[para melhor aproveitamento desse artigo, leia este, sobre a metafísica, antropologia e epistemologia de Aristóteles]
Finalmente chegamos à Ética de Aristóteles. Claro, semelhante a Platão, ela também decorre, principalmente, da antropologia filosófica já vista, essencialmente, alhures. Aristóteles está plenamente cônscio de que está caminhando em outro tipo de atividade teórica, ou seja, atividade prática, como nota Berti: “A física e a ‘filosofia primeira’ são ciências ‘teóricas’, pois elas têm como fim o conhecimento puro (teoria), tal como as matemáticas, mas Aristóteles considera que há também as ciências práticas, tendo como objetivo a ação (práxis), a ação justa, o bem” (PRADEAU, p. 54). Chalita é mais completo que Berti nesse quesito, nos explicando com mais exatidão a divisão taxonômica que Aristóteles faz das ciências: “Ciências técnicas – são aquelas relacionadas com a produção de objetos ou a obtenção de resultados úteis ou estéticos [...]. Ciências teoréticas – Essas ciências têm fim em si mesmas, isto é, sua finalidade se concretiza na medida em que o próprio saber é produzido [...]. Ciências práticas – nesse caso, a finalidade buscada é o aperfeiçoamento do seu agente, isto é, do homem. A aplicação dessas ciências, segundo Aristóteles, leva o desenvolvimento do ser humano na direção de uma existência melhor. São duas: a ética e a política” (CHALITA, p. 64-65).
Finalmente chegamos à Ética de Aristóteles. Claro, semelhante a Platão, ela também decorre, principalmente, da antropologia filosófica já vista, essencialmente, alhures. Aristóteles está plenamente cônscio de que está caminhando em outro tipo de atividade teórica, ou seja, atividade prática, como nota Berti: “A física e a ‘filosofia primeira’ são ciências ‘teóricas’, pois elas têm como fim o conhecimento puro (teoria), tal como as matemáticas, mas Aristóteles considera que há também as ciências práticas, tendo como objetivo a ação (práxis), a ação justa, o bem” (PRADEAU, p. 54). Chalita é mais completo que Berti nesse quesito, nos explicando com mais exatidão a divisão taxonômica que Aristóteles faz das ciências: “Ciências técnicas – são aquelas relacionadas com a produção de objetos ou a obtenção de resultados úteis ou estéticos [...]. Ciências teoréticas – Essas ciências têm fim em si mesmas, isto é, sua finalidade se concretiza na medida em que o próprio saber é produzido [...]. Ciências práticas – nesse caso, a finalidade buscada é o aperfeiçoamento do seu agente, isto é, do homem. A aplicação dessas ciências, segundo Aristóteles, leva o desenvolvimento do ser humano na direção de uma existência melhor. São duas: a ética e a política” (CHALITA, p. 64-65).
Isso mesmo. Tal como Platão, a
Política e a Ética, em Aristóteles, estão intimamente vinculadas. Além de serem
parte da mesma ciência, a ciência prática, há uma simbiose entre o bem do
indivíduo e o bem público: “Como o bem de um indivíduo é uma parte do bem da
cidade (polis), a ciência – ou filosofia – prática que abrange todas elas é a
‘ciência política’, apresentada, uma parte, nas Éticas (a Nicômaco e a Eudemo),
tendo como objeto aqui o bem do indivíduo, e outra parte na Política, tendo
como objeto aqui o bem da família e da cidade. A ciência daquilo que é o bem
para a família se chama também ciência econômica (de oikia, ‘casa’ ou
‘família’), mas a obra consagrada a este objeto no corpus aristoelicum, ou seja,
a Economia, é provavelmente apócrifa” (PRADEAU, p. 54). Berti, pois, nos conta
de uma terceira doutrina prática, a ‘Economia’, e isso sem mencionar a
‘Estética’. Iremos discutir todos esses ‘locos’ aristotélicos de forma
particularizada. Entretanto, não é possível desassociá-los completamente.
Portanto, na porção destinada a um assunto, volta e meia, teremos de mencionar
outro.
Gabriel Chalita é quem mais
argumenta de forma a sintetizar ética e política, ao passo que Ronald Nash,
completíssimo na Ética, nem mesmo menciona a Política do estagirita. Para se
ter uma noção do conceito engendrado por Chalita, tomemos esta citação: “O
filósofo definia a ética como a ciência que trata do caráter e da conduta dos
indivíduos, e a política como os estudos que regem a existência dos homens
vivendo numa comunidade auto-suficiente, no caso, a pólis. A doutrina
aristotélica afirma que as duas são inseparáveis. Assim, a perfeição da
personalidade individual (que se mostra através da honestidade, da honra, do
respeito ao próximo, em suma, da virtude) é a finalidade almejada pela vida
comunitária e pelas leis” (CHALITA, p. 65). Ou seja, o todo é composto por
partes, e o bom andamento das partes garante o bem estar do todo. Podemos,
também, partir de iniciativas voltadas para o todo em prol de atingir os
particulares. Essa será a diferença entre o estudo que faremos das ciências
práticas de Aristóteles. Nesta porção de agora iremos partir do particular para
o todo para, na cessão destinada à Política e Economia, concebermos a proposta
‘de cima para baixo’.
A
FELICIDADE
A ética de Aristóteles começa
assim: “Aristóteles começa observando que toda ação humana é dirigida a um fim
ou alvo. [...] Aristóteles questiona se podemos descobrir um único alvo comum a
todos os seres humanos [...] Aristóteles conclui que sim e identifica esse bem
supremo como sendo a felicidade” (NASH, p. 123). Certo, o objetivo, no final
das contas, é ser feliz. Ética, pois, longe de ser concebida como regrinhas do
certo e errado, é vista como o que se deve fazer para ser feliz. Toda ação
humana visa um fim, e este fim é a felicidade. Este é o bem supremo. Parece um
tanto quanto utilitarista, não podemos negar.
De todos os comentaristas
consultados, Gaarder é o mais feliz no seguinte parágrafo, onde ele sintetiza o
todo da ética de Aristóteles, e o que iremos desenvolver no decorrer da
dissertação: “... o homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todas as
suas capacidades e possibilidades. Aristóteles acreditava em três formas de
felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfação.
