sábado, 28 de junho de 2014

A TENSÃO ENTRE A ORAÇÃO E OS DECRETOS DE DEUS


A oração é um ato sublime! O homem, mortal, finito e pecador, é convidado, intimado, e lhe é permitido, falar com o Criador do Universo, com o majestoso e glorioso Deus santíssimo! Que privilégio! Que honra!
Porém, existem alguns obstáculos inibidores. Alguns pensamentos parecem nos afastar do interesse e da prática deste privilégio. Queremos observar e corrigir, na medida em que o espaço nos permitir, alguns destes equívocos cogitativos para viabilizarmos nosso coração para a busca de Deus em oração.
Para quem acha que não há obstáculos colocados por nossos corações, vejam se estas colocações não lhe parecem verdadeiras e familiares: “Nunca nos sentimos mais próximos de Deus do que quando oramos; mas, quando oramos, por quantas vezes nossa atenção é distraída! Quão pequena reverência mostramos diante da grandiosa majestade do Deus com Quem falamos! Quão pouco remorso sentimos por nossas misérias! Quão pouco provamos da doce influência de suas ternas compaixões! Ao orar, não hesitamos muitas vezes em começar, e freqüentemente nos alegramos por terminar, como que dizendo: ‘Deus nos impôs uma tarefa muito cansativa quando recomendou que clamássemos a Ele?’ ...” (HOOKER apud RYLE, p. 35, itálico nosso). Viu? Seja sincero: você nunca deu-se à oração, não vendo a hora de aquele tempo, que parecia um suplício, uma penitência, acabar? O autor deste artigo já, e não foram poucas as vezes. Isso é vergonhoso, lamentável e estúpido. Sim, irmãos, estúpido! É onde nosso coração, sob as influências da carne, tende a nos levar: à loucura (cf. Romanos 1:21-22*¹).
Bom, veja o quadro que pintamos: por um lado, vemos o quão espetacular é o ato de oração. É uma oportunidade ímpar concedida por Deus. Ele, imenso e infinito, volta-se para ouvir-nos; nós que não passamos de pó! Além disso, ele, que é santíssimo, puríssimo, volta-se para ouvir pecadores imundos, por intermédio de Cristo. Ele nos convida, por meio de Cristo, a nos achegarmos a ele. Do outro lado, temos, na prática, a impressão, muitas vezes, de que a oração é uma ‘obrigação que nos pesa’. O que parece estar acontecendo aí? Certamente existe alguma mentira que nosso coração está nos contando. Se percebermos a sublimidade da oração, certamente não levantaremos obstáculo algum para nos devotarmos ao ato de orar. Se notarmos o quão espetacular é o ato da oração, faremos, como observa Leandro Lima na pregação ‘Os discípulos mais íntimos de Jesus’, como Pedro no monte da transfiguração, iremos buscar prolongar aqueles momentos de comunhão com Deus. Se refutarmos, se desmentirmos alguns conceitos errados sobre a oração, talvez possamos estar um pouco mais propícios a nos darmos à sua prática. Lidemos com um, por hora.
Um amigo nos enviou um vídeo de John Piper. Gostaríamos que vissem:


Alguns, refletindo sobre o controle absoluto de Deus, e, daí, passando a pensar sobre seus decretos*², sentem-se desmotivados a orar. Contrariando o que Piper disse, vejamos como Letham coloca a questão: “a oração não é tanto uma petição por um problema no qual a vontade de Deus não é decisivamente conhecida, mas um pedido acerca de algo que foi definitivamente estabelecido” (p.154). Em outras palavras, estaríamos pedindo, mas não faria diferença, pois simplesmente teríamos de nos ater ao que fora determinado. No final das contas, isto não nos faz parecer inúteis? Esta parece-nos uma piedade estóica*³. Do que vale a petição, se não é, de fato, atendida, nem mesmo quando as coisas acontecem conforme pedimos? Entendemos que as palavras, outra vez mui oportunas, de Charles Hodge solucionam a questão: “Quando uma pessoa ingressa em algum grande empreendimento, estabelece de antemão o plano de suas operações; seleciona e determina seus meios e designa cada parte subordinada e certifica-se de que suas solicitações por assistência e orientação sejam atendidas. Se fosse possível que cada instância de tal aplicação ou pedido pudesse ser prevista e a resposta determinada, isso não seria [in]consistente com o dever ou a propriedade de tais pedidos serem feitos, ou coma liberdade de ação por parte do controlador. Esta ilustração pode valer bem pouco; mas é certo que as Escrituras ensinam tanto a preordenação quanto a eficácia da oração. As duas, portanto, não podem ser inconsistentes. Deus não determinou executar seus propósitos sem o uso de meios; e entre esses meios as orações de seus povo têm lugar apropriado. Se a objeção à oração, fundamentada na preordenação dos acontecimentos, é válida, é válida contra o uso de meios em qualquer caso. Se é ilógico dizer: ‘Se está preordenado que eu viva, não é necessário que eu coma’, não me é menos ilógico dizer: ‘Se está preordenado que receba algum bem, não é necessário que o peça’” (p.1536-1537).*4

Adentremo-nos um pouco mais no assunto. Filipenses 4:6-7 nos diz: “Não andeis ansiosos por coisa alguma; antes em tudo sejam os vossos pedidos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica com ações de graças; e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.” Uma análise rápida do texto é suficiente para lhe captar a temática principal: ‘apresente, diante de Deus, seus pedidos’. É muito mais que uma boa sugestão. Devemos confessar nossos anseios e petições diante de Deus. É interessante notar a conjunção adversativa ‘antes’. Ao invés de ficarmos ansiosos, devemos apresentar nossas petições diante de Deus. Quero um carro; quero uma casa; quero tal livro; quero ter um bom dia amanhã; quero sarar este e aquele machucado; quero ser mais santo; quero abandonar tal pecado; quero um emprego; quero uma namorada; quero me casar... etc. Tudo deve ser colocado diante de Deus. Não é correto a ansiedade, o apavoramento e a perda de sono. Quanto mais cientes estivermos do poder providencial de Deus, e de como ele governa com sabedoria e virtude, menos ansiosos estaremos. O fato é: nossos desejos devem estar diante de Deus; e devemos levá-los à Ele em oração. ‘Ele já sabe’. Sim, já. Mas a relação dialogal, pessoal, que ele estabelece conosco faz-lhe exigir que conversemos com ele. ‘Conte-me’, diz o Senhor. ‘Conte-me, e deposite suas esperanças em mim’.
Agora, notemos que o texto não traz: ‘Apresente seus desejos ao Senhor, e ele irá atendê-los todos’. Não existe essa promessa na Bíblia. Primeiro, como vimos na reflexão anterior, ele pode ‘atender-nos’. Mas às vezes isso não vai acontecer. O caso é que, há um fator psicológico muito benéfico na oração. Ela nos colocará em contato com Deus ante o que almejamos. Se o conhecemos; se sabemos ao menos um pouco sobre sua providência, ficaremos bem menos preocupados. O texto ainda promete que ficaremos repletos da paz de Deus mediante a apresentação sem reservas e o pleno conhecimento e fé na providência, soberania e sabedoria de Deus. Isto o texto promete.
Para finalizarmos, notemos, também de forma breve, o texto de 1 João 5:14: “E esta é a confiança que temos nele, que se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, ele nos ouve.” A condição para sermos atendidos é, justamente, a conformidade dos nossos pedidos com os preceitos e decretos divinos. Com os preceitos diz respeito à ética, à virtude. Se estamos pedindo algo que é justo, puro e bom, é provável que seremos atendidos. Mas pode ser que não seja a coisa mais sábia a ser feita, e Deus nos negue a satisfação desse desejo. É justamente essa a relação de nossas petições com os decretos. Às vezes, embora nosso desejo seja razoável, puro e justo, não satisfazê-lo glorifique mais a Deus, e beneficie mais nossa alma. Para o reconhecimento da vontade geral de Deus, não há melhor guia do que a Palavra. Em outros casos específicos, porém, não teremos o caminho aberto, mas podemos confiar no Senhor (cf. reflexão parte 4).

