses auxílios externos à felicidade é a amizade. De fato, a amizade é mais necessário aos felizes do que aos infelizes; porque a felicidade é multiplicada quando é compartilhada. [...] No entanto, amizade dá a entender poucos amigos, e não muitos. [...] Uma bela amizade requer duração, e não intensidade inconstante. [...] E amizade requer igualdade; porque a gratidão lhe dá, quando muito, uma base escorregadia” (DURANT, p.  77). Berti amplia o conceito: “Na realidade, a vida teórica não seria possível sem as outras virtudes. Além disso, Aristóteles julga que a pessoa que leva uma vida assim, ou seja, o filósofo, deve também mostrar aos políticos a maneira de realizar o bem para a cidade e definir para ela a melhor constituição; e isto confirma que somente este tipo de vida engloba o conjunto das virtudes” (PRADEAU, p. 55).

DE VOLTA À REALIZAÇÃO INTELECTUAL

Mas é o mesmo filósofo, Durant, que nos devolve à vida do intelecto e da sabedoria: “E no entanto, embora os bens externos e os relacionamentos sejam necessários à felicidade, a essência desta continua dentro de nós, no conhecimento perfeito e na clareza da alma. O certo é que o prazer dos sentidos não é o caminho. [...] Tampouco uma carreira política pode ser o caminho, porque nela caminhamos sujeitos aos caprichos do povo; e nada é mais volúvel do que o povo. Não, felicidade deve ser um prazer da mente; e só podemos confiar nela quando ela resultar da busca ou da captura da verdade” (DURANT, p. 77). Embora o prazer seja decorrente da vida feliz, pois não poderíamos conceber uma vida feliz desprovida de prazeres, e haja outras virtudes e auxílios, é, essencialmente, o exercer virtuoso, ou seja, pleno, da singularidade humana, a razão, que lhe pode, finalmente, fazer feliz, concebe o filósofo macedônico: “...a felicidade abrange assim o prazer; este não é o bem supremo, mas, sendo a felicidade definida como o exercício da atividade perfeita, o prazer decorre de sua realização; ele abrange também a amizade, que é ela própria uma virtude, quando este sentimento aproxima pessoas de qualidade. Porém, mesmo na hipótese de que fossem reunidas todas as qualidades, às quais se acrescentariam algumas vantagens, como a saúde, uma certa comodidade, um físico agradável, uma boa família e bons amigos, Aristóteles considera que a felicidade reside essencialmente na vida teórica, quer dizer, numa vida totalmente consagrada à pesquisa, ao estudo, às atividades que têm como fim o conhecimento. Este tipo de vida, de fato, é uma finalidade em si; ela é autossuficiente e semelhante àquela vida que levam os deuses” (PRADEAU, p. 55). Isso mesmo. Já notamos que ‘o motor imóvel’, para Aristóteles, era um ser autoconsciente que vivia a contemplar-se. Assim, Nash conclui que a atividade mais elevada possível é a contemplação do próprio Deus! Nesse sentido, Aristóteles não deixa de elevar-se a um status um tanto quanto religioso. Portanto, Nash conclui: “Felicidade não é dinheiro, sucesso ou prazer. Aristóteles elabora a felicidade em termos de contemplação, uma atividade consoante com a função mais elevada do homem (razão), a qual é intrinsecamente boa e auto-suficiente. Contemplação é a única atividade que satisfaz todos esses critérios” (NASH, p. 126).