A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livres, responsável. E a
terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo. Aristóteles
sublinha o fato de que é preciso integrar essas três formas a fim de que o
homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e
qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele disse que
a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral – e portanto tão
lacunosa – quanto a vida de outra que só usa a cabeça” (GAARDER, p. 131). Temos
de destacar o conceito da integralidade. O homem só é feliz quando é
inteiramente feliz, tanto no sentido temporal quanto no sentido da extensão de
áreas alcançadas. É de Adler que pegamos essa observação: “A felicidade, como
diz Aristóteles, é a qualidade de uma vida inteira, e ele diz ‘inteira’ não só
no sentido temporal, como também no sentido de todos os aspectos pelos quais se
pode enxergar uma vida. O homem feliz é alguém, como diríamos hoje, que é bem
resolvido em tudo – e permanece assim ao longo de sua vida” (ADLER, p. 293).
Podemos resumir o conceito da seguinte forma: para que o homem seja feliz ele
deve estar realizado intelectual, corporal e moralmente. Vamos expandir o
conceito e acompanhar toda a discussão em torno da questão. Assim, Durant, com
a competência peculiar nos assuntos éticos, determina: “Ele [Aristóteles] é
realisticamente simples em sua ética. [...] Aristóteles começa reconhecendo
francamente que o objetivo da vida não é a bondade pela bondade, mas a
felicidade. ‘Porque escolhemos a felicidade por ela mesma, e nunca com vista a
qualquer coisa além dela; ao passo que escolhemos a honra, o prazer, o
intelecto (...) porque acreditamos que através dessas coisas seremos felizes’
[ARISTÓTELES apud DURANT]” (DURANT, p. 75).
AS
CIÊNCIAS E A REALIZAÇÃO PESSOAL
Enrico Berti avança um pouco
mais: “Para Aristóteles, o bem supremo, tanto para o indivíduo quanto para a
cidade, é a felicidade [...], ela se define pela realização, da melhor maneira
possível, das capacidades próprias do homem, que as exerce com virtude [...],
em outras palavras, em seu mais alto nível. Estas virtudes são dianoéticas e
éticas, visto que, de fato, o homem não é somente feito de razão (dianoia), mas
possui também outras capacidades que forma seu caráter (ethos), quando são
realizadas em seu melhor nível” (PRADEAU, p. 54). O que Berti está nos
ensinando, em outras palavras, é o seguinte. O homem é feliz ao realizar suas
potencialidades particulares, singulares, da melhor maneira possível, i. é, de
maneira virtuosa. Há, entretanto, dois tipos de virtudes, dois gêneros
diferentes. Um tipo de virtude, dianoética, diz respeito às virtudes da razão;
a outra diz respeito às virtudes morais. Ao que parece, Aristóteles já está
concebendo o homem essencialmente não só racional como moral. Nash, embora já
vá antecipar alguns temas, torna a coisa muito mais clara: “Aristóteles nada
diz sobre lei moral, mandamentos, e suas relações com Deus. Antes, Aristóteles
focaliza os traços humanos de caráter, disposições para se comportar de certas
maneiras que ele discute em termos de virtude. [...] No livro 2 de Ética a
Nicômaco, Aristóteles distingue dois tipos de virtude: moral e intelectual.
Estas são virtudes ou excelências de diferentes partes da alma. [...]. Uma
parte de nós está preocupada primariamente com o pensamento e com a aquisição
de conhecimento. Outra parte de nós está preocupada em fazer aquilo que nossa
razão requer que façamos, com escolha e volição. Virtudes morais e intelectuais
são adquiridas de maneira diferentes. A virtude moral é adquirida por meio de
hábitos, enquanto a virtude intelectual é adquirida por meio do ensino” (NASH,
p. 124).
Berti, então, dá mais um
passo, extremamente sagaz, aliás: “As virtudes dianoéticas são a perfeição da
razão ‘científica’ (ou teórica), quer dizer, a sabedoria [...], que une o
intelecto [...], como conhecimento dos princípios, e a ciência [...], como
capacidade de demonstrar a partir dos princípios elas compreendem também a
perfeição da razão prática e ‘calculadora’, ou a prudência [...], capacidade de
decidir justamente, de escolher a boa maneira de agir, para si mesmo, para sua
família e para sua cidade. A prudência é superior à arte [...], considerada
como capacidade de produzir bens, porque a ação é superior à produção [...], a
finalidade da produção não se encontra nela, mas no objeto produzido. No
entanto, a prudência é inferior à sabedoria, que é a virtude da melhor parte do
homem; para alcançar a sabedoria, é então a prudência que indica quais ações
devem ser praticadas e quais devem ser excluídas” (PRADEAU, p. 54-55). Berti
está fazendo um balanço, uma consideração de valor entre as três classes de
ciências que Aristóteles define. Para ele, acima de todas, reina as ciências
teóricas. É da ciência teórica, que inclui o conhecimento do mundo e dos
princípios da lógica, bem como das verdades auto-evidentes, que surge a
capacidade de fazer avaliações morais, de compreender as virtudes, e, assim,
decidir o que é bom para nós, para nossa família e para o Estado. Doravante
veremos isso de maneira mais expandida. No fim, a prudência, ou a competência
das virtudes morais, são superiores às ciências técnicas que não têm fim em si
mesmas.
Vale a pena, também, destacar
que há, também, uma simbiose entre a prudência e a sabedoria. É a sabedoria, ou
ciência teórica, que outorga capacidade para a decisão justa, a prudência. Mas
a prudência é que elege a sabedoria o bem mais próprio para se perseguir.
Bom, voltemos a um tema
elencado acima. A questão da felicidade e o fim em si mesmo. Foi dito que as
artes, ou ciências técnicas não podem dar felicidade porque não são um fim em
si mesmo. Isso nos remete a um conceito um pouco mais trabalhado de
‘felicidade’. Já sabemos, de antemão, que a felicidade é encontrada na plena
realização do homem. Mas esse não é um ponto pacífico, como irá nos aponta
Berti: “Alguns especialistas consideram que Aristóteles limita a felicidade à
vida teórica; outros sustentam que ele aí inclui a prática de todas as
virtudes” (PRADEAU, p. 55). Bom, vamos compreender o que são as demais virtudes
primeiro, antes de compreender o que seria a ‘felicidade intelectual’.