“FAÇA-SE A TUA VONTADE, ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU” (MATEUS 6:10)

Na Oração Dominical, ensinada por Jesus, há uma abordagem ao tema e, a título de completudo, é bom que estudemos o texto também. A expressão ‘vontade’ é θελημα (thélema), que também pode ser traduzida por ‘desejo’, segundo o Léxico do N.T. Grego-Português, de F. Wilbur Gingrich e Frederik W. Danker (p.95). Aqui, Jesus estava se referindo a um tipo diferente de vontade que a tratada outrora, em nossos artigos. Para compreendermos esta questão, os teólogos distinguiram dois tipos de vontades divinas. Berkhof sintetiza assim: “A vontade decretatória de Deus e Sua vontade preceptiva. A primeira é a vontade de Deus pela qual ele projeta ou decreta tudo que virá a acontecer, quer pretenda realiza-lo efetivamente (causativamente), quer permita que venha a ocorrer por meio da livre ação das Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus firmou para as Suas criaturas morais, indicando os deveres que lhes impõe. A primeira é realizada sempre, ao passo que a segunda é desobedecida com frequência” (p.70). Em outras palavras, uma diz respeito às determinações que Deus fez quanto aos eventos que aconteceriam no desenrolar da história. A outra, a segunda, vontade diz respeito aos preceitos de Deus, ao que ele avalia, (sendo ele mesmo o padrão para a moralidade de modo que o que ele avalia é o que é), como certo e errado. Não podemos presumir que o pedido tanja à vontade decretatória, pois ela certamente se fará. O pedido diz respeito à vontade preceptiva, de modo que o desejo daquele que ora é que os preceitos, a ética bíblica, seja implantada no mundo, ou seja, que o pecado seja evitado e a benignidade praticada. Com esse conceito em mente, podemos, enfim, estudar os comentários. É interessante observar que os comentaristas que pegamos não tecem muitos detalhes sobre o assunto, ou o evitam, talvez por não perceberem esta questão doutrinária, e/ou por perceberem as dificuldades que a circundam.
J. Dwight Pentecost, contrariando a opinião dos outros comentaristas, entende que este não se constitui um pedido particular mas, antes, está acoplado ao pedido da vinda do reino (p.116)*5. Como a vinda do reino se desassocia dos preceitos de Deus (no sentido de serem coisas diferentes), entendemos que esse comentarista se equivocou. Wiersbe, na já entoada labuta de demonstrar o que não deve permear nossas orações, diz que “Não temos o direito de pedir a Deus qualquer coisa [...] que seja um empecilho a sua vontade na terra” (p.30), mas logo associa esta vontade exclusivamente ao benefício do povo de Deus, quando os preceitos divinos têm aplicação para todos os homens, ou seja, o que é certo para os crentes também é certo para o ímpio, e vice-versa (cf. Romanos 2:14-15).  Suas palavras são: “Se estivermos orando segundo a palavra de Deus, de uma forma ou de outra, a resposta abençoará todo o povo de Deus” (p.30). Não que a conclusão seja errada, mas é que a vontade preceptiva de Deus sendo efetivada abençoa não só a igreja mas a todos os homens*6.
Finalmente, peguemos o Catecismo Maior de Westminster (Pergunta 192), entende a questão tal como a enunciamos. Vejamos a resposta: “Reconhecendo que, por natureza, nós e todos os homens somos, não só inteiramente incapazes de conhecer e fazer a vontade de Deus, e indispostos a isso, mas propensos a rebelar-nos contra sua palavra, a desanimar-nos, a murmurar contra sua providência, e inteiramente inclinados a fazer a vontade da carne e do Diabo, pedimos que Deus, pelo seu Espírito, tire de nós e dos outros toda cegueira, fraqueza, indisposição e perversidade do coração, e pela sua graça nos faça capazes e prontos para conhecer, fazer e submeter-nos à sua vontade em tudo, com humildade, alegria, fidelidade, diligência, zelo, sinceridade e constância, como os anjos do céu”. Ou seja, o catecismo percebe que a ‘vontade de Deus’ aqui mencionada diz respeito à sua vontade preceptiva.
Um detalhe que fugiu à especulação dos comentaristas consultados e que queremos sugerir é que pode haver alguns termos omitidos, por zeugma, em “assim na terra como no céu”. Estamos nos referindo à expressão “é feita” depois do termo ‘como’, ficando: “assim na terra como [é feita] no céu”. Por analogia da fé*5, temos textos que deixam claro que a vontade preceptiva de Deus é feita nos céus. Pelos textos sugeridos pelo catecismo, tangente à essa parte, imaginamos que esta interpretação lhes passou pela cabeça (mencionam Salmos 103:20-22 e Daniel 7:10). Os anjos maus já foram expulsos de lá (2 Pedro 2:4). Portanto, o pedido, na oração, é para que as coisas na terra sejam como as coisas nos céus, onde a vontade preceptiva de Deus é plenamente realizada.

Concluímos que devemos, sim, apresentar nossas petições diante de Deus.Esse é um meio de graça, uma forma de as coisas acontecerem de fato. Devemos, também, dar uma boa estudada na providência divina para que alcancemos a paz mediante a oração. Mas, apresentar nossa oração não significa que seremos atendidos. O seremos desde que nossos pedidos coadunem com a 'vontade de Deus'. E, podemos conhecê-la, de forma geral, no estudo das Escrituras.


*¹ O texto está falando da situação do coração ímpio, que rejeita o verdadeiro conhecimento sobre Deus, e é enredado numa situação em que, para evitar a verdade, usa-se de todo tipo de subterfúgio, e erige uma cosmovisão, uma filosofia de vida e sobre as coisas, calcada em princípios falsos. Para quem for versado em filosofia, poderíamos colocar a situação da seguinte forma: os efeitos noéticos consistiriam, no mínimo, na eleição de falsos pressupostos e no erigir de uma cosmovisão pautada neles, o que redunda em equívoco e loucura.
Mas essa é a situação que muitas vezes nós, crentes, nos vemos. Por vezes, somos levados a dar ouvidos às inclinações ruins de nosso coração, e, não raro, enamorados com algum pecado, adotamos princípios equivocados e formas estranhas de pensar, até que cedemos ao confronto do Espírito e nos voltamos à verdade. Isso, claro, ocorre em aspectos particulares da nossa fé, e não nela como um todo, e nem de forma que neguemos alguma doutrina da graça ou algum princípio inegociável.
*² É importante observar que existe duas posições reformadas a respeito dos decretos e a liberdade do homem. Existem irmãos deterministas bíblicos, e irmãos compatibilistas. Quem estiver interessado, sugerimos, para o primeiro grupo, que leiam Introdução à Teologia Sistemática, de Vincent Cheung, ou ‘Questões Últimas da Vida’, de Ronald Nash, p.357 a 374 (e.g.); e, para o segundo, que leiam ‘Teologia Sistemática’, de Louis Berkhof ou ‘O Ser de Deus e as suas obras: A providência e a realização histórica’, de Heber Carlos de Campos.
*³ Sproul, no ‘Filosofia para Iniciantes’, os define assim:“A preocupação central do estoicismo foi a filosofia moral. A virtude é encontrada na reação da pessoa ao determinismo materialista. O ser humano não pode determinar seu próprio destino. Ele não tem controle sobre o que lhe acontece. Sua liberdade é restrita à sua reação ou atitude interior ao que lhe sobrevém” (p.54). Nossa referência à piedade estoica diz respeito ao fato de orarmos ser onde reside a liberdade, mas, na verdade, não faz sentido caracterizar o ato como uma comunicação com um ser pessoal, conforme o resto do texto demonstra. Para conhecer mais sobre o estoicismo, veja o artigo que elaboramos sobre aqui: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/06/os-estoicos.html
De fato, Richard J. Foster, no seu horrível e místico-medieval ‘Celebração da Disciplina’, por não compreender como se dá a interação entre a oração e os decretos, critica a perspectiva calvinista (i.é., a perspectiva que temos defendido aqui) nas seguintes palavras: “Muitos, com sua ênfase sobre aquiescência e resignação ao modo de ser das coisas como ‘a vontade de Deus’, aproximam-se mais de Epicteto que de Cristo [Sproul, na mesma página supramencionada refere-se também à Epicteto com a seguinte frase a ele atribuída: “Não posso escapar à morte, mas será que não posso escapar ao medo dela?” (EPICTETO apud SPROUL, p. 54)]” (p.50). De fato, concordamos com Foster em criticar a posição que define a oração quase como uma mera formalidade. Mas, de maneira alguma poderíamos concordar, a luz do que vemos neste livro, com as seguintes palavras de Foster: “Moisés  foi ousado na oração porque acreditava poder mudar as coisas, e mudar até mesmo a mente de Deus” (p.50). Sua declaração posterior cheira a teísmo-aberto: “Estamos cooperando com Deus para determinar o futuro” (p.50).
*4 Cf. o seguinte endereço para um artigo muito elucidativo de John Piper: http://www.monergismo.com/textos/oracao/oracao-predestinacao-conversa_piper.pdf.
*5 Parece-nos que F. Davidson também tem uma opinião semelhante. Ele pula a expressão ‘seja feita a tua vontade’, e comenta o “assim na terra como no céu” como se referisse aos novos céus e nova terra, onde, certamente, a vontade dele será realizada.
*6 Peguemos, por exemplo, 1 Timóteo 2:1-2, particularmente a parte que nos ordena orar “em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade”. Qual o objetivo desta oração? O verso prossegue, respondendo: “para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito”. Esta é, pois, uma aplicação desta sessão da oração dominical, pois, se as autoridades exercerem corretamente seu ofício a teremos promovendo o bem e punindo o mal (cf. Romanos 13:1-7; 1 Pedro 2:13-14).


BIBLIOGRAFIA

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 1334 p.

BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Tradução de Odayr Olivetti. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, 848 p. (e-book).

CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER. Tradução de ?. São Paulo: Cultura Cristã. 2005. 288p.

FOSTER, Richard J. Celebração da Disciplina: o caminho do crescimento espiritual. Tradução de Luiz Aparecido Caruso. São Paulo: Editora Vida, 9ª impressão, 2000, 240p.

GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederik W. Léxico do N.T. Grego-Português. Tradução de Júlio P. T. Zabatieiro. São Paulo: Vida Nova. 1993, 227p. (e-book).

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo:Editora Hagnos, 2001. 1777p.

LETHAM, Robert. A Obra de Cristo. Tradução de Valéria da Silva Santos. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, 272p.

