sábado, 24 de janeiro de 2015

Sobre filosofia e ser filósofo... (Parte 3 -Educação e Signficado Existencial ou resgatando o antigo conceito de vocação).

Parte 2

ERRATA: O texto havia sido publicado sem que as revisões do Misael fossem efetivadas. Foi descuido meu. Mas agora já está tudo certo! Boa leitura! Peço-lhes desculpas.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Este artigo atenderá a algumas demandas diversas. Ele nos ajudará a sistematizar uma explicação muito relevante que temos a respeito de vocação, particularmente da vocação intelectual, a qual somos cobrados muitas vezes para dar. Mas ele também poderá mudar a forma como o leitor concebe sua própria educação, seu modo de olhar para a vida acadêmica, ainda que ele não tenha sido chamado para ser um acadêmico, e como ele encara os estudiosos (como ameaça a seu bem estar ou como heróis da civilização). E, finalmente, para uma aplicação mais particular, tentará tornar clara a nossa decisão por se envolver com um curso das humanas tão pouco rentável como o de Filosofia. Filosofia no Brasil!

Basicamente seguiremos o seguinte roteiro. Primeiro, iremos explorar um pouco o conceito de vocação. Depois, iremos demonstrar a relevância das discussões acadêmicas para mostrar que não se trata de uma atividade sem sentido, ou que seu significado não é subjetivo. Assim, teremos por justificada a vocação acadêmica e seus benefícios (ou malefícios) para a sociedade. Em suma, esperamos mostrar que o intelectual não é alguém distante da sociedade, mas, antes, forma seus alicerces.


VOCAÇÃO E EDUCAÇÃO


Há dois grandes empecilhos que impedem as pessoas de compreenderem o porquê de alguém com competência para cursar um curso mais 'adequado', financeiramente falando, não o faz, mas, ao invés disso, opta por algo como 'filosofia'. O primeiro é a ignorância quanto ao conceito de 'vocação'. O segundo é a falta de conhecimento da importância de um curso como esses. Vamos dar uma olhada no primeiro problema nesta seção. Para esclarecê-lo, vamos evocar o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho que nota algo de exímio valor para nosso labor, no livro 'O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota', mais precisamente no brilhante artigo denominado 'Vocação e Equívocos':


"Se você escreve, ou pinta, ou faz sermões na igreja, ou toca música, ou monta a cavalo, ou tira fotos, ou faz qualquer outra coisa que pareça interessante já deve ter ouvido mil vezes a pergunta: 'Você faz isso por dinheiro ou por prazer?' [...]. O que está omitido na pergunta [...] é a possibilidade de que alguém se dedique de todo o coração a alguma coisa sem ser por necessidade econômica ou por prazer - ou, pior ainda, que continue se dedicando a ela como se fosse a coisa mais importante do mundo mesmo quando só dá prejuízo e dor de cabeça. O que está omitido nessa pergunta [...] é aquilo que se chama vocação" (CARVALHO, p.47).

Essa concepção fútil, claro, alcança a educação. Para as pessoas, em geral, só há essas duas opções. Ou você faz algo por puro prazer, ou porque é rentável e vêem a escolha do curso universitário, ou mesmo ofício, à luz desses critérios. Isso mostra a insignificância que nos metemos, a pobreza de espírito a qual nossa sociedade está inserida. No entanto, Olavo se equivoca ao pensar que esse é um problema tipicamente brasileiro. Francis Schaeffer, após elaborar um panorama completo da decadência da cultura ocidental, fala sobre os porquês de chegarmos a conceber a educação nesse sentido. Schaffer discursa que a pretensão humanista chega, se acompanharmos o desenvolvimento da filosofia, ao ponto em que o homem, a partir de si mesmo, não consegue conceber sentido para a vida, nem formular valores objetivos e, com isso, enredou-se numa situação em que os únicos valores admitidos pelo homem moderno são 'paz pessoal' e 'prosperidade'. Com o primeiro, Schaeffer quer dizer um tipo de descompromisso com todas as coisas e pessoas, bem como imperturbabilidade e liberdade completa para fazer o que bem se entende. 'Prosperidade' é encarada em termos 'materialistas' (eticamente - e não metafisicamente - falando). Afinal, a melhor aposta do humanismo humanista (ou 'secular') é o hedonismo, mui exponenciado quando se tem mais recursos. Em outras palavras, 'já que a vida acaba aqui, temos que 'aproveitá-la' da forma mais intensa possível. Em suma, a crise na educação vai anuir com esses valores, admitidos tacitamente pelo homem comum, pai de família, que só quer o bem para seus filhos. Vale a pena citar as palavras de Schaeffer, falando dos anos 60, com foco no que acontecia na Europa, mas que é facilmente percebido em terras tupiniquins:
"Se algum estudante dos anos 60 perguntasse a seus pais e a outras pessoas 'estudar para quê?', a resposta que frequentemente lhe era dada, se não em palavras ao menos em inferência, era 'ora, porque as estatísticas dizem que uma pessoa com estudo ganha muito mais'. E quando ele perguntava 'ganhar mais para quê?', a resposta era 'para que possa pagar uma faculdade para seu filho'. De acordo com esse tipo de resposta, declarada ou implícita, não existe sentido na vida do homem, e a educação não faz sentido" (SCHAEFFER, p. 145-146).
Percebem o looping? Se a pergunta continuasse: 'E por que pagar faculdade para meus filhos?', a resposta seria: 'para que ganhassem mais' e assim por diante. E são os jovens que mais se incomodam com essa questão porque as questões existenciais ainda não lhes foram solapadas pela ocupação*.
Nesse contexto em que a educação não faz sentido é claro que só sobram as duas alternativas mencionadas por Olavo. Ou alguém se envolveria por puro prazer, ou por que dá dinheiro. Ninguém consegue conceber que poderíamos nos envolver por entendermos que nos enveredamos naquilo por que sentimos que temos esse papel no universo, que devemos desempenhar essa função, em suma, 'vocação'*. Schaeffer e Olavo estão de acordo que o que se perdeu, o que era fundamental e anterior à própria empreita rumo à educação, foi o 'sentido da vida'. Se o todo não faz sentido, muito menos faz suas partes. Se a vida não faz sentido, estudar também não. Temos uma crise existencial que precede a crise educacional. Uma crise filosófica...