A
REALIZAÇÃO MORAL
Aristóteles está tentando
definir as virtudes, conceber o que é bom e, para isso, ele propõe o inovador*
conceito do ‘meio termo justo’. Percebam que aqui temos a discussão ética de
viés epistemológico. Gaarder se expressa, aqui, com muita clareza: “Também no
que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um ‘meio-termo de
ouro’. Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas corajosos. (Coragem de
menos significa covardia e coragem demais significa audácia). Também não
devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas generosos. (Generosidade de
menos é avareza e generosidade demais é extravagância)” (GAARDER, p. 131). O
equilíbrio é buscado, pois, em tudo. Até mesmo nas coisas relacionadas à saúde:
“O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais
também o é” (GAARDER, p. 131). O mesmo Gaarder nos lembra que esse conceito
está intimamente ligado à medicina grega vigente: “A Ética de Platão e de
Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da
moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou ‘harmônicas’ (GAARDER, p.
132).
Percebam que é a razão que
distingue e identifica as virtudes éticas, como nota Berti: “As virtudes éticas
se acham também no justo centro entre duas faltas opostas, determinado pela
razão” (PRADEAU, p. 54). Durant é notadamente elucidativo nesse momento.
Vejamos como ele nota que a felicidade, em última instância, depende da
competência filosófica, da razão: “A principal condição para a felicidade,
então, excluídos certos pré-requisitos físicos, é a vida da razão. [...] A
virtude, ou melhor, a excelência, irá depender de um julgamento claro,
autocontrole, simetria de desejos, mestria dos meios [...]. há um caminho até
ela, um guia que leva à excelência, que pode poupar muitos desvios e demoras: é
o caminho do meio, o meio-termo justo. As qualidade do caráter podem ser
dispostas em tríades, em cada uma das quais a primeira e a última qualidades
serão extremos e vícios, e a qualidade do meio, uma virtude ou uma excelência”
(DURANT, p. 75). Embora as virtudes morais devam ser exercidas em alto nível, o
enfoque de Aristóteles está no exercício filosófico por excelência. É o
exercício filosófico que irá determinar os caminhos do andar virtuoso, a saber,
identificar o meio termo-justo. Durant também está ciente de que determinar e
identificar o meio-termo de ouro não é tarefa das mais fáceis. Muitas vezes
demanda um intelecto treinado e capaz: “O meio-termo justo, entretanto, não é,
como a média matemática, uma média exata de dois extremos que podem ser
calculados com precisão; flutua com as circunstâncias colaterais de cada
situação e só se revela à razão madura e flexível” (DURANT, p. 75).
Aristóteles, no entanto, nos
adverte que no ato de identificação pode encontrar alguns embargos: “A
juventude é a idade dos extremos [...] A grande dificuldade da juventude (e de
muitos dos mais velhos) é sair de um dos extremos sem cair no opostos. [...]
Àqueles que estiverem conscientemente em um dos extremos darão o nome de
virtude não ao meio, mas ao extremo oposto. À vezes, isso é bom; porque se estivermos
cônscios de que erramos em um dos extremos, ‘devemos visar ao outro e, assim,
talvez possamos alcançar a posição intermediárias [...]’” [ARISTÓTELES apud
DURANT]” (DURANT, p. 76). Assim, um jovem (às vezes, até mesmo um adulto)
completamente avarento, cônscio de sua culpa moral, pode julgar que, na
verdade, a verdadeira virtude esteja na liberalidade desmedida, na
extravagância. Aristóteles concebe que isso pode ser benéfico se, na tentativa
de buscarmos o ‘lado oposto’ conseguirmos atingir o ‘meio’. Durant amplia a
discussão falando dos extremistas inconscientes, que não percebem estar fora da
virtude: “Mas os extremistas inconscientes consideram o meio-termo justo como o
maior dos vícios; eles escorraçam um para outro o homem que estiver na posição
intermediária” (DURANT, p. 76). Talvez o conceba como um hipócrita, alguém
indeciso, ou algo do tipo. Seja como for, tanto o extremista inconsciente
quanto o consciente idealizam equivocadamente a virtude, ensina Aristóteles.
Ela está no equilíbrio. Temos de nos lembrar que Aristóteles concebe o bem em
termos utilitários, ou seja, o que é bom é o que gera felicidade.
Notemos que Aristóteles
outorga um valor objetivo à moral a ponto de considerar algumas ações realmente
imorais: “Algumas ações são sempre erradas. Um exemplo que ele dá é o do
adultério. Em tais casos, não há meio áureo” (NASH, p. 125). Não podemos
transitar entre fidelidade e infidelidade. Talvez o meio termo justo, aqui,
seria entre a paixão idólatra, à lá a personagem Werther, de Goethe, e a
ausência de consideração, o desprezo, que geraria a infidelidade. Vejam como
não é tarefa fácil, ao mesmo tempo que é estimulante, identificar o ‘meio
áureo’!
Pois bem, uma coisa é saber o
que é a virtude, outra é ser virtuoso. Para isso, Aristóteles elabora noções
bem pontuais. Pondé pode resumir o conceito para nós: “A chamada ética das
virtudes de Aristóteles pressupõe que a prática das virtudes é como tocar um
instrumento musical: quanto mais se pratica, mais virtuoso se fica” (PONDÉ, p.
38). Isso mesmo, é pela prática das virtudes que nos tornamos virtuosos. Durant
assim se expressa sobre o tema: “A excelência é uma arte obtida com o
treinamento e o hábito: não agimos corretamente porque temos virtude ou
excelência, mas temos porque agimos corretamente [...] nós somos aquilo que
fizemos repetidas vezes” (DURANT, p. 75-76). Ou seja, tornamo-nos virtuosos
porque praticamos as virtudes. A proposição contrária é, para Aristóteles,
falsa, ou seja, não agimos corretamente porque somos bons, mas somos bons (ou
melhor, tornamo-nos bons) pela prática do bem. É como se a prática fosse
amoldando nosso caráter. Já que precisamos praticar as virtudes para
tornarmo-nos bons, o Estagirita parece afirmar, tacitamente, que somos
naturalmente maus.