LIMA, Leandro. O privilégio dos discípulos mais íntimos de Jesus. Cf. http://www.youtube.com/watch?v=ust1BJOoHL8

PENTECOST, J. Dwight. O Sermão da Montanha. Tradução de ?. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1984, 177p. (e-book).

RYLE,J.C. Santidade: sem a qual ninguém verá o Senhor. Tradução de João Bendes e Waleria Coicev. 2.ed. São José dos Campos: Fiel, 2011. 413 p.

SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.

WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo Novo Testamento Volume I. Tradução de Susana E. Klassen. Santo André: Geográfica Editora, 2006, 948p. (e-book).

sexta-feira, 20 de junho de 2014

sábado, 14 de junho de 2014

Os Estoicos


[para uma melhor compreensão do estoicismo é bom que se leia este artigo sobre Heráclito]
Estudaremos, agora, uma importante escola filosófica da Antiguidade, o chamado estoicismo. Para isso contaremos principalmente com o capítulo sobre o assunto no livro de Jean-François Pradeau, escrito por Brad Inwood, que nos será guia para o estoicismo como Nash para o Platonismo ou Durant para política em Aristóteles e Platão.
Pois bem, o movimento foi criado por Zenão de Chipre. Mas antes de estudar os estóicos, temos que estudar uma escola que os precedeu, e que muito os influenciou: os cínicos, um movimento filosófico criado por um dos discípulos de Sócrates chamado Antístenes. Antístenes é pra Zenão o que Aristipo é para Epicuro. Gaarder e Chalita reconhecem a influência dos cínicos sobre os estóicos: “Os cínicos foram de grande importância para a filosofia estoica”(GAARDER, p. 148) e “As ideias dos estóicos foram influenciadas por uma corrente de pensamento que se desenvolveu na mesma época de Sócrates: o cinismo. Fundada por Antístenes (445? – 365 a. C.), um ateniense que conheceu o grande filósofo [Sócrates]” (CHALITA, p. 78). Veremos o porquê.
O estoicismo nasce, em Atenas, no final do século IV a. C., o século macedônico da Grécia, com Zenão. Inwood entende que Zenão nasceu em 334 e morreu em 262 a. C. (PRADEAU, p. 80). Chalita suspeita da data 320 a 250 a. C. (CHALITA, p. 76). Ambos, nas mesmas páginas, indicam que ele nasceu em Cítio (ou Cício), na ilha de Chipre.
Chalita nos informa que “Zenão entrou em contato com a filosofia por meio de textos trazidos de Atenas por seu pai, um comerciante” (CHALITA, p. 76). Chalita prossegue dizendo que “Posteriormente, ele se transferiu para Atenas, onde começou a ensinar próximo ao pórtico da cidade” (CHALITA, p. 76), mas isso pula informações importantes, concedidas a nós por Inwood. Antes, Gaarder nos diz que Zenão “se transferiu para Atenas depois de ter sobrevivido a um naufrágio” (GAARDER, p. 148). Quem sabe o naufrágio tenha-o despertado à reflexão sobre a vida. Ou seria um naufrágio no caminho à cidade de Atenas? Seja como for, Brad Inwood nos conta que, antes de começar a ensinar, Zenão foi “seduzido pela leitura das ‘obras socráticas’, ele foi para Atenas a fim de aprofundar seus conhecimentos. Ele sentiu um verdadeiro choque com a leitura pública de algumas partes do livro II das Memórias de Xenofonte (430-355 a. C.) e perguntou onde poderia encontrar homens como o Sócrates (469-399 a. C.) que se acabava de descrever. Crates de Tebas (368/365-288/255 a. C.), filósofo cínico renomado, foi-lhe designado. Levado por seu entusiasmo socrático, Zenão se devotou aos ideais da filosofia cínica: ele tomou a decisão de viver ‘em conformidade com a natureza’ e de repensar as convenções da sociedade civil a partir de seus fundamento” (PRADEAU, p. 80). Isso mesmo! Zenão não apenas estudou o cinismo, como aprendeu filosofia aos pés de um mestre cínico, e chegou a viver como um verdadeiro discípulo de Antístenes. Por isso, antes de continuarmos com os estóicos, temos que fazer uma pequena digressão e estudar os cínicos. Só então poderemos voltar e compreender melhor o estoicismo.

O CINISMO

Antístenes foi um fiel discípulo de Sócrates. Maria Lacerda de Moura parece considera-lo o mais fiel seguidor do sábio de Atenas. “Antístenes, durante o processo de Sócrates e os dias que se seguiram à sua condenação, desesperado diante do inevitável, revoltado, louco de dor, fugiu a toda e qualquer presença, par apenas viver junto de Sócrates até os últimos momentos do filósofo. Depois, fugiu de toda gente, na angústia de uma perturbação irritante contra a maldade, a incompreensão e imbecilidade humana que condenam um Sócrates, cuja pureza ninguém queria ver” (PLATÃO, p. 70-71). Talvez a conturbação tenha-o feito imaginar que a apatia ante as coisas seria a solução para a felicidade. Ele deve ter se lembrado de um evento com Sócrates que certamente fertilizou sua mente, fazendo germinar o ‘cinismo’: “Conta-se que, um dia, Sócrates parou diante de uma tenda do mercado em que estavam expostas diversas mercadorias. Depois de algum tempo, ele exclamou: ‘Vejam quantas coisas o ateniense precisa para viver!’. Naturalmente ele queria dizer com isto que ele próprio não precisava de nada daquilo” (GAARDER, p. 147).
Pois bem, o que Antístenes ensinava? Gaarder esclarece: “Os cínicos diziam que a verdadeira felicidade não depende de fatores externos como o luxo, o poder político e a boa saúde. Para eles, a verdadeira felicidade consistia em se libertar dessas coisas causais e efêmeras. E justamente porque a felicidade não estava nessas coisas ela podia ser alcançada por todos. E, uma vez alcançada, não podia mais ser perdida” (GAARDER, p. 147). É importante destacarmos que, uma vez que a felicidade não dependia de algo que apenas poucos possuíam, como saúde, riquezas e status, antes dependia da competência racional que todos tinham para se tornarem ‘cínicos’, ela era de alcance universal. Aqui percebemos as raízes socráticas do pensamento de Antístenes. Ele credita a felicidade à competência universal dos homens, à razão humana. É, pois, algo de caráter universal. Chalita completa a doutrina: “o pensamento cínico pregava que a maior virtude que um homem podia atingir era a independência frente a todos os acontecimentos da vida. Isso significava libertar-se dos costumes e das normas sociais por meio da satisfação apenas das necessidades absolutamente vitais, como a alimentação e o sono; todas as outras, impostas pelas regras sociais, deveriam ser desprezadas” (CHALITA, p. 78). Para ele, pois, as coisas que nos faziam pensar serem necessárias para a felicidade seriam, na verdade, um construto social, um anseio artificial criado por homens, iludidos, buscando ídolos para satisfazer a ‘irrealização’ presente em seus corações (observem que as inquietações existenciais estão, novamente, presentes em outro filósofo da antiguidade). O anseio por riquezas, status e até saúde são impressos em nossos corações pela cultura em que vivemos, ensinava Antístenes.
Acontece que Chalita ensina que alimentar-se e dormir seriam coisas lícitas de se buscar. E, no final das contas, todas as lutas das pessoas banais não são fruto justamente dessa busca? Querem dormir melhor, mais confortavelmente, e comer bem, bem como garantir esses dois. Seja como for, Gaarder amplia e torna a visão cínica ainda mais radical: “Os cínicos achavam que as pessoas não precisavam se preocupar com a saúde, nem mesmo com o sofrimento e com a morte. E elas também não deveriam se atormentar com o sofrimento dos outros” (GAARDER, p. 148). Ou seja, a paz é alcançada quando não se importa com nada mais além da mera sobrevivência. Essa parece a proposta de Antístenes.
Antístenes, enquanto o mestre ainda vivia, não se deu a ensinar e ter discípulos. Por isso Moura relata que Antístenes dizia: “Quando uma época tem a felicidade de possuir um Sócrates, é só a ele que convém escutar [...] Aprendereis comigo daquele que me ensina; a água é mais fresca e mais sã, quando bebida na fonte” (ANTÍSTENES apud PLATÃO, p. 73) e prossegue: “E Antístenes não teve discípulos enquanto Sócrates viveu. [...] Morava no Pireu. Todas as manhãs andava quarenta estádios para ouvir Sócrates. Platão não foi tão longe...” (PLATÃO, p. 73). Mas é claro, logo tal discípulo comprometido iria angariar discípulos.
Alguém, além de Zenão, viveu ao extremo essa filosofia: “Diógenes (século IVa .C.), o cínico mais famoso, levou esse ideal às últimas consequências, vivendo em absoluta pobreza. Há histórias que afirmam que ele chegou a viver dentro de um barril, nu, e que ridicularizava a todos os cidadãos e seus hábitos com um humor implacável” (CHALITA, p. 78). Talvez zombasse deles, pra lá e pra cá, ávidos em conseguir coisas, mirando objetivos que não eram melhores que as miragens dos viajantes do deserto. Gaarder nos conta uma interessante histórica sobre Diógenes: “Conta-se que ele vivia dentro de um barril e não
possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão. [...] Um dia, quando estava sentado ao sol junto ao seu barril, recebeu a visita de Alexandre Magno. Alexandre aproximou-se do sábio, perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: ‘Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol’. Com isto Diógenes mostrou que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Ele tinha tudo o que desejava” (GAARDER, p. 147-148).