É interessante que Craig, pautado no célebre livro de Alan Bloom, 'The Closing of the American Mind', vai ainda mais afundo para observar que as consequências nefastas do pensamento ocidental encontra sua origem no pós-modernismo. Não só a perda de sentido e de valores, mas da própria noção de verdade. "Uma vez que não há nenhuma verdade absoluta, uma vez que tudo é relativo, o propósito da educação não é ensinar a verdade ou conhecer os fatos - pelo contrário, trata-se apenas de adquirir a habilidade necessária para enriquecer, conseguir poder e fama" (CRAIG, p. 11).

Arthur Schopenhauer, famoso filósofo alemão pessimista do século XIX, pode muito nos ajudar em suas elucubrações a respeito desses assuntos. Ele não evoca a noção de vocação, preferindo deter-se na questão do prazer pelos estudos. Não podemos deixar de concordar que o intelectual deve sentir algum prazer no esclarecimento. Sanar suas dúvidas, ampliar seus horizontes, ter uma compreensão mais adequada e abrangente da vida pode ter e, de fato, tem muito valor. A grande validade da citação que fazemos de Schopenhauer destina-se, particularmente, àqueles que não conseguem entender que poderíamos nos envolver com o labor mental sem pensar, primeiramente, em quanto isso nos renderá. Observemos um poucos suas palavras embebedadas de desprezo por quem pensa assim:
"Diletantes, diletantes! - Assim os que exercem uma ciência ou uma arte por amor a ela, por alegria, per il loro diletto [pelo seu deleite], são chamados com desprezo por aqueles que se consagram a tais coisas com vistas ao que ganham, porque seu objeto dileto é o dinheiro que têm a receber. Esse desdém se baseia na sua convicção desprezível de que ninguém se dedicaria seriamente a um assunto se não fosse impelido pela necessidade, pela fome ou por uma avidez semelhante" (SCHOPENHAUER, p. 20-21).
Em certo sentido, Schopenhauer não está em franca oposição a Olavo, visto que o conceito de vocação não exclui nem o prazer e, não necessariamente, visto que pode ocorrer em alguns casos, a remuneração. Aliás, é difícil pensarmos em vocação sem considerarmos que há algum deleite na labuta, na empreita. É claro que tal labuta irá trazer suas dificuldades e obstáculos e muitos deles não seriam vencidos se o indivíduo apenas se deleitasse na tarefa, se não se sentisse vocacionado para tal pois, assim que o prazer cessasse, cessar-se-ia a motivação. O prazer é parte essencial, mas não é o leit motiv. Mas discordamos num ponto de Schopenhauer. Pouco antes da citação anterior ele diz:
"Para a imensa maioria dos eruditos, sua ciência é um meio e não um fim. Desse modo, nunca chegarão a realizar nada de grandioso, porque para tanto seria preciso que tivessem o saber como meta, e que todo o resto, mesmo sua própria existência, fosse apenas um meio Pois tudo o que se realiza em função de outra coisa é feito apenas de maneria parcial, e a verdadeira excelência só pode ser alcançada, em obras de todos os gêneros, quando elas foram produzidas em função de si mesmas e não como meios para fins ulteriores" (SCHOPENHAUER, p. 19).
Claro, evidentemente ele tem razão quanto à competência de quem se envolve nos estudos por amor ao conhecimento. Mas ele faz do conhecimento em si a razão existencial do homem. E aqui ele perde o que acreditamos ser o grande motor da busca pelo conhecimento. Não vamos discordar dele, muito menos de C. S. Lewis, que completa o quadro observando que a descoberta, a sede pelo conhecimento, é apetite que Deus mesmo colocou em nós: "Em certo sentido, refiro-me à busca do conhecimento e da beleza por eles mesmos, mas num sentido que não exclui serem também por causa de Deus. O apetite para essas coisas existe na mente humana, e Deus não cira apetite nenhum em vão" (LEWIS, p. 59). Entretanto, por que ansiamos por conhecer? É verdade que, em certo sentido, desejamos nos proteger. Mas entendemos que há algo mais profundo aí. São as questões essenciais, colocadas no coração humano, as questões últimas, fundamentais, que nos levam à buscar a educação. A cosmovisão humanista diz que não há sentido e muitos que a adotam chegam a dizer que não há, nem mesmo, forma de se chegar à verdade objetiva (ou mesmo que ela não existe!). E se essa possibilidade nos é vetada desde o início, então, como notaram Schaeffer e Craig, a educação está fadada ao fracasso. Todavia, se olharmos para o ardoroso trabalho da pesquisa e reflexão como meios para encontrarmos as respostas mais significativas, então nos debruçaremos nos livros, na natureza, e onde mais apontarmos o nariz e suspeitarmos que as respostas estão. A salvação da educação, bem como a compreensão e valorização daqueles destinados a ofícios afins, está, pois, numa concepção diferente sobre a vida. Somente uma cosmovisão alternativa poderá salvar o homem da estupidez bem assalariada que ele almeja, do 'american dream'.