Nash complementa o conceito:
“Pessoas verdadeiramente virtuosas no sentido moral, ao longo do tempo,
desenvolvem certos traços de caráter ou disposições. [...] Se repetirmos certos
tipos de conduta com suficiente frequência, torna-se fácil exercê-los. Somente
quando a conduta de uma pessoa flui de uma disposição fixa e constante podemos
considera-la moralmente virtuosa” (NASH, p. 124). Percebam a novidade. Ao
praticarmos uma virtude não estaremos, ainda, sendo virtuosos. Somente quando
aquela prática nos for natural é que poderemos considera-la virtuosa. Antes que
alguém diga ter encontrado Aristóteles em contradição, o mesmo Nash o corrige:
“Aristóteles parece envolvido em uma contradição. Devemos realizar atos
virtuosos a fim de estabelecer uma disposição virtuosa. Mas não podemos agir de
maneira virtuosa a menos que nossas ações fluam de uma disposição fixa e
constante. Como, então, poderíamos progredir para a aquisição da disposição
virtuosa que buscamos? Sua resposta: teríamos de realizar atos que parecessem
com os atos virtuosos que realizaríamos se tivéssemos disposição para
realiza-los” (NASH, p. 125).
Para finalizarmos, temos uma
lição de Berti a apresentar. “Entre as virtudes éticas, a justiça tem uma
importante particular, pois ela diz respeito às relações entre as pessoas.
Quando se trata de distribuir as honras ou os poderes, a justiça (o justo
meio), ela deve saber estabelecer uma proporção entre as honras e os méritos
(justiça distributiva); mas quando se trata de trocar as vantagens e as
penalidades, ela deve repartir a atribuição dessas coisas respeitando a
igualdade (justiça comunitária)” (PRADEAU, p. 54). Parece que Aristóteles está
concebendo ‘justiça’ como o fez Platão, ou seja, ela é ‘ter e fazer o que nos
compete’, e isso num contesto de relações sociais. A justiça distributiva
consiste em repartir honras e poderes de acordo com os méritos. Não se dá nem
mais do que se merece e nem menos. Para com as vantagens e penalidades a
justiça deve atribuí-las respeitando a igualdade entre os homens. Ou seja, nada
de partidarismo e parcialidade. Não se pune ou abençoa mais ou menos do que se
merece. Ele, pois, propõe a equidade.
A
REALIZAÇÃO INTELECTUAL
Bom, pensemos em pistas para
compreender o porquê em pensar na vida teórica como a única detentora da real
felicidade. “O que se quer é uma explicação mais clara da natureza da
felicidade e o caminho para chegar até ela. Ele espera encontrar esse caminho perguntando
em que ponto o homem difere de outros seres; e presumindo que a felicidade do
homem estará no pleno funcionamento dessa qualidade especificamente humana.
[...] e como o desenvolvimento dessa faculdade lhe deu a supremacia, assim
também, podemos presumir, a evolução da faculdade lhe dará a realização e a
felicidade” (DURANT, p. 75). Will Durant, pois, expõe com maestria o raciocínio
aristotélico da proeminência da razão. Já vimos que o homem é, essencialmente,
um ente vivo e que, portanto, possui algumas características essenciais
presentes em todos os seres vivos. Ele herda da alma nutritiva o crescimento e
a reprodução. Ele herda da alma animal a locomoção e a percepção. Por fim,
exclusivamente seu, que lhe angaria a proeminência ano reino dos seres vivos,
está sua racionalidade, a centeia divina. Realizá-la ao máximo é, para
Aristóteles, o que, finalmente, fará o homem feliz. É daqui, provavelmente, que
Aristóteles concebe que o homem instintivamente deseja conhecer. É por isso que
Nash é tão taxativo: “Dizer que o bem supremo é a felicidade não nos ajuda
muito, uma vez que as pessoas discordam sobre a natureza da felicidade [...]. E
um dos problemas com essas identificações de felicidade é que todas elas não
são senão meios para um fim. O que quer que seja a felicidade, ela tem de ser
intrinsecamente boa [...] O oposto de um bem intrínseco é um bem instrumental,
algo que seja desejado como meio para um fim. A verdadeira felicidade tem de
ser boa como um fim em si mesma. Por isso, Aristóteles rejeitou o dinheiro como
base para a felicidade. [...] Nada poderá ser o bem supremo se for escolhido em
função de qualquer outra coisa. A felicidade é o bem supremo porque é buscada
em função dela mesma, ela é auto-suficiente e é aquilo que todos os homens almejam.
Não importa o que ela seja, o bem supremo tem de ser auto-suficiente. Isso
significa que ele tem de ser algo a que nada possa ser acrescentado para
torna-lo melhor” (NASH, p. 123). Alguém, a essa altura, poderia dizer que um
homem bom seria alguém realizado. Nash diria que não, pois “tal critério
desclassifica a virtude como a essência da felicidade. É possível para uma
pessoa ser virtuosa, mas, ainda assim, miserável por causa de problemas de
saúde ou de pobreza. É possível acrescentar outras coisas à virtude para
melhorar a qualidade de vida. [...] A eudaemonia tem de estar conectada ao
elemento distintivo da humanidade, a razão. Eudaemonia é agir de acordo com o
bem maior da humanidade, a razão” (NASH, p. 123). Entretanto, nesse caso, o
homem virtuoso estaria dependente mais das realizações ‘corporais’ ou
‘temporais’ do que do intelecto. Isso nos leva à uma nova discussão.
A
REALIZAÇÃO CORPORAL E CARNAL
Aristóteles estava bem ciente
de que o ‘hedonismo’ não era, nem de longe, uma doutrina que poderia trazer
felicidade: “A busca ingênua do prazer é auto-enganadora. [...] O prazer é um
ingrediente da vida boa e é uma parte da vida boa, mas não consiste na
totalidade da vida boa. Usa-se fermento para assar um bolo, mas é impossível
saborear um bolo feito apenas de fermento” (NASH, p. 126-127). Sim, o mero
hedonismo não é capaz de nos fazer felizes. A natureza humana demanda mais. Ela
quer conhecer, entender, compreender. Existe demandas morais a serem
satisfeitas. Mas os prazeres naturais da carne, do corpo, também devem ser
observados com a devida temperança. “Mas o meio-termo justo, diz o nosso
prático filósofo, não é todo o segredo da felicidade. Devemos ter, também, um
bom grau de bens terrenos” (DURANT, p. 76). É preciso, como Gaarder observa lá
atrás, além da vida virtuosa, ter o que comer, beber, vestir. O abandono cínico
da vida não parece, ao estagirita, o melhor caminho. Além de ter o que comer,
beber e onde dormir, há outros auxílios à felicidade. “O mais nobre desses
auxílios externos à felicidade é a amizade. De fato, a amizade é mais
necessário aos felizes do que aos infelizes; porque a felicidade é multiplicada
quando é compartilhada. [...] No entanto, amizade dá a entender poucos amigos,
e não muitos. [...] Uma bela amizade requer duração, e não intensidade
inconstante. [...] E amizade requer igualdade; porque a gratidão lhe dá, quando
muito, uma base escorregadia” (DURANT, p.