A HISTÓRIA DO ESTOICISMO

Inwood diz que, “em seu começo, ele [o estoicismo] se restringiu à atividade filosófica do fundador da escola” (PRADEAU, p. 80), ou seja, entendemos com isso que não havia mestres tão cedo do estoicismo. Talvez seus bons discípulos tenham vindo depois. O certo é que “ele reunia seus ouvintes debaixo de um pórtico. O substantivo estoico vem da palavra grega para ‘pórtico’ (stoa)” (GAARDER, p. 148).
Depois de um tempo como cínico, Zenão continuou a filosofar, e a estudar, e abandonou o ideal de Antístenes, conforme nota Inwood: “Somente muito mais tarde, depois de pesquisas aprofundadas em vários domínios da filosofia, foi que Zenão fundou uma escola que se comprometia na via de uma ciência universal. Essas ciências compreendia a física, aí incluídas a cosmologia e a teologia, a análise dos modos formais de raciocínio e da epistemologia, assim como uma determinada abordagem da ética e da política, onde se sustenta valores civis ao mesmo tempo em que se repensava seu fundamento” (PRADEAU, p. 80). Ou seja, Zenão tinha pretensões de desenvolver uma cosmovisão completa. Ele não poderia ter conceitos tão simplesmente ético-existenciais. Era preciso refletir sobre o mundo, sobre os homens, sobre as relações humanas e sobre os próprios pensamentos.
Inwood prossegue dizendo que “em seu começo a escola era pequena. Na realidade, os primeiros discípulos de Zenão forma chamados mais de ‘zenonitas’ do que ‘estoicos’, enquanto que os discípulos de Epicuro (341-270 a. C.) foram desde o início chamados de ‘epicuristas’” (PRADEAU, p. 81). Mas esse tímido movimento prosseguiu, ganhou caráter próprio e vida além do mestre, como segue informando Inwood: “mas o movimento fundado por Zenão sobreviveu ao seu fundador e adquiriu uma identidade independente. Os filósofo que escolheram seguir Zenão em vida formavam um conjunto heteróclito. Alguns eram, por exemplo, encarregados da tarefa frequentemente ingrata de conselheiros políticos [...] Outros discípulos de Zenão foram menos fiéis aos princípios filosóficos de seu mestre...”” (PRADEAU, p. 81).
Dentre os famosos estoicos, conhecemos aquele que viveram já a partir do primeiro século da era cristã em diante. Sêneca, o escravo Epíteto e o imperador Marco Aurélio são os mais celebrados. Entretanto, segundo Brad Inwood, “os mais célebres discípulos de Zenão foram incontestavelmente Cleanto de Assos (331/330-225/220 a. C.) e Ariston de Quios [nasceu por volta de 300 e não se sabe quando morreu] [...], dois rivais cujas interpretações da herança zenoniana diferiam sensivelmente” (PRADEAU, p.). Percebam, pois, que, já no início a própria ortodoxia zenonita (ou seja, estoica) havia uma disputa. Aliás, a disputa era justamente em definir a ortodoxia.
Quanto a Ariston, Inwood diz: “Como Herillus de Cartago, Ariston pensava que o coração das doutrinas da escola era a ética num sentido muito preciso, quer dizer, uma ética socrática de inspiração cínica” (PRADEAU, p.). Portanto, nesse sentido, o estoicismo não teria necessariamente uma cosmovisão, ou, pelo menos, a teria toda voltada para a ética.
Cleanto, por sua vez, “ao contrário, afirmava que a escola devia considerar a física, a teologia, mas também a epistemologia e a lógica como objetos de estudo da mesma importância da ética. Ele se esforçou para encontrar uma combinação satisfatória entre estes domínios de estudos que iria caracterizar a escola” (PRADEAU, p.) Ou seja, Cleanto seguia a proposta do mestre, como vimos, e buscou formar uma cosmovisão coerente dentro do estoicismo.
Bom, como Cleanto seguiu a proposta do mestre, estava ali a ortodoxia. Sendo assim “não é, portanto, de admirar que Ariston se tenha distanciado da escola estoica para libertar seu próprio ensino. Seus discípulos eram chamados de ‘aristonianos’, mas eles não foram muitos, e a influência da escola de Ariston não durou” (PRADEAU, p.) Entretanto, como veremos adiante, a escola acabou adotando uma postura mais aristoniana no futuro mais distante.
Inwood ainda nos diz que “Cleanto permaneceu à cabeça da escola quando da morte de Zenão em 262/261 a. C., durante trinta e dois anos até sua própria morte em 230/299 a. C.” (PRADEAU, p.). Portanto, a fidelidade aos princípios do mestre garantiu a Cleanto a sequência na administração da casa.
Mas o desenvolvimento da filosofia estoica não estava em Cleanto, mas em seu discípulo Crisipo: “Seu discípulo Crisipo de Soles (281/278-208/205 a. C.) assumiu as teses de Cleanto ([...] a propósito da tradição estoica e as desenvolveu”. Inwood amplia muito nosso conhecimento sobre Crisipo: “Depois de um período em que ele ministrou seu ensino de maneira autônoma, Crisipo reacendeu a chama da Escola. Ele se preocupava em permanecer fora da política, diferentemente dos primeiros estoicos; ele era, por outro lado, vigorosamente contrário à intepretação aristoniana do estoicismo. [...] Ele é conhecido por ter defendido com entusiasmo a concepção zenonista da epistemologia estoica (que mistura uma crença na possibilidade de um saber inabalável com posições materialistas e empiristas) contra a Academia”(PRADEAU, p. 81-82). Portanto, foi não apenas um sistematizador, mas também um apologista do estoicismo.
É aqui, em Crisipo, que temos a resolução máxima do estoicismo. Mais adiante Inwood irá dizer: “Ainda que as doutrinas da escola tenham evoluído consideravelmente durante os quinhentos anos de sua existência, a versão mais acabada e mais influente do estoicismo permanece seguramente aquela de Crisipo e dos seus discípulos” (PRADEAU, p.). Por isso, não achamos interessante prosseguir na exposição que Inwood faz sobre o resto da história. Podemos resumir que no século II a. C. houve uma perversão da doutrina. Mas, foi nesse período, como vimos, que os romanos começam a intervir na Grécia. Isso acabou minando o poder das escolas vigentes, as famosas escolas de Aristóteles e Platão, bem como o Jardim de Epicuro. Nesse tempo, o estoicismo já havia avançado por outros territórios e em breve alcançou o espírito romano. Vincent Cheung nos dá uma pista interessante para explicar como o epicurismo impregnou-se nos romanos: Posidônio, um filósofo estoico que viveu de 130 a 50 a. C., foi o instrutor de Cícero, e este último foi um dos grandes divulgadores da filosofia no império romano (CHEUNG, p. 23). Nos primeiros séculos da era cristã já não temos escolas oficiais, mas há mestres e escritores estoicos. A escola acaba ganhando uma cadeira no império, ao lado das cadeiras do epicurismo, aristotelismo e platonismo. Um imperador chega a ser estoico. Mesmo assim, a escola acaba morrendo no império romano cristão. Arrematemos a seção com Chalita: “O estoicismo teve uma longa duração, estendendo-se até o final do século II da era cristã, quando alguns pensadores romanos ainda cultivavam as ideias dos filósofos estóicos, modificadas conforme os interesses individuais, segundo os diferentes momentos históricos e lugares” (CHALITA, p. 77).

A FILOSOFIA DOS ESTOICOS

Com Inwood seguiremos o desenvolvimento máximo da cosmovisão estoica, encontrado em Crisipo e seus seguidores. Talvez, por isso, encontremos divergências para com outros autores (embora, claro, possa ser apenas incompletude de Inwood). Seja como for, buscaremos formular uma exposição completa da filosofia estoica em forma de cosmovisão.
Antes, é interessante notar as informações que Inwood nos concede sobre a teorização filosófica conforme era concebida por Zenão e demais estoicos. A filosofia era exposta dividida em física (metafísica e teologia inclusas), ética e lógica. “Para Zenão, trata-se na realidade de uma divisão do discurso sobre a filosofia mais do que de uma divisão da própria filosofia; outros filósofos (como Sêneca na Carta 89) afirmam com insistência que a filosofia em seu conjunto é uma, e que a divisão em partes é certamente útil, mas totalmente artificial. Podem existir divergências entre os estoicos quanto à ordem de apreensão destas partes. De acordo com eles, esta ordem é em certa medida o efeito de uma convenção; testemunha disso é a necessidade entrecruzar os temas próprios a cada uma das partes do ensino” (PRADEAU, p.). Na verdade, a sabedoria é uma coisa só, uma única disciplina. Sêneca reconhece que a divisão é útil, didática. Zenão entende que se trata de um discurso e não da própria filosofia. Tanto é que não podemos desassociá-las completamente ao discursar sobre cada uma particularmente.
Entretanto, mesmo concordando na utilidade do discurso filosófico fracionado em disciplinas diferentes, não entram em acordo para com a relação entre as partes da filosofia. Propuseram famosas analogias, como registra Inwood, para elucidar a questão: Sabe-se que os estoicos empregavam muitas analogias para descrever a relação das partes da filosofia entre si e em relação com o todo, e a maioria delas implica uma concepção holista e orgânica da filosofia. A única imagem que tende a fazer de uma parte da filosofia um elemento autônomo é aquela que compara a lógica com um tapume que cerca um campo cultivado, no qual a ética designa os frutos que aí crescem, a física as árvores que os carrega ou a terra que produz a colheita. A partir desta imagem, a física aparece em relação íntima e direta com a ética da qual ela recolhe os benefícios (a física é então a árvore que carrega as olivas, ou, antes, a terra onde cresce o trigo), enquanto que a lógica é o instrumento de proteção que parece separado desses benefícios. [...] Mas, em outras analogias, a lógica em seu papel de proteção é muito mais solidária com aquilo que ela defende: ela é a casca do ovo, ou, antes, os ossos e os tendões do corpo animal” (PRADEAU, p. 83-84).