A ORIGEM DA FILOSOFIA

“A filosofia, segundo Aristóteles, nasce do espanto” (ADLER, p. 277). Acreditamos que já granjeamos boas possibilidades de explicações, baseado no que já compreendemos sobre Aristóteles, para essa proposição aristotélica.
Primeiro, notamos que a atividade racional humana consiste na abstração e categorização das coisas, como uma atividade organizadora em prol da compreensão do mundo. Agora, notem a seguinte observação de Gaarder: “Quando encontramos uma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro choque [...] se você se depara com uma pequena coisa e não sabe dizer ao certo se esta coisa pertence ao reino animal, vegetal ou mineral, acho que você não ousaria tocá-la” (GAARDER, p. 128). Nesse sentido, diante do espanto, somos obrigados a pesquisar, investigar, raciocinar, abstrair mais e mais, para conseguirmos explicar, classificar, compreender determinado ente. Eis uma boa explicação de como a filosofia nasceria na alma inquieta, espantada ante o incompreendido.
Mas, enquanto a ciência busca o ‘o quê’ das coisas, a filosofia busca os ‘porquês’. Berti está ciente disso:. Nesse sentido, a busca pelas causas seria a tarefa da filosofia. Diante da inquietação que um fenômeno não compreendi nos causa, começamos a investigar. Essa seria, também, perfeitamente uma explicação para essa interessante proposição do filósofo de Estagira. Ficamos intrigados com o mundo à nossa volta, e ansiamos por explicações. Esse anseio, como notamos, é derivado de nosso anseio por conhecimento. Não é apenas conhecer para sobreviver ou viver melhor, como alguém poderia sugerir. Mesmo alguém plenamente satisfeito, materialmente falando, em sãs condições, tem curiosidade, anseia por saber. O mundo à nossa volta nos intriga. Nada mais natural, diria Aristóteles. Acreditamos ser esse o sentido das proposições no capítulo um da célebre obra ‘Ortodoxia’ de Chesterton: “Esse pelo menos me parece ser o principal problema dos filósofos e, de certo modo, é o principal problema deste livro. Como podemos imaginar ficarmos ao esmo tempo assombrados com o mundo e, mesmo assim, nele nos sentirmos em casa? [...] Precisamos ver  o mundo de tal modo que nele se combine uma idéia de deslumbramento com uma idéia de acolhimento. Precisamos nos sentir felizes nessa terra deslumbrante sem nunca nos sentir meramente confortáveis” (CHESTERTON, p. 19-20). Eis, diria Aristóteles, a grande sacada da filosofia.

O HOMEM IDEAL

Queremos, pois, saber como seria o homem ideal, plenamente virtuoso e, portanto, perfeitamente feliz? Aristóteles mesmo o descreve e, como Durant nota, não se trata de um mero metafísico: “Ele não se expõe desnecessariamente ao perigo, uma vez que são poucas as coisas com que se preocupa o suficiente; mas está disposto, nas grandes crises, a dar até a vida, sabendo que em certas condições não vale a pena viver. Está disposto a servir aos homens, embora se envergonhe quando o servem. [...] Ele não toma parte em manifestações públicas (...) É franco quanto a suas antipatias e preferências. [...] Nunca se deixa tomar de admiração, já que a seus olhos nada é excelente. Não consegue viver com complacência para com terceiros, a menos que se trate de um amigo; a complacência é a característica de um escravo (...) Nunca tem maldade e sempre esquece e passa por cima das injustiças. (...) Não gosta de falar. Não fala mal dos outros, mesmo de seus inimigos, a menos que seja com eles mesmos. [...] Ele suporta os acidentes da vida com dignidade e graça, tirando o máximo proveito de suas circunstância, como um habilidoso general conduz suas limitadas forças com toda a estratégia de guerra (...). Ele é o melhor amigo de si mesmo e se delicia com a privacidade, ao passo que o homem sem virtude ou capacidade alguma é o pior inimigo de si mesmo e tem medo da solidão” (ARISTÓTELES apud DURANT, p. 77-78).