77). Berti amplia o conceito: “Na realidade, a vida teórica não seria
possível sem as outras virtudes. Além disso, Aristóteles julga que a pessoa que
leva uma vida assim, ou seja, o filósofo, deve também mostrar aos políticos a
maneira de realizar o bem para a cidade e definir para ela a melhor
constituição; e isto confirma que somente este tipo de vida engloba o conjunto
das virtudes” (PRADEAU, p. 55).
DE VOLTA À
REALIZAÇÃO INTELECTUAL
Mas é o mesmo filósofo,
Durant, que nos devolve à vida do intelecto e da sabedoria: “E no entanto,
embora os bens externos e os relacionamentos sejam necessários à felicidade, a
essência desta continua dentro de nós, no conhecimento perfeito e na clareza da
alma. O certo é que o prazer dos sentidos não é o caminho. [...] Tampouco uma
carreira política pode ser o caminho, porque nela caminhamos sujeitos aos
caprichos do povo; e nada é mais volúvel do que o povo. Não, felicidade deve
ser um prazer da mente; e só podemos confiar nela quando ela resultar da busca
ou da captura da verdade” (DURANT, p. 77). Embora o prazer seja decorrente da
vida feliz, pois não poderíamos conceber uma vida feliz desprovida de prazeres,
e haja outras virtudes e auxílios, é, essencialmente, o exercer virtuoso, ou
seja, pleno, da singularidade humana, a razão, que lhe pode, finalmente, fazer
feliz, concebe o filósofo macedônico: “...a felicidade abrange assim o prazer;
este não é o bem supremo, mas, sendo a felicidade definida como o exercício da
atividade perfeita, o prazer decorre de sua realização; ele abrange também a
amizade, que é ela própria uma virtude, quando este sentimento aproxima pessoas
de qualidade. Porém, mesmo na hipótese de que fossem reunidas todas as
qualidades, às quais se acrescentariam algumas vantagens, como a saúde, uma
certa comodidade, um físico agradável, uma boa família e bons amigos,
Aristóteles considera que a felicidade reside essencialmente na vida teórica,
quer dizer, numa vida totalmente consagrada à pesquisa, ao estudo, às
atividades que têm como fim o conhecimento. Este tipo de vida, de fato, é uma
finalidade em si; ela é autossuficiente e semelhante àquela vida que levam os
deuses” (PRADEAU, p. 55). Isso mesmo. Já notamos que ‘o motor imóvel’, para
Aristóteles, era um ser autoconsciente que vivia a contemplar-se. Assim, Nash
conclui que a atividade mais elevada possível é a contemplação do próprio Deus!
Nesse sentido, Aristóteles não deixa de elevar-se a um status um tanto quanto
religioso. Portanto, Nash conclui: “Felicidade não é dinheiro, sucesso ou
prazer. Aristóteles elabora a felicidade em termos de contemplação, uma
atividade consoante com a função mais elevada do homem (razão), a qual é
intrinsecamente boa e auto-suficiente. Contemplação é a única atividade que
satisfaz todos esses critérios” (NASH, p. 126).
A ORIGEM
DA FILOSOFIA
“A filosofia, segundo
Aristóteles, nasce do espanto” (ADLER, p. 277). Acreditamos que já granjeamos
boas possibilidades de explicações, baseado no que já compreendemos sobre
Aristóteles, para essa proposição aristotélica.
Primeiro, notamos que a
atividade racional humana consiste na abstração e categorização das coisas,
como uma atividade organizadora em prol da compreensão do mundo. Agora, notem a
seguinte observação de Gaarder: “Quando encontramos uma coisa que não
conseguimos classificar, levamos um verdadeiro choque [...] se você se depara
com uma pequena coisa e não sabe dizer ao certo se esta coisa pertence ao reino
animal, vegetal ou mineral, acho que você não ousaria tocá-la” (GAARDER, p.
128). Nesse sentido, diante do espanto, somos obrigados a pesquisar,
investigar, raciocinar, abstrair mais e mais, para conseguirmos explicar,
classificar, compreender determinado ente. Eis uma boa explicação de como a
filosofia nasceria na alma inquieta, espantada ante o incompreendido.
Mas, enquanto a ciência busca
o ‘o quê’ das coisas, a filosofia busca os ‘porquês’. Berti está ciente disso:.
Nesse sentido, a busca pelas causas seria a tarefa da filosofia. Diante da
inquietação que um fenômeno não compreendi nos causa, começamos a investigar.
Essa seria, também, perfeitamente uma explicação para essa interessante
proposição do filósofo de Estagira. Ficamos intrigados com o mundo à nossa
volta, e ansiamos por explicações. Esse anseio, como notamos, é derivado de
nosso anseio por conhecimento. Não é apenas conhecer para sobreviver ou viver
melhor, como alguém poderia sugerir. Mesmo alguém plenamente satisfeito,
materialmente falando, em sãs condições, tem curiosidade, anseia por saber. O
mundo à nossa volta nos intriga. Nada mais natural, diria Aristóteles.
Acreditamos ser esse o sentido das proposições no capítulo um da célebre obra
‘Ortodoxia’ de Chesterton: “Esse pelo menos me parece ser o principal problema
dos filósofos e, de certo modo, é o principal problema deste livro. Como
podemos imaginar ficarmos ao esmo tempo assombrados com o mundo e, mesmo assim,
nele nos sentirmos em casa? [...] Precisamos ver o mundo de tal modo que nele se combine uma
idéia de deslumbramento com uma idéia de acolhimento. Precisamos nos sentir
felizes nessa terra deslumbrante sem nunca nos sentir meramente confortáveis”
(CHESTERTON, p. 19-20). Eis, diria Aristóteles, a grande sacada da filosofia.