FÍSICA, METAFÍSICA E TEOLOGIA

Comecemos a metafísica dos estoicos por Inwood: “A física estoica é profundamente influenciada pelo Timeu de Platão e pela cosmologia de Aristóteles. O cosmos é uno, é um todo finito, composto pelos quatro elementos fundamentais da matéria (a terra, o ar, o fogo e a água) e seus compostos (os estoicos consideram que existem dois princípios nos elementos: um princípio ativo divino e um princípio inerte, sem qualidade e passivo; mas estes dois fatores ou princípios não são jamais separados um do outro nos corpos)” (PRADEAU, p.). O que temos aqui são conceitos da matéria semelhantes aos de, primeiramente, Empédocles e seus quatro elementos; e, em seguida, o conceito próximo (senão idêntico) aos de Aristóteles e Platão, que concebiam a matéria em si algo próximo ao ápeiron de Anaximandro, ou seja, algo sem qualidades, apenas um ente com propriedade de ser. Esse, aliás, seria o ‘princípio passivo’, inerte, a qual Inwood se refere. Mas esse não é todo o quadro. Precisamos prosseguir para compreender como se dá o segundo princípio.
Quando foi dito que os estoicos foram influenciados por Platão, temos uma informação nova sobre o ateniense: “A exemplo de Platão os estoicos pensam que o cosmos é um ser vivo. No entanto, sua alma é incorpórea: ela é feita de pneuma, uma espécie de sopro composto de ar e de fogo (embora sua natureza seja controvertida no seio da escola)” (PRADEAU, p.). Bom, o que Inwood se esquece é de mencionar que os estoicos eram, aqui, influenciados por Heráclito. Sproul admite isso: “Deram ênfase à ideia de Heráclito do fogo seminal que determina todas as coisas, o logos spermatikos” (SPROUL, p. 54). Temos, pois, a alma do cosmos, algo imaterial, a quem nos referiremos por ‘pneuma’. É algo incorpóreo mas, ao mesmo tempo, lembra o fogo. Um ‘fogo espiritual’, talvez. Talvez aqui tenhamos a ideia do fogo, embora não o admitindo como algo deste mundo, algo material, e novamente voltamos a uma espécie de ápeiron (embora, agora, perfeitamente qualificado; estamos nos referindo apenas à ideia de que é algo que não é deste mundo). Difícil determinar. Inwood mesmo diz que é uma ideia controvertida.
Como já meio que antecipamos, esse pneuma ganha ares pessoais, talvez mero antropomorfismo de alguns, e é responsável pela ‘criação’ do mundo. Percebam a doutrina, segundo expõe Inwood: “os estoicos sustentam a ideia de que há ciclos de criação e de e destruição do universo, sob influência de uma entidade ativa divina, Zeus, responsável tanto pelo fim eventual do cosmos numa conflagração ígnea quanto por sua regeneração a partir do fogo, passando por uma zona úmida, até o reaparecimento dos quatro elementos conhecidos do cosmos” (PRADEAU, p. 84-85). Portanto, não só criação, como deterioração do mundo. Esse logos, portanto, é que determina todas as coisas, como apontou Sproul. A própria matéria emana dele, e para ele volta. Nesse sentido, temos mesmo uma espécie de panteísmo nos estoicos. Vincent Cheung, também admitindo a influência de Heráclito, arremata o conceito: “Provavelmente inspirado por Heráclito [...], os estóicos ensinavam que no princípio não havia nada, mas apenas o fogo eterno, do qual emergiram os elementos que construíram o universo. O mundo seria eventualmente consumido numa conflagração universal e retornaria para o fogo, e assim o ciclo da história iria se repetir eternamente” (CHEUNG, p. 23).
O logos é também o responsável pelo desenvolvimento de todas as coisas. Ele é como um princípio teleológico do mundo. Vincent Cheung, observando a ‘história’ da doutrina do logos, claro, chega aos estoicos, e então diz: “o estoicismo considera o logos um princípio da razão divina, e o logos spermatikoi governa, na forma de sementes e lampejos o fogo divino, o desenvolvimento de cada objeto na natureza” (CHEUNG, 2009, p. 63). Em termos semelhantes, deixando claro a responsabilidade pelo movimento do mundo material, temos Chalita: “O universo, por sua vez, teria um elemento que o organizaria racionalmente: o fogo; esse elemento faria aparecer todas as características da matéria nas diferentes coisas, como a luz solar faz uma semente germinar e crescer” (CHALITA, p. 77). O conceito de semente elucida o que Inwood, logo no começo desta seção, quis dizer por ‘princípio ativo’ nos elementos. É como se o logos ‘semeasse’ as qualidades no princípio passivo, conduzindo-o e levando-o às mudanças diversas, e a adquirir os mais diferenciados predicados.
Cheung admite a teleologia implicada pelo conceito do logos “O fogo divino que permeia todo o mundo é um fogo racional, e o logos ou Razão que determina o curso do universo. Algumas pessoas têm a concepção errônea de que pelo fato do Estoicismo afirmar que todos os eventos são determinados pelo Destino, ele nega, portanto, que haja um propósito na história. Contudo, visto que o logos deles é um fogo inteligente, o Estoicismo pode de fato afirmar uma visão teleológica do universo” (CHEUNG, p. 23). Portanto, não se tratava meramente de uma ‘força’, mas de uma força inteligente, (tal como em Anaxágoras), quiçá pessoal*1.
Aqui, antes de continuarmos na exposição da cosmovisão estoica, temos que lidar com um impasse. Ou os diversos intérpretes estão em franca contradição, ou não compreenderam bem o estoicismo, ou ainda não se expressaram muito bem. Pode ser, ainda, que os autores estejam se referindo às concepções de Zenão ou Cleanto, ao passo que estejamos analisando o desenvolvimento da doutrina em Crisipo*2. Percebam, primeiro, um tipo de informação. Sproul se refere, metafisicamente aos estoicos, da seguinte maneira: “Os estóicos desenvolveram uma cosmologia de materialismo” (SPROUL, p. 54). Portanto, para ele, os estóicos são materialistas, tal como Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Junto a R. C. Sproul, temos Jostein Gaarder no seu clássico ‘O Mundo de Sofia’ (já antecipando nossa discussão antropológica): “... os estóicos também negavam a oposição entre ‘espírito’ e ‘matéria’. Para eles existia apenas uma natureza. Chamamos tal concepção de monismo” (GAARDER, p. 148). Portanto, evidentemente, os estoicos seriam materialistas e monistas. É Inwood que completa o ‘quadro de acusação’: “O cosmos é de fato um todo físico, onde não há nem vazio no interior (embora o cosmos seja cercado por um espaço vazio infinito), nem entidades causais eficientes incorpóreas” (PRADEAU, p.). Portanto, se não há causas eficientes corpóreas, temos um determinismo materialista à lá Demócrito.
No entanto, é o próprio Inwood quem vai nos falar de realidades incorpóreas: “Existem também os incorpóreos no sistema estoico: o vazio, o espaço, o tempo, os ‘exprimíveis’ (lekta), o conteúdo intelectual do discurso e do pensamento*3” (PRADEAU, p. 85). Não bastassem essas, ele mesmo admite a existência do ‘pneuma’, o deus estoico, que cria e destrói a todas as coisas. Não vimos que ele denomina esse pneuma como uma entidade incorpórea? E não foi estudado que é ele a causa eficiente, material, formal e final de todas as coisas? Talvez Inwood tenha intentado dizer que não há espíritos e deuses permeando o cosmos. Mas, transcendendo-o, semelhante à concepção metafísica de Espinoza, temos uma alma, incorpórea, determinadora de todas as coisas, e de onde todas as coisas surge. O conceito pode ser resumido em Charles Hodge: “O universo, portanto [...], do qual Deus é a alma, e a Natureza, o corpo, é vivo, imortal, racional e perfeito. [...] Deus, como o princípio controlador e operativo em todas as coisas, age segundo leis necessárias, totalmente racionais” (HODGE, p. 184).
Aqui nos deparamos com uma possível controvérsia. Vincent Cheung parece negar a transcendência do logos estoico: Os estóicos eram panteístas, de forma que o logos deles não é transcendente, mas imanente” (CHEUNG, p. 23-24). Entretanto, segundo o que temos visto, parece-nos possível conceber algum grau de transcendência tal como uma alma transcende o corpo, entretanto está intimamente associado a ele. A propósito, essa analogia foi, de fato, usada por Sêneca: “Sêneca explica Zeus ou a existência de Deus ao mesmo tempo que o mundo e a alma do mundo, apontando para o homem que se sente como um ser singular e contudo também como constituído de duas substâncias, corpo e alma” (DOLLINGER apud HODGE, p. 241). A analogia só falha pelo fato de que parece ser do próprio ser do logos que se faz o mundo, e onde ele termina. É como se esse ‘fogo’ misterioso transformasse-se na matéria e, em seguida (?), em tudo mais*4.
Podemos, então, falar de antropologia filosófica. Inwood faz uma intrigante afirmação: “Mas a alma, o espírito e deus são entidades causais que interagem com outros corpos; por conseguinte, eles são de natureza material, quer dizer, feitos do pneuma anteriormente mencionado” (PRADEAU, p. 85). Podemos entender ‘deus’ como o pneuma, e ‘espírito’ como parte da ‘alma’, mas não há qualquer indício de distinção, e, a única saída e recorrer ao conceito platônico que vê ‘espírito’ como uma parte da alma; uma alternativa é ver espírito como ‘pneuma’ – afinal, em grego, é esse o termo para espírito – e ‘deus’ como uma entidade diferente, mas isso iria complicar todo o sistema. Buscando conciliar as coisas, versemos sobre ‘deus’ como o pneuma. Sendo assim, claro, há uma relação causal para com o cosmos. Mas, e a alma humana? É certo que há uma interação entre o homem e a natureza. Então começamos a compreender a antropologia dos zenonitas. Inwood lança mais uma sentença nada clara (aliás, o que é comum no livro de Pradeau): “A alma humana perfeita é indiscernível, tanto física quanto moralmente, do ser divino” (PRADEAU, p. 85). É certo que tudo que existe provém do pneuma, e, talvez, nesse sentido, podemos falar de ‘monismo’ dentro de uma concepção panteísta. Mas, claro, há distinções de propriedades entre ‘alma’ e ‘matéria’. Para começar, a mais essencial de todas: a alma é ‘imaterial’. Ao menos a alma do mundo é. E é bem necessário que a alma dos homens o seja, afinal, nela reside os ‘exprimíveis’ e os conteúdos mentais. Retomando os dizeres de Cheung, o logos divino espalha suas sementes no cosmos, e isso não só originando e dirigindo o ‘movimento’ (no sentido antigo da expressão), mas criando pequenas ‘ramificações’, que são as almas humanas: “Esse logos universal produz sementes ou ‘faíscas’, os logoi spermatikoi, em todas as coisas, de modo que cada pessoa tem em si uma faísca do divino” (SPROUL, p. 54). Com essa concepção em mente podemos entender o conceito ‘cosmopolita’ dos estoicos, conforme aponta Gaarder: “Assim como Heráclito, os estóicos diziam que todas as pessoas eram parte de uma mesma razão universal, ou ‘logos’. Eles consideravam cada pessoa um mundo em miniatura, um ‘microcosmo’, que era reflexo do ‘macrocosmo’” (GAARDER, p. 148). Os homens são ‘micro-pneumas’, como ‘chuviscos ígneos’, faíscas do logos criador de todas as coisas (o que muitos, dentro de um contexto religioso politeísta, referiam-se a Zeus). Isso acabou “levando Epitecto a afirmar que existe uma ‘centelha de divindade’ dentro de todo homem” (CHEUNG, p. 24).
E, não podemos refletir adequadamente sobre antropologia filosófica sem lidar com a questão da imortalidade da alma. Quanto a isso, Vincent Cheung nota que “a visão estoica da história parece excluir a imortalidade individual, ainda que pareça haver visões levemente diferentes neste assunto” (CHEUNG, p. 23). Hodge confirma: “A alma dos homens é da mesma natureza que a alma do mundo, mas como existência individual, deixando de existir quando a vida do corpo cessa” (HODGE, p. 184). De uma forma ou de outra tudo que surge no fogo, termina no fogo, inclusive as almas humanas. Então Cheung prossegue, citando Marvin R. Vincent: “Eles negavam a imortalidade universal e perpétua da alma; alguns supondo que ela era englobada na deidade; outros, que ela sobreviveria apenas até a conflagração final; outros, que a imortalidade era restrita apenas aos sábios e bons” (VINCENT apud CHEUNG, p. 23).
Antes de terminar a metafísica, ainda nos resta refletir sobre o determinismo que o sistema implica. Inwood se expressa da seguinte forma: “No sistema estoico, todo acontecimento é causado e determinado por uma cadeia racional e providencial de causas e efeitos, que se reproduz naturalmente a cada ciclo de criação e destruição do cosmos. Somente os corpos podem ser causas ou efeitos” (PRADEAU, p. 85). Temos, aqui, pois, uma história cíclica. Um conceito provavelmente oriundo das filosofias orientais*5. Gaarder se expressa de maneira mais informal, ou menos técnica: “... os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo, a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. [...] Nada acontece por acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de acontecer e de nada adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua porta” (GAARDER, p. 149). Claro, tal conceito irá suscitar críticas de viés ético-existencial que serão usadas pelos adversários do sistema, como Inwood nos conta: “O determinismo causal que caracteriza este sistema físico suscita críticas de seus adversários, mas Crisipo e outros estoicos tiveram sucesso em mostrar que a forma do determinismo que eles defendiam não excluía a responsabilidade moral e a possibilidade de cada um se tornar melhor, como sua própria teoria ética pressupõe” (PRADEAU, p. 85). Com isso, abriremos nossa discussão sobre a ética epicurista. Antes, uma breve exposição epistemológica.