AS FALSAS VOCAÇÕES PARA SER INTELECTUAL


No número das vocações, existe, pois, a do intelectual. Aqueles chamados para pensar, refletir, e sanar dúvidas, expandir a compreensão das coisas, educar. Dentre esses, temos aquele que irá estudar as ciências humanas, os pensadores, os filósofos (o que pode incluir não só filósofos mas, também, sociólogos, economistas... etc.). E aqui ainda temos de distinguir entre o filósofo e o professor de filosofia. Em suma, muito do descrédito para com a filosofia é por conta de haver tão poucos pensadores, não-vocacionados que se passam por vocacionados. Não que não haja quem estude num curso de humanas, mas que aqueles que entram ali, dizem-nos os 'amigos' que chamamos para conversar [nos referimos às fontes bibliográficas], não são verdadeiros 'filósofos', ou 'pensadores'. Ouçamos-los.
Para começar, gostaríamos de citar ousadas afirmações de outro filósofo brasileiro, Luiz Felipe Pondé. As reflexões desta seção partirão de suas afirmações:
"Na maioria dos casos, professores de universidades (ou não) são pessoas que, além de não gostar dos alunos, têm uma inteligência mediana e foram, quando jovens, alunos medíocres, que fizeram ciências humanas porque sempre foi fácil entrar na faculdade em cursos de ciências humanas. Claro que todos pensavam em si mesmos como Marx ou Freud não revelados. Ao final, o que se revela com mais frequência é alguém fracassado que ganha mal e odeia os alunos. Professores normalmente não gostam de ler ou de estudar, mas dizem que esse pecado é apenas dos alunos. Há um enorme sofrimento na maioria dos professores porque têm de fingir o tempo todo que acreditam na importância do que fazem" (PONDÉ, p.).
Há muita coisa pesada e polêmica aqui, não? Segundo Pondé, os professores são incompetentes, frustrados e até mesmo não gostam de ler! Seria essa uma constatação isolada? É claro que não! Não é de hoje que vários pensadores têm reclamado, desprezado e até feito chacotas de outros pseudo-pensadores de sua época.
Comecemos com o turrão Schopenhauer: "Os professores ensinam para ganhar dinheiro e não se esforçam pela sabedoria, mas pelo c´redito que ganham dando a impressão de possuí-la. E os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir, mas para poder tagarelar e para ganhar ares de importantes" (SCHOPENHAUER, p. 17). Ou seja, muitos (para Schopenhauer, a maioria) dos que adentram aos cursos superiores o fazem não por amor ao conhecimento, ou por vocação, como Olavo diria, tomam o conhecimento como um meio para alcançar fama, dinheiro, prestígio e notoriedade, ou, na perspectiva de Pondé, adentraram-se ao mundo das humanas porque não tinham muitas alternativas.
A propósito, o professor Olavo, noutra obra, intitulada 'A Filosofia e Seu Inverso', defende que a filosofia tem a ver com a formação 'espiritual' do homem, trazendo-lhe orientação para a vida, em oposição à mentalidade 'profissionalizante' assumida com a formação das universidades modernas que permitiu às pessoas a possibilidade de lidarem artificialmente com as discussões filosóficas. Ele nos conclama a ver a filosofia tal como ela nasceu e, para isso, evoca o exemplo dos clássicos, i. é, de Sócrates, Platão e Aristóteles. O professor Olavo nota, particularmente, seguindo a Eric Voegelin, a disputa entre Sócrates e Platão contra os sofistas. Ele começa observando que
"Sócrates se volta contra tudo aquilo que, no meio ateniense, é opinião dominante, tida como respeitável e séria no mais alto grau. Graças ao próprio empenho de Sócrates e de Platão, a doxa ateniense nos parece hoje coberta de ridículo, mas na época ela era tão respeitada que desafiá-la podia ser punido com a morte, como de fato o foi. [...] A diferença específica de Sócrates reside num estrato mais profundo da experiência da discussão. Enquanto seus adversários repetem ideias correntes, apegando-se à segurança dos papéis sociais que lhes infundem a ilusão de estar certos por pensar de acordo com a maioria, ou com a classe dominante, Sócrates fala apenas como indivíduo humano, sem respaldo em qualquer autoridade externa. E não apenas faz isso, mas apela ao próprio testemunho íntimo de seus contendores, o que equivale a despi-los de suas identidades sociais e induzi-los à confissão direta, sincera, humana, de seus verdadeiros sentimentos" (OLAVO, 2012, p. 35).
Mais adiante Olavo caminha com Voegelin para observar que esse oposto do filósofo, que não lida com as questões íntimas como se tivessem relação com ele, ou que apenas abraça a opinião main stream, foi denominado por Platão de 'filodoxo', ou seja, um amante (filo) da opinião (doxa). E segundo Olavo, a maioria das faculdades e universidades estão cheias deles. Não se pensa mais com sinceridade e devoção. O grande objetivo é se amoldar ao establishment, e ganhar um título de autoridade em algum assunto. Schopenhauer, novamente, está em sintonia com esse mesmo pensamento, e o transporta lá para a Alemanha do século XIX:
"É possível dividir os pensadores entre aqueles que pensam a princípio para si mesmos e aqueles que pensam de imediato para os outros. Os primeiros são pensadores autênticos, são os que pensam por si mesmos, são eles mais propriamente os filósofos. [...] O prazer e a felicidade onde sua existência consiste exatamente em pensar. Os outros são os sofistas: eles querem criar uma aparência e procuram sua felicidade naquilo que esperam receber dos outros" (SCHOPENHAUER, p. 47).
Claro, olhando para o que já aprendemos de Aristóteles, podemos perceber que Schopenhauer adere a seu ideal eudemônico que concebe a realização existencial no ato de pensar, o que não coadunamos. Mas, independente, ele concorda que há aquele tipo de 'profissional do saber', 'sofistas', que veem na busca do conhecimento a busca pela felicidade nos aplausos alheios.