O HOMEM
IDEAL
Queremos, pois, saber como
seria o homem ideal, plenamente virtuoso e, portanto, perfeitamente feliz?
Aristóteles mesmo o descreve e, como Durant nota, não se trata de um mero
metafísico: “Ele não se expõe desnecessariamente ao perigo, uma vez que são
poucas as coisas com que se preocupa o suficiente; mas está disposto, nas
grandes crises, a dar até a vida, sabendo que em certas condições não vale a
pena viver. Está disposto a servir aos homens, embora se envergonhe quando o
servem. [...] Ele não toma parte em manifestações públicas (...) É franco
quanto a suas antipatias e preferências. [...] Nunca se deixa tomar de
admiração, já que a seus olhos nada é excelente. Não consegue viver com
complacência para com terceiros, a menos que se trate de um amigo; a
complacência é a característica de um escravo (...) Nunca tem maldade e sempre
esquece e passa por cima das injustiças. (...) Não gosta de falar. Não fala mal
dos outros, mesmo de seus inimigos, a menos que seja com eles mesmos. [...] Ele
suporta os acidentes da vida com dignidade e graça, tirando o máximo proveito
de suas circunstância, como um habilidoso general conduz suas limitadas forças
com toda a estratégia de guerra (...). Ele é o melhor amigo de si mesmo e se
delicia com a privacidade, ao passo que o homem sem virtude ou capacidade
alguma é o pior inimigo de si mesmo e tem medo da solidão” (ARISTÓTELES apud
DURANT, p. 77-78).
ESTÉTICA
Aristóteles também dá sua
contribuição para a ‘estética’, a ‘filosofia da arte’. Durant diz que ele “...
quase cria o estudo da estética, a teoria da beleza e da arte” (DURANT, p. 74),
mas a nós parece haver uma teoria completa sobre o assunto. Sobre a origem da
arte no coração humano, Durant informa: “A criação artística, diz Aristóteles,
nasce do impulso formativo e da ânsia pela expressão emocional” (DURANT, p.
74). Na estética incluímos a música, a escultura, a pintura e o teatro, ou
seja, tudo aquilo que podemos predicar como belo e que, por isso, envolve
nossas emoções.
Berti nos diz que, “para
Aristóteles, a poesia [a arte] é mimesis, o que não significa imitação passiva,
mas representação, capacidade de fazer viver uma ficção como se ela fosse real”
(PRADEAU, p. 57). Ou seja, através da ‘imitação’ desperta-se os sentimentos que
aquela realidade evocaria. Durant completa: “Essencialmente, a forma de arte é
uma imitação da realidade [...] Existe no homem um prazer na imitação que
aparentemente falta aos animais inferiores. No entanto, o objetivo da arte é
representar não a aparência externa das coisas, mas o seu significado interno;
porque este, e não o maneirismo e o detalhe externo, é a realidade delas”
(DURANT, p. 74). Busca-se, pois, na essência das coisas, aquilo que nos
desperta as emoções.
A importância e pertinência
do estudo da estética, para nós, nesse momento, é o fato de Aristóteles
considera-la mui potente na outorga de prazeres: “A mais nobre das artes fala
tanto ao intelecto como aos sentimentos [...] e esse prazer intelectual é a
mais alta forma de prazer que um homem pode alcançar. Daí, uma obra de arte
deve visar à forma e, acima de tudo, à unidade, que é a espinha dorsal da
estrutura e o foco da forma” (DURANT, p. 74).
Já estudamos o teatro grego
outrora. Vimos que ele continha histórias que lidavam com os temas da liberdade
do homem e seu destino*. Aqui, Berti irá nos dar mais algumas informações sobre
o teatro grego, segundo a análise do Estagirita, para quem quer diferenciar
tragédia de drama e de comédia: “Ela pode tomar como objeto personagens nobres
e, nesse caso, trata-se de poesia épica ou trágica; no caso de personagens não
nobres, trata-se de poesia cômica. A poesia épica e a tragédia se diferenciam
da seguinte maneira: a primeira somente fornece a narração dos fatos, ao passo
que a segunda os representa de forma dramática. Esta última característica
remete assim à comédia. A Poética dá uma célebre definição da tragédia, dizendo
que ela consiste na ‘imitação de uma ação que forma um todo, é grave e
apresenta uma certe nobreza, segundo uma forma não narrativa, mas dramática, e
que, pela via da compaixão e do terror, permite a purificação das paixões
semelhantes’ [...].Na Poética, Aristóteles ilustra também os outros elementos
da tragédia e da poesia épica (catástrofes, casos imprevistos, revelações,
intrigas e desenlaces, caracteres etc.), mas ele não estuda tão profundamente a
comédia, talvez porque o segundo livro da obra – hoje perdido – lhe fora
consagrado” (PRADEAU, p. 57).
Foi mencionado, na citação de
Berti, o conceito de ‘purificação’ (catarse) associada à arte, e é
particularmente aqui que Aristóteles concebe sua importância. O mesmo Berti nos
informa: “O conceito mais importante aqui é a ideia de ‘purificação’
(katharsis), que parece libertar as paixões, tais como a compaixão e o terror
dos elementos dolorosos que estes sentimentos apresentam na vida real, fazendo
de maneira que eles se tornem agradáveis” (PRADEAU, p. 57). É possível
vivenciar as emoções evocadas numa situação real sem, com isso, viver essas
desagradáveis situações. É possível, inclusive, que esses sentimentos,
desassociados da experiência pessoal que transmite os sentimentos, ou seja,
oriundos de uma experiência mediata, sejam agradáveis. Durant expõe a arte como
uma possibilidade de vasão de sentimentos reprimidos: “Acima de tudo, porém, a
função da arte é catarse, purificação: emoções acumuladas em nós sob a pressão
das restrições sociais, e sujeitas a uma vazão súbita sob a forma de uma ação
anti-social e destruidora, são disparadas e soltas na inofensiva forma da
emoção teatral; por isso a tragédia, ‘através da piedade e do medo, realiza a
purgação adequada dessas emoções’ [...] [Aristóteles] apresentou uma sugestão
inesgotavelmente fértil na compreensão do poder quase místico da arte” (DURANT,
p. 74). Temos que lembrar que o próprio Platão já sugeria o poder educador e
regulador de caráter da música, determinando-a para a formação do jovem da
República. É pois, interessante, nesse sentido, notar o que observa Berti: “O
prazer associado a esta imitação é, como sempre para Aristóteles, o prazer do
conhecer, quer dizer, do aprender. Enquanto a catarse produzida pelo canto
educa os jovens nas virtudes éticas (como está dito na Política), a catarse
produzida pela tragédia educa os adultos nas virtudes dianoéticas, quer dizer,
na prudência” (PRADEAU, p. 57). Vejam só, a arte, nos jovens, produz virtudes
éticas, morais, como propôs Platão; ao passo que nos adultos produz prudência,
ou seja, a capacidade de escolher o que é bom para si, para sua família e para
o Estado, talvez, justamente, pelo montante maior de experiências para associar
à experiência imitada na arte.