EPISTEMOLOGIA

Os estoicos, tal como Heráclito, os materialistas e Aristóteles, eram empiristas também. Gabriel Chalita apresenta de forma sucinta o conceito: “O conhecimento seria adquirido sempre por meio dos cinco sentidos, que captariam as características dos objetos e dos seres. [...] as ideias e os conceitos sobre qualquer coisa são apenas combinações mentais das informações que o ser humano adquire sensorialmente” (CHALITA, p. 77), ao que Inwood expõe em termos mais formais: “Na medida em que os estoicos acreditam na confiabilidade das percepções sensíveis, e que o conteúdo da percepção pode constituir um fundamento sólido para a formação de conceitos e de inferências, é crucial mostrar a seus adversários (em geral, aos acadêmicos, durante o período cético da escola) que existe pelo menos um tipo de percepção sensível confiável” (PRADEAU, p.). É interessante destacarmos, aqui, um conceito que, posteriormente seria defendido por filósofos como David Hume, e que foi ignorado por Epicuro quando concebeu a existência dos deuses: os conceitos que formulamos são abstrações mentais, junções do que formamos em nossa mente, ou como coloca Chalita, combinações mentais das informações sensíveis. Não são, portanto, necessariamente, realidades concretas (ou quem sabe o sejam, se admitirmos um viés platônico do estoicismo).
Brad Inwood amplia nossa compreensão da epistemologia estoica: “Houve um debate em torno do que se chama de representação compreensível [...] no início do século III a. C., que se prologou até Cícero [..] sem que se possa, porém, reconhecer claramente um vencedor. Os estoicos permaneceram convencidos de que existem percepções sensíveis confiáveis, que contêm seu próprio critério de verdade e que representam as coisas tais como elas são na realidade. [...] A objeção cética consiste sumariamente em afirmar que se pode sempre encontrar e imaginar uma representação errada, indiscernível, de uma representação confiável, de maneira que sua verdade não pode jamais ser asseverada com certeza” (PRADEAU, p. 88). Diferindo-se de Demócrito, e agregados a Epicuro, entendiam que o que nos era informado pelos sentidos de fato, correspondia ao que era a realidade. O que temos na mente é, pois, uma representação do real. Mas os céticos trabalhavam com a questão de que o que é representado em nossa alma ser algo falso. No final das contas, essa discussão não pode ser resolvida apenas na lógica, mas tão somente no campo da disputa das cosmovisões. Tudo dependerá dos pressupostos assumidos e da coerência e abrangência das cosmovisões a que cada conceito é derivado.
Inwood também nos conta que “os estoicos se servem, além disso, da lógica como de um instrumento de defesa nas discussões” (PRADEAU, p.) e, por isso mesmo, ampliaram muito os estudos da lógica, particularmente no que diz respeito à análise de paradoxos e ambiguidades*6. E, por lógica temos todo o conceito do Trivium já organizado pois, como Inwood informa, “ela inclui tanto a retórica quanto a dialética”*7 (PRADEAU, p. 87).