Pondé também fala de professores que não gostam de ler. Outros filósofos falam de um problema de mesmo porte, o fato de não saberem ler! Sim! Não falamos de professores analfabetos, mas que leram muito sem se tornar mais esclarecidos por isso. O conhecimento que adquiriram não foi abraçado de maneira adequada, de modo que praticamente 'não lhes pertence'. Mortimer Adler e Charles Van Doren podem elucidar esse ponto:
"Montaigne falava de uma 'ignorância abecedariana que precede o conhecimento, e uma ignorância doutoral que se segue ao conhecimento'. A primeira ignorância é a do analfabeto, isto é, do sujeito incapaz de ler. A segunda ignorância é a do sujeito que leu muitos livros, mas os leu de maneira incorreta. Alexander Pope os chamava, com justiça, de livrescos estúpidos, literatos ignorantes. Na história, sempre houve ignorantes alfabetizados, isto é, pessoas que leram muito mas leram mal. Os gregos tinham um nome especial para essa estranha mistura de aprendizado e estupidez - um nome que pode ser aplicado aos literatos ignorantes de todas as eras. Eles chamavam esse fenômeno de sofomania" (ADLER, VAN DOREN, p. 33).
E se alguém precisa de explicações quanto ao que é ler mal, podemos ver uma das formas denunciadas por Schopenhauer, que tanto reclama daqueles que leem demais e não param para pensar no que estão lendo:
"A leitura contínua, retomada de imediato a cada momento livre, imobiliza o espírito mais do que o trabalho manual contínuo, já que é possível entregar-se a seus próprios pensamentos durante esse trabalho. [...] Com isso não se chega à ruminação: mas é só por meio dela que nos apropriamos do que foi lido, assim como as refeições não nos alimentam quando comemos, e sim quando digerimos. Em contrapartida, se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido não cria raízes e se perde em grande parte" (SCHOPENHAUER, p. 114).
E é justamente por isso que temos tão rasos pensadores (na verdade, pretensos pensadores). E por serem de qualidade tão ruim, tão sem proveito, é que todos desprezam seu ofício de forma geral. Eles não sabem nem dialogar com os 'professores mortos' (como Adler chama os livros)*. Entretanto, não podemos nos esquecer que o grande erro castrante é o da pressuposição de que não há sentido e valores na vida, ou mesmo que não há verdade, como vimos com o dr. Craig. Afastando-se desses pressupostos esterilizadores teremos uma avenina pela frente rumo ao conhecimento e o bem!

Mas temos que ser cautelosos. Podemos cair naqueles erros também. Podemos nos tornar pseudo-intelectuais. Não basta sabermos ler direito. Seria ingenuidade pensar que não seremos assediados pelos benefícios que o reconhecimento de sabedoria pode trazer. Nessa entoada Lewis nos adverte:
"podemos vir a amar o conhecimento - o nosso conhecer - mais que o objeto conhecido: deleitar-nos não no exercício de nossos talentos, mas no fato de que eles nos pertencem, ou mesmo na fama que eles nos proporcionam. A cada sucesso na vida de um intelectual esse perigo aumenta" (LEWIS, p. 60).
Tomando essas cautelas, acreditamos que poderemos salvar nossa vida intelectual.

Ok, sabemos o que é vocação, e como ela é importante, mas, alguém poderá perguntar: 'filosofia?'. Será que há alguma utilidade no estudo disso? É aí que vamos explorar nosso segundo ponto.


E PRA QUE SERVE ESSA TAL DE FILOSOFIA?