ESTÉTICA

Aristóteles também dá sua contribuição para a ‘estética’, a ‘filosofia da arte’. Durant diz que ele “... quase cria o estudo da estética, a teoria da beleza e da arte” (DURANT, p. 74), mas a nós parece haver uma teoria completa sobre o assunto. Sobre a origem da arte no coração humano, Durant informa: “A criação artística, diz Aristóteles, nasce do impulso formativo e da ânsia pela expressão emocional” (DURANT, p. 74). Na estética incluímos a música, a escultura, a pintura e o teatro, ou seja, tudo aquilo que podemos predicar como belo e que, por isso, envolve nossas emoções.
Berti nos diz que, “para Aristóteles, a poesia [a arte] é mimesis, o que não significa imitação passiva, mas representação, capacidade de fazer viver uma ficção como se ela fosse real” (PRADEAU, p. 57). Ou seja, através da ‘imitação’ desperta-se os sentimentos que aquela realidade evocaria. Durant completa: “Essencialmente, a forma de arte é uma imitação da realidade [...] Existe no homem um prazer na imitação que aparentemente falta aos animais inferiores. No entanto, o objetivo da arte é representar não a aparência externa das coisas, mas o seu significado interno; porque este, e não o maneirismo e o detalhe externo, é a realidade delas” (DURANT, p. 74). Busca-se, pois, na essência das coisas, aquilo que nos desperta as emoções.
A importância e pertinência do estudo da estética, para nós, nesse momento, é o fato de Aristóteles considera-la mui potente na outorga de prazeres: “A mais nobre das artes fala tanto ao intelecto como aos sentimentos [...] e esse prazer intelectual é a mais alta forma de prazer que um homem pode alcançar. Daí, uma obra de arte deve visar à forma e, acima de tudo, à unidade, que é a espinha dorsal da estrutura e o foco da forma” (DURANT, p. 74).
Já estudamos o teatro grego outrora. Vimos que ele continha histórias que lidavam com os temas da liberdade do homem e seu destino*. Aqui, Berti irá nos dar mais algumas informações sobre o teatro grego, segundo a análise do Estagirita, para quem quer diferenciar tragédia de drama e de comédia: “Ela pode tomar como objeto personagens nobres e, nesse caso, trata-se de poesia épica ou trágica; no caso de personagens não nobres, trata-se de poesia cômica. A poesia épica e a tragédia se diferenciam da seguinte maneira: a primeira somente fornece a narração dos fatos, ao passo que a segunda os representa de forma dramática. Esta última característica remete assim à comédia. A Poética dá uma célebre definição da tragédia, dizendo que ela consiste na ‘imitação de uma ação que forma um todo, é grave e apresenta uma certe nobreza, segundo uma forma não narrativa, mas dramática, e que, pela via da compaixão e do terror, permite a purificação das paixões semelhantes’ [...].Na Poética, Aristóteles ilustra também os outros elementos da tragédia e da poesia épica (catástrofes, casos imprevistos, revelações, intrigas e desenlaces, caracteres etc.), mas ele não estuda tão profundamente a comédia, talvez porque o segundo livro da obra – hoje perdido – lhe fora consagrado” (PRADEAU, p. 57).
Foi mencionado, na citação de Berti, o conceito de ‘purificação’ (catarse) associada à arte, e é particularmente aqui que Aristóteles concebe sua importância. O mesmo Berti nos informa: “O conceito mais importante aqui é a ideia de ‘purificação’ (katharsis), que parece libertar as paixões, tais como a compaixão e o terror dos elementos dolorosos que estes sentimentos apresentam na vida real, fazendo de maneira que eles se tornem agradáveis” (PRADEAU, p. 57). É possível vivenciar as emoções evocadas numa situação real sem, com isso, viver essas desagradáveis situações. É possível, inclusive, que esses sentimentos, desassociados da experiência pessoal que transmite os sentimentos, ou seja, oriundos de uma experiência mediata, sejam agradáveis. Durant expõe a arte como uma possibilidade de vasão de sentimentos reprimidos: “Acima de tudo, porém, a função da arte é catarse, purificação: emoções acumuladas em nós sob a pressão das restrições sociais, e sujeitas a uma vazão súbita sob a forma de uma ação anti-social e destruidora, são disparadas e soltas na inofensiva forma da emoção teatral; por isso a tragédia, ‘através da piedade e do medo, realiza a purgação adequada dessas emoções’ [...] [Aristóteles] apresentou uma sugestão inesgotavelmente fértil na compreensão do poder quase místico da arte” (DURANT, p. 74). Temos que lembrar que o próprio Platão já sugeria o poder educador e regulador de caráter da música, determinando-a para a formação do jovem da República. É pois, interessante, nesse sentido, notar o que observa Berti: “O prazer associado a esta imitação é, como sempre para Aristóteles, o prazer do conhecer, quer dizer, do aprender. Enquanto a catarse produzida pelo canto educa os jovens nas virtudes éticas (como está dito na Política), a catarse produzida pela tragédia educa os adultos nas virtudes dianoéticas, quer dizer, na prudência” (PRADEAU, p. 57). Vejam só, a arte, nos jovens, produz virtudes éticas, morais, como propôs Platão; ao passo que nos adultos produz prudência, ou seja, a capacidade de escolher o que é bom para si, para sua família e para o Estado, talvez, justamente, pelo montante maior de experiências para associar à experiência imitada na arte.
Vejam o que Berti ainda nos informa sobre as reflexões estéticas de Aristóteles: “Se a catarse é a finalidade inclusive da tragédia, [...], se deve propor fatos que podem se reproduzir, seja provavelmente, seja necessariamente, quer dizer, mais frequentemente e sempre. É por isso que Aristóteles diz que a poesia é mais ‘filosófica’ do que a história, sendo mais capaz de conduzir para o conhecimento; de fato, a história faz a narração de casos particulares, enquanto que a poesia, representado o provável, faz conhecer o universal” (PRADEAU, p. 57). A poesia tange eventos de aplicação universal, como as parábolas de Jesus. Há lições aplicáveis a todas as épocas. Já a história está estritamente vinculada a um momento, refletia o estagirita. Mortimer Adler, um dos grandes especialistas em Aristóteles no século XX, faz a mesma observação, entretanto, a contesta no final: “O que ele queria dizer era que a poesia é mais geral, mais universal. Um bom poema é fiel não apenas a seu tempo e lugar, mas a todos os tempos e lugares. Ele tem sentido e força para todos os homens. A história não é tão universal assim. Ela está relacionada aos acontecimentos de um modo como a poesia não está. Mas qualquer bom livro de história também é universal” (ADLER, p. 249). Nesta parte do livro, Adler vem com uma proposta pragmática da história, como se devêssemos interpretá-la como se interpreta o teatro: colhendo as lições.
Seja como for, temos a noção clara de que a estética está vinculada não só com a obtenção direta da felicidade, outorgando-nos prazer; como está vinculada indiretamente, amoldando nosso caráter e concedendo-nos prudência. É, pois, fator indispensável na filosofia aristotélica.