ÉTICA-EXISTENCIAL

Uma ética adequada, coerente, deve estar calcada nos fundamentos da cosmovisão a que pertence. Nisso o estoicismo dá de dez a zero no epicurismo. Da metafísica e antropologia filosófica implicamos a ética. Lembremo-nos que a “razão do homem é vista como sendo do mesmo tipo do fogo eterno, o qual permeia a ordem do mundo” (BAHNSEN apud CHEUNG, p. 24). Portanto, o logos, aquele fogo que permeia o mundo, dirigindo seus passos, é o que habita em todos os homens. A razão humana é a razão do mundo. O curso da natureza, o destino, pois, é o curso da razão. Compreendido isso podemos entender esta citação de
Inwood: “No domínio da ética, os estoicos sustentam uma forma de eudemonismo: o objetivo da vida humana é a realização do fim (telos) que lhe é próprio [Aristóteles]. Este fim consiste em viver em conformidade com a natureza (a nossa natureza e a natureza do cosmos; compreende-se então a importância da ideia segundo a qual nossa natureza é idêntica à potência divina que estrutura o mundo natural)” (PRADEAU, p.). Portanto, a virtude consiste em olhar para a razão que está em nós e no mundo a fim de lhe seguir. É adequar-se, pois, ao logos, tal como existe em nós e fora de nós. Então tomemos Cheung para ampliar a discussão: “Visto que o homem está sujeito às forças imanentes do mundo, ele deve viver em harmonia com a natureza. Visto que a Razão permeia e governa o mundo, viver em harmonia com a natureza é viver em conformidade com a racionalidade, e a racionalidade é superior às emoções. Tudo que está fora da razão deveria ser visto com indiferença, seja o prazer, o sofrimento, ou mesmo a morte” (CHEUNG, p. 24). Nesse sentido parece que os estoicos consideram as paixões, o prazer e a dor, como efeitos não racionais na alma, que devem ser abandonados, desprezados e erradicados, afinal, “o mais elevado fim da vida é a virtude; e a virtude é viver segundo a razão” (HODGE, p. 184).
Isso nos leva ao conceito de apatia. Como já falamos repetidamente, há variantes na doutrina estoica, de modo que teremos dois tipos, pelo menos, de concepção estoica aqui. Uma, de viés mais cínico, é a que Chalita apresenta: “A felicidade, para os estóicos, era um estado de tranquilidade plena, que só podia ser atingido por meio da prática virtuosa. Por sua vez, a virtude era definida como uma negação constante, que consistia na indiferença dirigida a todas as experiências da vida; o estado que seria atingido com esta prática é descrito pelo termo grego apatheia. Em outras palavras, o homem não deveria se preocupar com questões relacionadas com a morte, não deveria se esforçar pelo enriquecimento material, nem deveria sofrer com o cansaço. O único valor, segundo os estóicos, é a sabedoria, que é alcançada com o cultivo do pensamento, que por sua vez é a única atividade em que vale a pena se empenhar. Em resumo, trata-se de uma indiferença direcionada a toda forma de prazer e de sofrimento. Tanto as experiências dolorosas quanto as prazerosas são irracionais, conforme a doutrina do estoicismo, porque são paixões, ou seja, vícios e, portanto, mal supremo” (CHALITA, p. 76). Aqui, evidentemente, temos um ‘q’ aristotélico quando se fala que a atividade máxima seria o cultivo da sabedoria que, para os estoicos, tal como Platão e Aristóteles tomam como sinônimo para sua própria filosofia, corresponde ao estoicismo. Prazer e dor, seguindo a interpretação também de Cheung, perturbam a alma. Não se deve ser afetado de forma alguma. Como Chalita completa: “Ser indiferente, ou seja, não sofrer nem agir por nenhuma paixão, era para os estóicos ser virtuoso. Dessa forma, o máximo da virtude seria alcançado quando o homem ficasse alheio a tudo, vivendo como numa fortaleza interior, tendo como seu tesouro o pensamento e a sabedoria filosófica” (CHALITA, p. 77). Essa perspectiva torna o perseguidor da tranquilidade um sujeito inerte que, de preferência, vive em reclusão e deixa as coisas rolarem. Entretanto, Inwood nos fala de uma corrente dominante (talvez a de Crisipo e seus discípulos), que concebem a coisa em termos um pouco diferentes: “Na corrente dominante do estoicismo, o ideal de vida é muito mais naturalista e é orientado também tanto para ação quanto para a contemplação. Todos os estoicos estão, no entanto, de acordo em afirmar que a virtude humana designa o estado ideal da alma racional unificada; eles subscrevem nesse sentido o ideal socrático do Protágoras ou do Fédon, mais do que o modelo platônico ou aristotélico da harmonização das ‘partes’ da alma entre si, cada uma tendo uma função própria e se comportando de maneira quase autônoma” (PRADEAU, p. 85-86). Ou seja, descartando a ideia de que a há repartições na alma, como o fizeram Platão e Aristóteles, fica definido que há somente um aspecto do homem que precisa ser realizado, levado a cabo: a razão. Mas o que diferencia essa interpretação é que se segue: “Viver de acordo com a natureza significa, por conseguinte, ter uma vida ativa, ter um ideal moral de autogoverno e se esforçar para alcança-lo” (PRADEAU, p. 86). Diferente da inércia cínica proposta na outra, aqui a conformidade com a natureza inclui atividade, embora atividade racional, consciente e em interação com o curso das coisas. Seja como for, todos concordam que é preciso uma vida de reflexão filosófica, contemplação.
Essa vida contemplativa, filosófica tem insinuações que não exploramos muito bem: “A vida completamente conforme à razão é a única vida virtuosa e feliz, e o melhor guia para levar esta vida perfeita e divina, de acordo com Crisipo, é a compreensão dos acontecimentos que ocorrem na natureza” (PRADEAU, p.). Portanto, a questão não é apenas lidar com o prazer e a dor, e sim lidar com o destino. Viver de acordo com a razão, com o logos, e viver de acordo com o curso racional e fixo que o logos mantém o mundo. “Os estoicos da corrente aristoniana parecem mais socráticos do que platônicos nesse ponto; para praticar a virtude, afirmam eles, o homem não tem necessidade de estabelecer uma teoria física elaborada” (PRADEAU, p. ). Eles entendem que não é, pois, preciso conceitos metafísicos elaborados, bastando seguir a vida em aceitação ao que ela traz. Já outros entendiam que um conhecimento da física e, quiçá, da metafísica, poderiam orientar o homem: “A vontade cínica de seguir a natureza mais do que as convenções se torna, nos estoicos eminentes, o esforço de viver em conformidade com esta ordem própria do cosmos regido pela providência” (PRADEAU, p.). Em todo caso, é impossível não pensarmos em Antístenes aqui.