Quem foi que nunca se deparou com conceitos de filósofos, frases soltas ditas por essa ou aquela celebridade grega de centenas de anos atrás, e se perguntou: qual a relevância disso? Não é raro ver quem pense serem essas discussões filosóficas, e até teológicas, uma grande babaquice. E não é apenas gente iletrada. Registramos o exemplo do respeitado teólogo e razoável filósofo R. C. Sproul cometendo uma gafe célebre, mas muito didática*. Pois bem, além do fato de, normalmente, tais asseverações serem injustas, pautadas na absoluta falta de compreensão do que os pensadores disseram, temos que salientar que uma hora ou outra aquelas ideias batem à nossa porta. Isso mesmo, as mais abstratas elucubrações filosóficas começam a escorrer pelas escadarias da academia e, mais cedo ou mais tarde, quando conseguem prevalecer no topo, alcançam as mentes mais simples e 'vulgares' da população. Padeiros e donas de casa, sem perceber, repetem os jargões filosóficos da moda, e a população, em geral, pensa como os filósofos ditaram que deveriam pensar.
Uma evidência muito tranquila para quem quiser averiguar é a seguinte: pesquisem nas escolas literárias. Elas são reflexo das elaborações filosóficas que as precederam. É frequente que os autores até conheçam as principais discussões filosóficas e tomem partido. Acontece que eles irão expressar essas concepções em suas historias, narrativas, contos, romances e poemas. Logo as pessoas irão ler o que foi dito. Haverá escritos considerados mais sofisticados, e os intelectuais se devotarão a eles. E também surgirão escritos mais grosseiros, amiúde de competência intelectual proporcional e são esses que também, usualmente, nem conseguem perceber que escrevem admitindo conceitos e teses filosóficas, e acabam popularizando-as aos mais simples.
Música, teatro e cinema também contribuem muito para a divulgação dessas ideias, como bem nota Francis Schaeffer na obra 'Como Viveremos?'. E é o próprio Schaeffer - não exclusivamente, pois o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho faz observações muito semelhantes em 'O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota' - também nota que haver outra maneira muito eficaz de encucar nos mais diversos setores sociais alguma ideia: as universidades. São delas que saem os formadores de opinião, e o que seus professores lhes convenceram é o que será base para o que irão transmitir. Aliás, aqui valem as palavras de William Lane Craig:
"De fato, a instituição mais importante na construção da sociedade ocidental é a universidade. É na universidade que os nossos futuros líderes políticos, jornalistas, advogados, professores, cientistas, executivos e artistas serão formados. É na universidade que eles formularão ou, mais provavelmente, absorverão a cosmovisão que moldará suas vidas. Uma vez que são os formadores de opinião e os líderes que moldam a nossa cultura, a cosmovisão que eles absorverem na universidade será aquela que moldará a nossa cultura" (CRAIG, p. 15).
Sendo assim, achamos que a ideia de que as questões filosóficas não passam de divagações e devaneios malucos provou-se obsoleta e infantil. Qualquer um pode ignorá-las, mas, a qualquer hora poderá notar que aquelas ideias que lhe pareciam tão naturais não eram outra coisa senão a formação social de suas ideias. Alguém que ignora esse fenômeno está muito propício a ser manipulado. E aqui podemos recorrer às observações pertinentes de Olavo de Carvalho a esse respeito - novamente, não está sozinho, pois Schaeffer coaduna com ele em observar a existência desse projeto -, que acredita existir 'estrategistas da guerra cultural', 'manipuladores conscientes' das opiniões, e segue isso com base nos escritos do mui influente Antonio Gramsci. Então revela o que para todos parece impossível:
"Que, para o estrategista da guerra cultura, o 'senso comum' seja um produto social como qualquer outro, sujeito a ser moldado e alterado pela ação organizada de uma elite militante; que sentimentos e reações, que, para o cidadão comum, constituem a expressão personalíssima da sua liberdade interior, sejam para o planejador social apenas cópias mecânicas de moldes coletivos que ele mesmo fabricou; que a direção de conjuntos das transformações culturais não seja a expressão dos desejos espontâneos da comunidade mas o efeito calculado de planos concebidos por uma elite intelectual desconhecida da maioria da população - tudo isso lhe parece ao mesmo tempo um insulto à sua liberdade de consciência e um atentado contra a ordem do mundo tal a concebe" (CARVALHO, 2013, p. 172).
Se existem mesmo esses planejadores culturais, os homens estarão menos sujeitos na medida em que forem educados, que conhecerem as raízes do que creem. A forma de se livrar é o interesse verdadeiro pela sua maturação, pela 'educação' no sentido estrito do termo. Precisamos estar cientes que, de uma forma ou de outra, abraçamos os pensamentos de nosso meio e época, e o conhecimento filosófico, devidamente adquirido, nos permitirá transcender nossa situação para avaliarmos de forma mais adequada o que nos é apresentado. Recorremos às acertadas palavras de Sproul para iluminar a questão:
"A filosofia nos obriga a pensar em termos de fundamentos. Com fundamentos quero dizer os primeiros princípios ou verdades básicas. A maioria das ideias que moldam nossa vida é aceita (pelo menos no começo) sem muita crítica. Não criamos um mundo ou ambiente do zero e depois vivemos nele. Entramos num mundo e numa cultura que já existem e aprendemos a interagir com eles" (SPROUL, p. 11).
E falando em Sproul, podemos pegar, mais uma vez, um exemplo de sua vida para ilustrarmos o que estamos trabalhando por aqui. Sproul conta que no segundo ano da faculdade de filosofia precisava arrumar um emprego nas férias e, não achando nada que demandasse alguém com conhecimentos filosóficos, acabou na manutenção de um hospital onde se encontrou com um homem cumprindo funções semelhantes para, em seguida, descobrir que se tratava de um Ph. D. em filosofia que fora expulso da Alemanha por ocasião da ascensão de Hitler que não queria, ali, ninguém que
discordasse de seus valores. Então Sproul notou:
"Eu estava empunhando uma vassoura poque vivia em uma cultura que dá pouco valor à filosofia e tem pouca estima por quem gosta dela. Meu amigo, todavia, estava com uma vassoura nas mãos porque vinha de uma cultura que dava grande valor à filosofia. Sua família fora destruída porque Hitler sabia que idéias são perigosas" (SPROUL, p. 10-11).
As ideias são perigosas, e, a menos que não queiramos ser vítimas delas, precisamos nos debruçar sobre os livros e refletirmos bem para combater, ou mesmo prevenir, as mazelas que uma ideia errada pode produzir.

É interessante notarmos que a questão do declínio do significado da educação é justamente produto de desdobramentos filosóficos. Cientes do que acabamos de expor, podemos voltar para o que apresentamos no início do artigo para percebermos que foi justamente por conta de concepções filosóficas que acometeram o Ocidente é que a educação caiu onde caiu.

Alguém poderia, ainda, nos lançar uma última objeção. Será que não há coisas prioritárias para serem estudadas? Por exemplo, medicina. Será que não é mais importante salvar a vida das pessoas para que elas pensem? Ou protegê-las e lhes dar conforto, estudando engenharia, por exemplo? Há quem diga que devemos dar uma atenção especial às 'verdadeiras ciências'. Isso, para Olavo, é típico dos países subdesenvolvidos:
"Sobretudo em países do terceiro mundo, a formação das elites governantes é maciçamente concentrada em estudos de economia, administração, direito, ciência política e diplomacia. Para esses indivíduos, as letras e artes são, na melhor das hipóteses, um adorno elegante, um complemento lúdico às atividades 'peso pesado' da política, da vida militar e da economia" (CARVALHO, 2013, p. 171).
E completa dizendo que há uma falsa suposição, da parte de muitos, de que um povo deve, primeiro, atentar-se às questões políticas, militares e econômicas para, só então, lidar com os 'tesouros culturais': "Nenhum povo ascendeu ao primado econômico e político para somente depois se dedicar a interesses superiores. O inverso é que é verdadeiro: a afirmação das capacidades nacionais naqueles três domínios antecede as realizações político-econômicas" (CARVALHO, 2013, p. 66). É interessante observar que C. S. Lewis faz a mesma constatação:
"Se os homens tivessem adiado a busca do conhecimento e da beleza até estarem em segurança, essa busca jamais teria começado. [...] Jamais faltaram razões plausíveis para se adiarem todas as atividades meramente culturais até que algum perigo iminente seja desviado ou evitado ou que alguma injustiça gritante seja consertada. Entretanto, a humanidade há muito tempo preferiu esquecer essas razões. Quis o conhecimento e a beleza agora, e não ia esperar o momento apropriado que jamais chega" (LEWIS, p. 53).
Um pouco mais adiante ele reforça a ideia:
"Sempre houve muitos rivais de nosso trabalho. Estamos sempre nos apaixonando ou querelando, procurando emprego ou temendo perdê-lo, adoecendo e nos recuperando, acompanhando negócios públicos. Se nos deixarmos pegar pelo abandono, sempre ficaremos esperando que uma ou outra distração termine antes que comecemos de fato nosso trabalho. Os únicos que alcançam muito são os que desejam tão intensamente o conhecimento que o procuram enquanto as condições ainda são desfavoráveis" (LEWIS, p. 62).