CRÍTICAS

Algumas críticas poderiam ser engendradas (e de fato o foram, na história da filosofia). É mister que citemos as que já descobrimos para que nossas considerações sobre a ética aristotélica seja mais completa.
Primeiramente, Durant, na seção que ele reserva para criticar mesmo, nos diz o seguinte: “A ética de Aristóteles é uma ramificação de sua lógica: a vida ideal é como um silogismo adequado. Ele nos dá um manual de boas maneiras e não um estímulo ao aperfeiçoamento” (DURANT, p. 86). Bom, não estamos perfeitamente de acordo com isso. Embora, como vimos, o filósofo de Estagira nos diga que a plena realização está na atividade intelectual, e é essa mesma que nos ajuda a identificar as virtudes, ele também nos diz que a realização moral, (a ‘honra’, como coloca o próprio Durant), é indispensável para a felicidade completa, bem como a realização ‘temporal’. Portanto, ele estimula a prática das virtudes para que nos tornemos bons e, com isso, mais felizes.
Durant segue com suas críticas dizendo que Aristóteles “cumpriu com rigor demasiado a ordem délfica de evitar o excesso: está tão ansioso por cortar os extremos, que no final não sobra coisa alguma” (DURANT, p. 86). Foi o próprio Durant, como observamos, quem notou que a ‘arte’ e ‘ciência’ de definir o ‘meio-termo justo’ demanda muito treino e competência. Alguém que ‘tirasse tanto’ a ponto de não haver nada, retrucaria o Estagirita, é alguém que não sabe ‘aparar’ de maneira correta.
Num interessantíssimo e breve artigo, intitulado ‘Desejo de conhecer’, o filósofo Olavo de Carvalho nota e refuta uma comum objeção à essa afirmação de Aristóteles. Vemos em muitos lugares o desinteresse para com o conhecimento, particularmente no nosso Brasil. Olavo nos diz, então, o seguinte: “Precisei viajar um bocado pelo mundo para me dar conta de que Aristóteles se referia à natureza humana em geral e não à cabeça dos brasileiros” e, adiante “Longe do Brasil, encontrei enfermeirinhas, caixeiros de loja e operários da construção civil que, ao saber-me autor de livros de filosofia, arregalavam dois olhos de curiosidade, me crivavam de perguntas e me ouviam com atenção devota que se daria a um profeta vindo dos céus” (CARVALHO, p. 37-38). Qual é o problema então? É que nós, embora humanos, podemos negligenciar nossas potencialidades e, enganados, projetar ídolos como se fossem satisfazer-nos. Os brasileiros, reclama o filósofo, fizeram isso.  Por fim, conclui: “Aristóteles tinha razão: o desejo de conhecer é inato. O Brasil é que havia falhado em desenvolver nos seus filhos a consciência da natureza humana...” (CARVALHO, p. 38).
Talvez a crítica mais sagaz esteja já espalhada durante toda a exposição sobre Aristóteles. Observamos que pareceu arbitrária a propriedade da autoconsciência do deus aristotélico. Já que é uma entidade que move as coisas não de forma direta, mas por ‘atração’, poderia, muito bem, ser uma força. Mas Aristóteles lhe dá uma consciência, uma autoconsciência, e uma atividade inerte de autocontemplação. Agora o estagirita tinha bons motivos para conceber a reflexão filosófica, a satisfação intelectual, como a maior atividade humana. Ronald Nash surge, mordaz: “É ainda uma coincidência ingênua que a contemplação [...] ocorra ser a única atividade à qual Deus se aplique. [...] A verdadeira felicidade consiste em pensar sobre Deus. E a pessoa com maior probabilidade de atingir a felicidade é um filósofo como Aristóteles. Tal coincidência talvez seja mais do que uma pessoa pode suportar” (NASH, p. 126). Assim, pelo menos o argumento de que a atividade intelectual é superior por ser potência da ‘centelha divina’ no homem é enquadrado como circular (a atividade mais nobre é o intelecto porque deus isso o faz; deus deve pensar porque é a atividade mais nobre) ou, pelo menos, arbitrário.