Vejam o que Berti ainda nos
informa sobre as reflexões estéticas de Aristóteles: “Se a catarse é a
finalidade inclusive da tragédia, [...], se deve propor fatos que podem se
reproduzir, seja provavelmente, seja necessariamente, quer dizer, mais
frequentemente e sempre. É por isso que Aristóteles diz que a poesia é mais
‘filosófica’ do que a história, sendo mais capaz de conduzir para o
conhecimento; de fato, a história faz a narração de casos particulares,
enquanto que a poesia, representado o provável, faz conhecer o universal”
(PRADEAU, p. 57). A poesia tange eventos de aplicação universal, como as
parábolas de Jesus. Há lições aplicáveis a todas as épocas. Já a história está
estritamente vinculada a um momento, refletia o estagirita. Mortimer Adler, um
dos grandes especialistas em Aristóteles no século XX, faz a mesma observação,
entretanto, a contesta no final: “O que ele queria dizer era que a poesia é
mais geral, mais universal. Um bom poema é fiel não apenas a seu tempo e lugar,
mas a todos os tempos e lugares. Ele tem sentido e força para todos os homens.
A história não é tão universal assim. Ela está relacionada aos acontecimentos
de um modo como a poesia não está. Mas qualquer bom livro de história também é
universal” (ADLER, p. 249). Nesta parte do livro, Adler vem com uma proposta
pragmática da história, como se devêssemos interpretá-la como se interpreta o
teatro: colhendo as lições.
Seja como for, temos a noção
clara de que a estética está vinculada não só com a obtenção direta da
felicidade, outorgando-nos prazer; como está vinculada indiretamente, amoldando
nosso caráter e concedendo-nos prudência. É, pois, fator indispensável na
filosofia aristotélica.
CRÍTICAS
Algumas críticas poderiam ser
engendradas (e de fato o foram, na história da filosofia). É mister que citemos
as que já descobrimos para que nossas considerações sobre a ética aristotélica
seja mais completa.
Primeiramente, Durant, na
seção que ele reserva para criticar mesmo, nos diz o seguinte: “A ética de
Aristóteles é uma ramificação de sua lógica: a vida ideal é como um silogismo
adequado. Ele nos dá um manual de boas maneiras e não um estímulo ao
aperfeiçoamento” (DURANT, p. 86). Bom, não estamos perfeitamente de acordo com
isso. Embora, como vimos, o filósofo de Estagira nos diga que a plena
realização está na atividade intelectual, e é essa mesma que nos ajuda a
identificar as virtudes, ele também nos diz que a realização moral, (a ‘honra’,
como coloca o próprio Durant), é indispensável para a felicidade completa, bem
como a realização ‘temporal’. Portanto, ele estimula a prática das virtudes
para que nos tornemos bons e, com isso, mais felizes.
Durant segue com suas
críticas dizendo que Aristóteles “cumpriu com rigor demasiado a ordem délfica
de evitar o excesso: está tão ansioso por cortar os extremos, que no final não
sobra coisa alguma” (DURANT, p. 86). Foi o próprio Durant, como observamos,
quem notou que a ‘arte’ e ‘ciência’ de definir o ‘meio-termo justo’ demanda
muito treino e competência. Alguém que ‘tirasse tanto’ a ponto de não haver
nada, retrucaria o Estagirita, é alguém que não sabe ‘aparar’ de maneira
correta.
Num interessantíssimo e breve
artigo, intitulado ‘Desejo de conhecer’, o filósofo Olavo de Carvalho nota e
refuta uma comum objeção à essa afirmação de Aristóteles. Vemos em muitos
lugares o desinteresse para com o conhecimento, particularmente no nosso
Brasil. Olavo nos diz, então, o seguinte: “Precisei viajar um bocado pelo mundo
para me dar conta de que Aristóteles se referia à natureza humana em geral e
não à cabeça dos brasileiros” e, adiante “Longe do Brasil, encontrei
enfermeirinhas, caixeiros de loja e operários da construção civil que, ao
saber-me autor de livros de filosofia, arregalavam dois olhos de curiosidade,
me crivavam de perguntas e me ouviam com atenção devota que se daria a um
profeta vindo dos céus” (CARVALHO, p. 37-38). Qual é o problema então? É que
nós, embora humanos, podemos negligenciar nossas potencialidades e, enganados,
projetar ídolos como se fossem satisfazer-nos. Os brasileiros, reclama o
filósofo, fizeram isso. Por fim,
conclui: “Aristóteles tinha razão: o desejo de conhecer é inato. O Brasil é que
havia falhado em desenvolver nos seus filhos a consciência da natureza
humana...” (CARVALHO, p. 38).
Talvez a crítica mais sagaz
esteja já espalhada durante toda a exposição sobre Aristóteles. Observamos que
pareceu arbitrária a propriedade da autoconsciência do deus aristotélico. Já
que é uma entidade que move as coisas não de forma direta, mas por ‘atração’,
poderia, muito bem, ser uma força. Mas Aristóteles lhe dá uma consciência, uma
autoconsciência, e uma atividade inerte de autocontemplação. Agora o estagirita
tinha bons motivos para conceber a reflexão filosófica, a satisfação
intelectual, como a maior atividade humana. Ronald Nash surge, mordaz: “É ainda
uma coincidência ingênua que a contemplação [...] ocorra ser a única atividade
à qual Deus se aplique. [...] A verdadeira felicidade consiste em pensar sobre Deus.