CONCLUSÃO


Não há dúvidas de que a formação de um filósofo é algo de extrema importância para o bem estar da sociedade. Graduar-se nessa área, ou em alguma outra área das humanas, é de valor crucial para ter a possibilidade de influenciar a cultura para o bem ou para o mal. E é justamente por conta da situação, do zeitgeist, do espírito pessimista que assombra a humanidade e concatena a razão à falta de sentido para tudo, e até mesmo à falta de verdades, que a a educação é desprezada, e com isso os pensadores. Mas é justamente nesse desprezo que se coloca à mercê deles. É um sistema que se auto-alimenta. Quanto mais as pessoas ignorarem os pensadores, seus poderes de influência, e desprezarem a própria educação, não vendo nela nada além do que um meio para se enriquecer, mais suscetíveis à manipulação, ao engano e ao engodo estarão. O autor desse texto é que não se enquadrará nesse cenário! Não há, portanto, motivos para abandonar o projeto de graduar-se em prol de caminhar rumo ao objetivo de tornar-se um filósofo (não que a graduação seja absolutamente necessária, mas é um meio ordinário), amigo tanto do bem quanto do saber, comprometido com o bem da sociedade. Acreditamos que existe sentido para a vida, valores, e que há verdades objetivas. E tentaremos mudar os rumos, ao menos dos que se encontram ao nosso redor.


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Queremos agradecer a Misael Pulhes pela revisão que fez ao texto!
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* Sobre isso, dissertamos mais demoradamente aqui.
*  Julgamos, aliás, que a leitura dos livros de Adler/Van Doren e Schopenhauer, relendo-os aplicando seus próprios métodos a eles mesmos, dará as competências iniciais para uma boa educação, ou pelo menos as bases para o aprendizado.
* A propósito, diga-se de passagem, é bom conceituarmos vocação antes de continuar, caso o leitor sinta-se um pouco perdido. Olavo define-a da seguinte forma: . O termo que, até onde sabemos, tem origem cristã, particularmente protestante (o que não é omitido pelo professor Olavo, embora ele diga ver coisas semelhantes na própria Idade Média), é mui bem definido por Marcos Botelho num vídeo com esse mesmo nome. Nele, Botelho diz o seguinte: 'A base do chamado é servir ao próximo' e, adiante, diz que uma vocação é aquilo que 'você sabe fazer, gosta de fazer e Deus colocou nas suas mãos para fazer'. Podemos arrematar com uma elaboração muito feliz de Botelho: 'Vocação é a maneira que Deus se expressa ao mundo através de você'! O vídeo completo pode ser visto clicando aqui.
A título de completude temos Lewis dando alguma luz para os que não sabem qual seria sua vocação: "O modo com que um indivíduo foi criado, seus talentos, suas circunstâncias, normalmente são todos índices razoáveis de sua vocação" (LEWIS, p. 53).
* Quem quiser, dê uma olhada aqui.


BIBLIOGRAFIA


ADLER, Mortimer Jerome; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros: o guia clássico para a leitura inteligente. Tradução de Edward H. Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010. 432p.
CARVALHO, Olavo de. A Filosofia e Seu Inverso: E Outros Estudos. Campina: Vide Editorial, 2012, 264p.
CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Organização de Felipe Moura Brasil. Rio de Janeiro: Record, 7 ed., 2013, 616p.
CRAIG, William Lane. Apologética para questões difíceis da vida. Tradução de Heber Carlos de Campos. São Paulo: Vida Nova, 2010, 192p.
LEWIS, C. S. O Peso de Glória. Tradução de Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: Editora Vida, 2008, 184p.
PONDÉ, L. F. Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. São Paulo: Leya. 2012, 232p.
SCHAEFFER, Francis. Como Viveremos? Tradução de
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2013, 152p.
SPROUL, R. C. Filosofia Para Iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208p.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sobre filosofia e ser filósofo... (Parte 2 - A Filosofia da Religião)



Uma vez estabelecido que a dúvida, oriunda do espanto, é o fundamento e a semeadora da filosofia [se ainda não leu a primeira parte, clique aqui], há ainda passos a lidar em relação à compreensão do que é a filosofia e o que é um filósofo. A resposta, pois, girará em torno de lidar com a inquietação, em encarar o deslumbramento, não raro aterrorizante, que envolve a experiência humana. E dentre as inquietações, talvez haja uma que seja a primordial. Afirmamos que se trata da questão sobre Deus e seu corolário, a religião.