Então o Estagirita tem de recorrer à experiência subjetiva coletiva e, dela, abstrair o que é essencial no homem, a saber, a curiosidade, a satisfação no desejo de saber. O homem, por exemplo, não consegue se satisfazer numa mentira. A mera suspeita de que se está enganado, ainda que lhe proporcione todo bem estar do mundo, seria um terror. Apesar de fora do contexto original, vamos citar uma ilustração do brilhante filósofo James P. Moreland que muito nos favorecerá em termos elucidativos: “Wonmug era um aluno quieto e sem esperança que estudava física em uma reconhecida universidade. Ele foi muito mal no primeiro semestre de aulas. Seu conhecimento de matemática estava no nível de um aluno de quinta série e ele não tinha a mínima condição de estar estudando física. Certo dia todos os alunos e professores decidiram pregar uma peça em Wonmug, fazendo-o pensar que ele era o melhor estudante de física daquela universidade. Quando ele fazia uma pergunta na classe, mesmo que fosse uma pergunta tola, os professores e alunos tratavam-na com fascínio, como se fosse uma questão profundamente importante. Os professores deram a ele ótimas notas em todas as matérias, quando na verdade ele merecia tirar dois ou três. Wonmug se formou e começou a fazer pós-graduação na mesma universidade. Os professores desta instituição enviaram uma carta a todos os físicos do mundo, informando sobre a brincadeira. Wonmug recebeu seu diploma, conseguiu uma cadeira como docente, viajava regularmente para a Europa para participar de conferências e freqüentemente aparecia em revistas como a Super-Interessante e a Veja. A vida de Wonmug estava carregada de sentimentos de felicidade, respeito e orgulho. Infelizmente, ele ainda não sabia nada de física. As pessoas odiavam Wonmug e o ridicularizavam pelas costas, mas Wonmug, sem saber da verdade, estava tão feliz quanto poderia estar. Você tem inveja de Wonmug? Você deseja essa vida para os seus filhos? É claro que não. Por quê? Por que a sua sensação de bem-estar foi construída sobre uma visão de mundo placebo, falsa e vazia” (MORELAND).
Assim, a sabedoria, arguiria o filósofo, poderia nos proporcionar a felicidade. Conhecemos por conhecer, sem objetivo algum além desse, e isso nos basta. Estaríamos satisfeitos se fôssemos todos filósofos. E este conhecer, engendra o filósofo, culmina na percepção da causa ulterior, o motor imóvel. Tendo o subsídio das demais virtudes, o filósofo acredita que pairaríamos no prazer decorrente desse conhecimento, felizes peremptoriamente. Mas, enquanto concordamos com o Estagirita que não conseguimos estar satisfeitos enquanto cientes de nossa ignorância, acreditamos que seu sistema ainda nos deixa ignorantes. Porque o homem não se satisfaz na ignorância? Essa é a pergunta crucial. Novamente faremos sala para Agostinho e os agostinianos: acreditamos que somente eles poderão responder à essa questão. Aristóteles, entretanto, até agora, pareceu-nos o mais próximo de acertar a questão, ao passo que nos será de grande proveito, também, o ‘eros’ platônico.