E a pessoa com maior probabilidade de atingir a felicidade é um filósofo como
Aristóteles. Tal coincidência talvez seja mais do que uma pessoa pode suportar”
(NASH, p. 126). Assim, pelo menos o argumento de que a atividade intelectual é
superior por ser potência da ‘centelha divina’ no homem é enquadrado como
circular (a atividade mais nobre é o intelecto porque deus isso o faz; deus
deve pensar porque é a atividade mais nobre) ou, pelo menos, arbitrário.
Então o Estagirita tem de
recorrer à experiência subjetiva coletiva e, dela, abstrair o que é essencial
no homem, a saber, a curiosidade, a satisfação no desejo de saber. O homem, por
exemplo, não consegue se satisfazer numa mentira. A mera suspeita de que se
está enganado, ainda que lhe proporcione todo bem estar do mundo, seria um
terror. Apesar de fora do contexto original, vamos citar uma ilustração do
brilhante filósofo James P. Moreland que muito nos favorecerá em termos
elucidativos: “Wonmug era um aluno quieto e sem esperança que estudava física
em uma reconhecida universidade. Ele foi muito mal no primeiro semestre de
aulas. Seu conhecimento de matemática estava no nível de um aluno de quinta
série e ele não tinha a mínima condição de estar estudando física. Certo dia
todos os alunos e professores decidiram pregar uma peça em Wonmug, fazendo-o
pensar que ele era o melhor estudante de física daquela universidade. Quando
ele fazia uma pergunta na classe, mesmo que fosse uma pergunta tola, os
professores e alunos tratavam-na com fascínio, como se fosse uma questão
profundamente importante. Os professores deram a ele ótimas notas em todas as
matérias, quando na verdade ele merecia tirar dois ou três. Wonmug se formou e
começou a fazer pós-graduação na mesma universidade. Os professores desta
instituição enviaram uma carta a todos os físicos do mundo, informando sobre a
brincadeira. Wonmug recebeu seu diploma, conseguiu uma cadeira como docente,
viajava regularmente para a Europa para participar de conferências e
freqüentemente aparecia em revistas como a Super-Interessante e a Veja. A vida
de Wonmug estava carregada de sentimentos de felicidade, respeito e orgulho.
Infelizmente, ele ainda não sabia nada de física. As pessoas odiavam Wonmug e o
ridicularizavam pelas costas, mas Wonmug, sem saber da verdade, estava tão
feliz quanto poderia estar. Você tem inveja de Wonmug? Você deseja essa vida
para os seus filhos? É claro que não. Por quê? Por que a sua sensação de
bem-estar foi construída sobre uma visão de mundo placebo, falsa e vazia”
(MORELAND).
Assim, a sabedoria, arguiria
o filósofo, poderia nos proporcionar a felicidade. Conhecemos por conhecer, sem
objetivo algum além desse, e isso nos basta. Estaríamos satisfeitos se fôssemos
todos filósofos. E este conhecer, engendra o filósofo, culmina na percepção da
causa ulterior, o motor imóvel. Tendo o subsídio das demais virtudes, o
filósofo acredita que pairaríamos no prazer decorrente desse conhecimento,
felizes peremptoriamente. Mas, enquanto concordamos com o Estagirita que não
conseguimos estar satisfeitos enquanto cientes de nossa ignorância, acreditamos
que seu sistema ainda nos deixa ignorantes. Porque o homem não se satisfaz na
ignorância? Essa é a pergunta crucial. Novamente faremos sala para Agostinho e
os agostinianos: acreditamos que somente eles poderão responder à essa questão.
Aristóteles, entretanto, até agora, pareceu-nos o mais próximo de acertar a
questão, ao passo que nos será de grande proveito, também, o ‘eros’ platônico.
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* Durant não a considera tão ‘inovadora’ assim: “É óbvio que essa doutrina do meio-termo justo é a formulação de uma atitude característica que aparece em quase todos os sistemas da filosofia grega. [...] Talvez, como alega Nietzsche, tudo isso fossem tentativas dos gregos para conter a sua própria violência e impulsividade de caráter” (DURANT, p. 76). Entretanto, não percebemos tão claramente assim essa concepção nos outros filósofos. Ao menos a forma de conceber as virtudes através do meio-termo parece-nos bem original em Aristóteles.
* Durant não a considera tão ‘inovadora’ assim: “É óbvio que essa doutrina do meio-termo justo é a formulação de uma atitude característica que aparece em quase todos os sistemas da filosofia grega. [...] Talvez, como alega Nietzsche, tudo isso fossem tentativas dos gregos para conter a sua própria violência e impulsividade de caráter” (DURANT, p. 76). Entretanto, não percebemos tão claramente assim essa concepção nos outros filósofos. Ao menos a forma de conceber as virtudes através do meio-termo parece-nos bem original em Aristóteles.
* Aristóteles, conforme nos
informa Durant, não lida com esse problema de forma conclusiva (o assunto da
imortalidade da alma já foi trabalhado por nós): “os dois problemas cruciais da
psicologia filosófica – a liberdade do arbítrio e a imortalidade da alma – são
deixados na obscuridade e na dúvida. Aristóteles fala, às vezes, como um
determinista: ‘não podemos querer categoricamente ser diferentes do que somos’;
mas em seguida argumenta, contra o determinismo, que podemos escolher o que
seremos, ao escolhermos agora o meio ambiente que irá nos moldar; assim, somos
livres no sentido de que modelamos nosso caráter pela escolha que fazemos de
amigos, livros, ocupações e divertimentos Ele não prevê a pronta resposta do
determinista, de que essas opções formativas são, elas próprias, determinadas
pelo nosso caráter antecedente, e este, afinal, pela hereditariedade não
escolhida e pelo meio ambiente inicial” (DURANT, p. 73).
REFERÊNCIAS
ADLER, Mortimer J; VAN DOREN,
Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro
Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.
BERTI, Enrico. Aristóteles _
PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James
Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de
Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
CARVALHO, Olavo de;
BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para não ser um
idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia.
Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão. 2008, 264p.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
MORELAND, J. P. Evangelismo persuasivo em
uma cultura pluralista. Acessado dia 14/05/2014 em: http://comoviveremos.wordpress.com/2007/03/31/evangelismo-persuasivo-em-uma-cultura-pluralista/.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de
Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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