Agostinho de Hipona, na provável primeira auto-biografia da história, começa, no primeiro livro de suas 'Confissões', questionando o que seria Deus: "Que és, portanto, ó meu Deus?" (Livro I, Capítulo IV). Junto a essas questões ele faz uma série de outras questões. As questões parecem remontar seus tempos de juventude e havia algum grau de não-sofisticação nelas, pois parecem refletir uma concepção filosófica equivocada não digna de um pensador dessa envergadura. Aliás, no decorrer da própria obra podemos perceber que ele mesmo toma ciência dessas questões e suas soluções. Mas é interessante que, tanto ali, antes de sua conversão, quanto após ela, continuam a surgir dúvidas sobre Deus. Não mais, necessariamente, sobre sua existência, mas sobre sua natureza e sua relação com o mundo e com os homens. Portanto, mesmo uma vez experimentado, ainda surgem questões sobre Deus, o que moveria a todos a pensar sobre o assunto. Sendo assim, Deus torna-se objeto de indagação constante e, portanto, uma 'fonte de pensamento filosófico'.
De fato, segundo Ronald Nash, realmente todos pensam sobre Deus. Ele coloca as questões sobre Deus como basilares, i. é, fundamentais para toda a compreensão de mundo. Fazem parte das questões últimas da vida que, pois, compõem o sistema de pensamento, ou seja, a cosmovisão*, E 'cosmovisão' todo mundo tem, ainda que não saiba. Sendo assim, todos pensam sobre Deus.
Pensar o que sobre Deus? Nash nos dá uma lista de perguntas que nos surgem naturalmente: "Deus existe? Qual é a natureza de Deus? Há mais de um Deus? É Deus um ser pessoal, ou seja, é ele o tipo de ser que pode conhecer, amar e agir? Ou é Deus uma força ou poder impessoal?" (NASH, p. 15). Todos nós, sendo assim, temos alguma resposta, ainda que rudimentar, à essas questões.

Mas como é próprio da maioria das pessoas, nem todas concebem respostas refletidas sobre esses temas. É próprio do filósofo lidar com as questões relacionadas à cosmovisão. Demorar-se um pouco mais nessas questões basilares. E a questão sobre Deus é primordial. Nesse sentido, Nash afirma que "O elemento crucial de qualquer cosmovisão é aquilo que ela diz ou não sobre Deus" (NASH, p. 15). Até mesmo os ateus admitem isso. Por exemplo, Lee Strobel nos conta sobre sua entrevista com Charles Templeton, que era pastor e passou a ser ateu, e a figura, ao ser questionada sobre Jesus, o julga mal pensador por não ter lidado com a questão mais importante de todas. Melhor olhar em suas próprias palavras. Em determinada parte da entrevista, Strobel pergunta: " _ E os ensinamentos dele; o senhor admirava o que ele ensinou? _ Bem, ele não era um pregador muito bom. O que ele disse era simples demais*. Ele não havia refletido sobre o que dizia. Não havia meditado sobre a maior pergunta que se pode fazer. _ Que é... _ Existe um Deus? [...]" (STROBEL, p.22).
Collin McGinn é ainda mais explícito, e afirma justamente o que estamos tentando mostrar nesse artigo: "Seria somente uma questão de fé cega ou a existência de Deus podia ser provada? E a formulação dessa pergunta rapidamente leva a toda a questão do que ´uma justificativa afinal, assim como questões sobre conhecimento, certeza, livre-arbítrio e a origem do universo. Deus pode ser ou não um filósofo, mas certamente é responsável por muita filosofia" (MCGINN, p. 20). Ou seja, a questão sobre Deus é tão fundamental que suscita reflexões em várias outras áreas e, além disso, implica em tudo o mais. Se Deus existe, e dependendo de como ele é, então a metafísica, a ética, a antropologia filosófica, a escatologia, a reflexão existencial e a própria epistemologia é concebida de forma diferente*. A questão chega ao ponto em que há autores que afirmem ser a religião a progenitora da filosofia, como Alessandro Rocha: "Sem incorrer em nenhum equívoco, podemos dizer que na origem mesmo da filosofia está a experiência tipicamente religioso do espanto acerca da realidade e do esforço por nomear suas origens" (ROCHA, p. 9).
Olavo é ainda mais ousado, e afirma que a filosofia, como inicialmente concebida nos projetos clássicos, abrangendo Sócrates, Platão e Aristóteles, implicavam na busca pelo Supremo Bem, o que seria, que seja de uma forma genérica, uma busca por Deus: "Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um 'valor', muito menos uma 'criação cultural', mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento" (CARVALHO, p. 38).
É interessante e pertinente notarmos, agora, que os autores do famoso livro 'O Livro das Religiões', que conta com a coautoria de Jostein Gaarder, menciona as questões fundamentais, 'parteiras' da filosofia, como bases da religião. "Quem sou eu? Como foi que o mundo passou a existir? Que forças governam a história? Deus existe? O que acontece conosco quando morremos? [...] Muitas questões existenciais são bastante gerais e surgem em todas as culturas. Embora nem sempre sejam expressas de maneira tão sucinta, elas forma a base de todas as religiões" (GAARDER, HELLERN, NOTAKER, p. 11). Aqui, pois, é possível perceber como a questão sobre Deus afeta toda a reflexão dos indivíduos. A resposta irá interferir no conceito sobre o homem, a origem (ou ausência de início) do mundo, o destino do homem e assim por diante, como já observamos, alhures, em outros termos.
E é tão evidente que a questão sobre Deus influencia todos os setores, repartições, da vida, que "qualquer pergunta sobre a cultura, a política, as artes, a economia, as ideologias pode muito bem ser argumentada tomando por base a presença e a influência da religião" (ROCHA, p. 9). Gaarder, Hellern e Notaker afirmam algo muito semelhante: "Um rápido olhar para o mundo ao redor mostra que a religião desempenha um papel bastante significativo na vida social e política de todas as partes do globo. [...] É difícil adquirir uma compreensão adequada da política internacional sem que se esteja consciente do fator religião" (GAARDER, HELLERN, NOTAKER, p. 16).