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* Durant não a considera tão ‘inovadora’ assim: “É óbvio que essa doutrina do meio-termo justo é a formulação de uma atitude característica que aparece em quase todos os sistemas da filosofia grega. [...] Talvez, como alega Nietzsche, tudo isso fossem tentativas dos gregos para conter a sua própria violência e impulsividade de caráter” (DURANT, p. 76). Entretanto, não percebemos tão claramente assim essa concepção nos outros filósofos. Ao menos a forma de conceber as virtudes através do meio-termo parece-nos bem original em Aristóteles.
* Aristóteles, conforme nos informa Durant, não lida com esse problema de forma conclusiva (o assunto da imortalidade da alma já foi trabalhado por nós): “os dois problemas cruciais da psicologia filosófica – a liberdade do arbítrio e a imortalidade da alma – são deixados na obscuridade e na dúvida. Aristóteles fala, às vezes, como um determinista: ‘não podemos querer categoricamente ser diferentes do que somos’; mas em seguida argumenta, contra o determinismo, que podemos escolher o que seremos, ao escolhermos agora o meio ambiente que irá nos moldar; assim, somos livres no sentido de que modelamos nosso caráter pela escolha que fazemos de amigos, livros, ocupações e divertimentos Ele não prevê a pronta resposta do determinista, de que essas opções formativas são, elas próprias, determinadas pelo nosso caráter antecedente, e este, afinal, pela hereditariedade não escolhida e pelo meio ambiente inicial” (DURANT, p. 73).
REFERÊNCIAS

ADLER, Mortimer J; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.

BERTI, Enrico. Aristóteles _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

CARVALHO, Olavo de; BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão. 2008, 264p.


DURANT, Will. A História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

MORELAND, J. P. Evangelismo persuasivo em uma cultura pluralista. Acessado dia 14/05/2014 em: http://comoviveremos.wordpress.com/2007/03/31/evangelismo-persuasivo-em-uma-cultura-pluralista/.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.

SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.

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