Mas mesmo que não se admita a origem religiosa da reflexão filosófica, ainda sim não podemos negar que a religião, e, portanto, o assunto 'Deus', é tema constante das elucubrações dos filósofos, bem como as questões mais imediatas que daí decorrem, como a relação do homem com Deus e afins: "Dos longínquos tempos anteriores a Sócrates até os fluidos dias de nossa cultura pós-moderna, a religião nunca saiu da pauta da filosofia. Ora como rainha, ora como vassala, sempre esteve ali impondo sua desejada* ou incômoda presença" (ROCHA, p. 9).

E a questão, claro, é tão fundamental que envolve alto comprometimento psicológico, tanto para o teísta quanto para o ateísta, como demonstra muito eloquentemente R. C. Sproul: "Os dois lados do debate precisam ver que todos os envolvidos na discussão sobre a existência de Deus trazem bagagem psicológica à mesa. Aqueles que negam a Deus, por exemplo, tem um interesse enorme em sua negação porque, colocando de forma simples, se o Deus bíblico existe, então abre-se um infinito obstáculo entre eles e sua própria autonomia" (SPROUL, p. 144). Em outras palavras, quem nega a Deus tem algum interesse em fazê-lo. Se o Deus da Bíblia existe, por exemplo, então tudo deve ser revisto, inclusive como vivemos nossas vidas e haveremos de prestar contas de nossos atos e pensamentos. Para alguém envolvido, apaixonadamente, em determinado tipo de atividade, como a dissolução, vida boêmia, adultério e afins, a existência do Deus da Bíblia pode ser um enorme incômodo*. Sproul continua: "Enquanto cristãos, cada fibra de nosso ser quer que Deus exista, e cada fibra de nosso ser igualmente repele o pensamento de que a soma de todas as nossa vidas é a 'paixão inútil' de Sartre. [...] A mesma pressão psicológica para o ateu negar a existência de Deus é a do teísta para assumir sua existência. [...] Sabemos o que está em jogo se fizermos isso [cremos no Deus da Bíblia]; entendemos que estaremos em apuros se conhecermos a existência de um Deus soberano" (SPROUL, p. 144) e mais adiante um pouco: "Não podemos arriscar expor essa nudez. Não podemos estar sob a luz da revelação de Deus. Nosso ambiente de conforto é a escuridão. Preferimos a escuridão porque e oculta nossa perversidade. Então, por natureza, suprimimos a luz da revelação de Deus. Fazemos isso porque consideramos que é necessário nos proteger da dor da exposição*" (SPROUL, p. 146). Assim, ao mesmo tempo em que o teísta quer que Deus exista, o ateu quer que ele não exista. Destaque para a palavra QUER. Isso deve ser colocado à mesa caso se queira refletir sério sobre o tema. Envolve, aqui, pois, as questões existenciais, éticas e a própria orientação da cosmovisão do indivíduo*.

Se Deus e filosofia têm alguma coisa a ver? Parece-nos inseparáveis e, portanto, não nos é concebível filósofo e filosofia responsável que não considere Deus como assunto e não lhe logre devida atenção.

Parte 3

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*Se algum leitor ainda não domina o conceito de 'cosmovisão', sugerimos os artigos que escrevemos sobre, bastando a leitura da parte 1 e da parte 2:
Parte 1
Parte 2
*Caso algum leitor também pense assim podemos sugerir o magnífico artigo de Douglas Groothuis que lida justamente com o tema: http://liberdadeepensar.blogspot.com.br/2007/11/jesus-o-filsofo-e-apologista-por.html.
Peter Kreeft também tém um livro inteiro observando as habilidades filosóficas de Jesus: http://www.thomasnelson.com.br/livro/jesus-o-maior-filosofo-que-ja-existiu/ (tudo bem que foi publicado pela Thomas Nelson, e que o gênero indicado seja 'auto-ajuda' - o que é um engano -, mas é Kreeft. É bom!).
*Claro, a formulação da existência de Deus pode elevar-se a partir de um desses pontos filosóficos. Mas a questão de que há um intercâmbio entre os vários braços da filosofia ainda permanece e, uma vez decidida a questão sobre Deus, tudo o mais é também influenciado.
*Para uma lista de filósofos teístas organizados mais ou menos de forma cronológica elaboramos uma lista quando ilustrávamos o conceito de sofisma no artigo que pode ser conferido clicando aqui.
*Embora não seja tema das reflexões de agora, é bom salientar que a fé cristã não é ascetista tanto quanto o epicurismo, no que concerne à sua ética, não o é.
*Não é o que parece estar sugerido no trecho de João 3:19-21.
*Para uma abordagem um pouco mais extensa do que Sproul chama de 'Psicologia do Ateísmo', vejam: https://www.youtube.com/watch?v=HQgMoKIXV6M
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BIBLIOGRAFIA



AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2008, 439p.
CARVALHO, Olavo de. A Filosofia e seu Inverso: e outros estudos. Campinas: Vide Editorial, 2012, 264p.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. Tradução de Isa Mara lando; revisao técnica e apêndice de Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 335p.
MCGINN, Collin. A Construção de Um Filósofo. Tradução de Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Record, 2004, 268p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
ROCHA, Alessandro. Introdução à Filosofia da Religião: um olhar da fé cristã sobre a relação entre a filosofia e a religião na história do pensamento ocidental. São Paulo: Editora Vida, 2010, 184p.
SPROUL, R. C. Defendendo sua Fé. Tradução de Patrícia Merlim. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, 192p.
STROBEL, Lee. Em Defesa da Fé:  jornalista ex-ateu investiga as mais contundentes objeções ao cristianismo. Tradução de Alderi S. de Matos. São Paulo: Editora Vida, 2002, 368p.