Deixemos Sproul, resumidamente, resumir o que iremos expor de forma mais ampliada (percebam que ele fala a partir da perspectiva de que o estoicismo era materialista): “A preocupação central do estoicismo foi a filosofia moral. A virtude é encontrada na reação da pessoa ao determinismo materialista. O ser humano não pode determinar seu próprio destino. Ele não tem controle sobre o que lhe acontece. Sua liberdade é restrita à sua reação ou atitude interior ao que lhe sobrevém. O objetivo da vida virtuosa é a ataraxia*8 filosófica” (SPROUL, p. 54). Esse conceito de aceitar seu destino com apatia é muito bem trabalhado por Jostein Gaarder: “... os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo, a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. Por esta razão, o homem deveria aprender a aceitar o seu destino. Nada acontece por acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de acontecer e de nada adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua porta. Também as coisa felizes da vida devem ser aceitas pelo homem com grande tranquilidade. Vemos aqui a proximidade dos estóicos com os cínicos, que viam com total indiferença todos esses eventos exteriores. Ainda hoje falamos de uma ‘tranquilidade estóica’ quando queremos nos referir a uma pessoa que não se deixa inflamar por seus sentimentos” (GAARDER, p. 149).
Portanto, a pessoa sábia é aquela que, refletindo, alcança a ciência do curso das coisas, mas também se autoconvence de que não há nada, em muitos casos, a fazer senão aceitar. Por isso Sproul diz: “Os estóicos buscavam a ataraxia pela prática da ‘imperturbabilidade’, a aceitação do destino pessoal com serenidade e coragem. [...] O segredo de uma vida boa e feliz é saber o que está sob o nosso controle e o que não está” (SPROUL, p. 54). A morte e a guerra eram, naqueles tempos, inevitáveis. Por isso, “diante da guerra e da morte inevitável, não há sabedoria a não ser na ataraxia – ‘encarar todas as coisas com serenidade de espírito’” (DURANT, p. 92). Isso mesmo, lutar contra a morte é uma perda de tempo, e só redundará em frustração. Ela, pois, se levanta como o símbolo máximo do que não pode ser evitado e deve ser encarado com naturalidade. Por isso, Durant completa: “... os estóicos achavam que a indiferença filosófica era a única atitude razoável para com a vida na qual a luta pela existência está tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao nível de nossas realizações” (DURANT, p. 90).
Máximas muito interessantes, então, surgem. Epiteto, o escravo, diz: “Não posso escapar à morte, mas será que não posso escapar ao medo dela?” (EPICTETO apud SPROUL, p. 54). Durant também se arrisca num aforisma: “Não procure fazer com que as coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm que acontecer, assim viveras com prosperidade” (DURANT, p. 92). Essa é, pois, a “filosofia da ‘cabeça erguida’, pela qual nada jamais nos abala ou nos faz perder as esperanças” (SPROUL, p. 54). Por isso, “devemos demonstrar autocontrole, autossuficiência e indiferença emocional em meio às situações da vida. Mas se a vida se torna dura demais, o Estoicismo permite o suicídio” (CHEUNG, p. 24). Não estamos certos se essa concessão é, de fato, ortodoxa, visto que o suicídio só pode resultar de uma alma que está completamente afetada pela situação, de modo que está longe da ataraxia. Mas vale a observação de Cheung de que a doutrina implica em autodomínio, autocontrole e autossuficiência.
Fica, clara, pois, a diferença entre estoicos e epicureus, mas Gaarder é pertinente para assinalar e ressaltar a diferença: “O objetivo dos cínicos e dos estóicos era suportar todas as formas de dor, e isto é algo completamente diferente de fazer todo o esforço para tirar do caminho a dor.” (GAARDER, p. 149). Em certo sentido, o estoico também foge da dor, mas não por afastar-se do que traz dor, mas pela apatia.
Subsiste a questão de como educar a alma e alcançar a ataraxia (semelhante a um nirvana). Vamos com Inwood: “Os meios da educação moral que os estoicos conservam parecem estar inspirados em Aristóteles, tornamo-nos corajosos ao realizar ações corajosas, ainda que, à primeira vista, a maioria das ações corajosas não atinja o ideal procurado” (PRADEAU, p. 86). Assim, tal como Aristóteles ensinava que a virtude só pode ser alcançada pela imitação dela mesma, ou seja, na prática da virtude, o estoico dirá que a tranquilidade só pode ser alcançada na busca pela tranquilidade. Esse conceito é importante para livrá-los de uma arapuca que se monta à frente diante do sistema, e que Inwood mesmo nos informa: “Encontramos o mesmo absolutismo paradoxal na psicologia moral dos estoicos: sendo dado que a alma humana é uma (não existe partes irracionais para controlar, trata-se somente de perfazer o exercício de sua razão), a única maneira de preservar sua liberdade contra as perturbações devastadoras e dolorosas que se chamam paixões (pathé) consiste em erradicar pura e simplesmente qualquer erro e qualquer forma de fraqueza moral. Somente o ‘sábio’ pode atingir esse estado; infelizmente os modelos a imitar são, em todo caso, muito pouco numerosos, e Sócrates é a única figura de sábio que não se presta à controvérsia” (PRADEAU, p. 86). Traduzamos o problema da seguinte maneira: a alma só se liberta das perturbações, da dor, quando não é mais afetada pelas paixões. Mas somente a alma já perfeita, da qual não temos muitos exemplos (se é que temos), pode não ser afetada pelas paixões, de modo que todos, no final das contas, estão enredados na situação de afetação e distantes da perfeição. Se você precisa ser perfeito para não ser afetado, como poderá, a partir da situação de suscetível à afetação, tornar-se perfeito se, para isso, é preciso não ser afetado? Podemos colocar ainda de outra forma. A alma só é livre se não houver erros morais, se for apática. Mas só alcança a apatia quem tiver alcançado a perfeição. Portanto, a alma não poderia se erradicar. Como dissemos, o segredo está na busca pela apatia. Através da reflexão a alma irá se tornando cada vez menos afetada até atingir a apatia total, o nirvana estoico. Quanto mais próximo da apatia, mais feliz se é.
Gaarder nos conta que a ideia de que há uma ‘partícula divina’ em todo homem gera a ideia de direito universal e natural: “Isto levou à ideia de um direito universalmente válido, o assim chamado direito natural. O direito natural baseia-se na razão atemporal do homem e do universo e, por isso mesmo, não se modifica no tempo e no espaço. Nesse sentido, os estóicos colocam-se ao lado de Sócrates contra os sofistas. O direito natural vale para todas as pessoas, inclusive para os escravos. Para os estóicos, as legislações dos diferentes Estados não passavam de imitações imperfeitas de um direito cujas bases estavam na própria natureza” (GAARDER, p. 148). Essa é uma implicação muito interessante da doutrina, e não a vimos explorada por outros autores, exceto, talvez, por Franklin Ferreira e Alan Myat: “para os filósofos estóicos, este mesmo princípio cósmico [o logos] permeia todas as coisas e provê o padrão de conduta para o homem racional” (FERREIRA; MYATT, p. 509). Novamente, é possível que seja uma modificação de algum estoico em particular. Seja como for, é perfeitamente adequada. O homem tem valor, naturalmente, por ser, em certo sentido, divino, e, a partir da razão, i. é., da concepção humana do que é bom, deve-se legislar. Lado outro, tudo seria divino num sistema panteísta, talvez, dependendo da interpretação do estoicismo, não tendo uma ‘alma’ semelhante ao logos, mas, certamente, ‘parte’ dele.
Gabriel Chalita e Jostein Gaarder também falam da implicação sociológica do conceito antropológico-filosófico. “Na política, finalmente, há uma única ideia estoica relevante. Eles afirmavam que o homem não pertenceria a um país ou a uma cidade, mas sim que ele seria cidadão do mundo. Essa ideia foi denominada de cosmopolitismo. Assim, afirmou Musônio Rufo, no século I: ‘O mundo é a pátria comum de todos os homens’” (CHALITA, p. 77). Chalita diz que essa seria a única contribuição relevante que fizeram à filosofia política. Gaarder nota que é uma ideia perfeitamente pertinente ao momento imperialista que viviam esses pensadores: “Os estóicos eram marcadamente ‘cosmopolitas’, o que significava que eram filhos legítimos de usa época. Sendo cosmopolitas, eram mais abertos para a cultura contemporânea do que os ‘filósofos de barril’ (os cínicos). Os estóicos chamavam a atenção para a convivência entre as pessoas, interessavam-se por política, e alguns deles chegaram até mesmo a ser estadistas atuantes, como o imperador romano Marco Aurélio (121-180), por exemplo” (GAARDER, p. 148-149).

CRÍTICA

Como estamos falando de Grécia (mesmo de Roma), estamos falando de confronto aberto e sério de ideias. O estoicismo, pois, seria criticado, e teria de se defender. Principalmente por se tornar uma cosmovisão tão importante e, justamente, por se tornar uma cosmovisão. Olharemos, pois, para algumas objeções históricas a esta visão de mundo e para algumas outras questões que ela suscitou. Outras questões, como o problema epistemológico, já foram abordadas no decorrer do texto. É importante irmos vendo o que já temos e um dos grandes problemas do estoicismo é justamente seu empirismo, sem, ao que nos parece, considerar a possibilidade de haver ideias inatas*9.
Uma primeira crítica óbvia é a dos que, contra o determinismo, acreditam que a inércia é a resposta. É como se, pelo fato de as coisas estarem determinadas, fossemos embargados de fazer algo. Observem o relato de Durant: “Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, e estava batendo num escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha sido destinado, por toda a eternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon replicou com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, tinha sido destinado a bater nele por causa dela” (DURANT, p. 90). Essa é, pois, a perspectiva prática ante o determinismo. De fato, não há coação. Mesmo assim, a relação de causa e efeito é preservada de modo que a concepção sobre o mundo ainda é racional.
Uma das críticas mais mordazes que vimos é do próprio Epicuro, segundo nos informa Durant: “Seu ponto de partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer – embora não necessariamente o prazer sensual – é a única finalidade concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade [...] até mesmo um estoico sente um prazer sutil na renúncia” (DURANT, p. 90-91). A essa objeção achamos impossível o estoico fugir. Ela falha, justamente, em não lidar com um fenômeno óbvio: temos, seja lá o que for, ‘receptores’ de paixão, e isso é muito natural no homem. A alma humana não consiste simplesmente em razão. Negar as afeições é negar a própria natureza humana, o que é impossível. Mesmo que tenhamos o maior estoico como exemplar, saberemos que ele sente-se bem, sente prazer, na sua apatia plena.
Agora, finalmente, temos que lidar com uma questão muito corrente, a saber, a de creditar ao cristianismo algum plágio ao estoicismo. Durant, que faz essas estúpidas comparações, é quem nos servirá de base para a crítica: “Em trechos assim, sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética cristã da abnegação, o ideal político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da doutrina estoica flutuando na corrente do pensamento?” (DURANT, p. 92).
Primeiramente, ofereçamos uma resposta à questão da abnegação, da autossuficiência que os cristãos martirizados demonstraram, à sua calma estoica ante a morte. Observemos que, embora todos não sejam destinados ao martírio, só consegue ser martirizado os que eram extremamente piedosos e virtuosos, de modo que seu caráter torna-se padrão para o cristianismo. Bom, em primeiro lugar, longe de estarem apáticos, eles aceitavam com alegria seu destino, cientes de que estariam com Cristo. Além disso, consideravam que Deus é quem guiava seus destinos, e, assim, aquela situação estava sob controle.
Seguimos com Cheung. Observando que o estoico poderia ver uma semelhança de seu ensino em Filipenses 4:12, o filósofo observa que a grande diferença está no verso 13: “Tudo posso naquele que me fortalece” e expõe: “O Cristianismo na verdade ensina a autossuficiência espiritual, emocional e social, sem rejeitar a legitimidade da comunidade; contudo, esta autossuficiência é somente relativa a outros seres humanos, mas não para com Deus, de modo que estamos sempre em necessidade dele [...] Os recursos internos do cristão provêm de Deus, que é distinto do próprio cristão, enquanto que os estóicos buscavam alcançar a autossuficiência absoluta, e não a autossuficiência relativa do cristão. Nós vencemos o mundo e cumprimos nosso propósito não por nós mesmos, mas pelo poder de Deus, o qual opera poderosamente em nós (Colossenses 1:29)” (CHEUNG, p. 25). Tal conceito, pois, faz toda a diferença. Nossa suficiência está em Cristo, e tão somente nele!
Claro, há muitas outras dissemelhanças e Cheung menciona mais algumas: “Este Deus não é um fogo racional imanente panteísta que é parte do universo, mas uma mente transcendente racional que é distinta e o criador do universo. [...] Ele é imanente no sentido de que escolhe exercitar seu poder nos assuntos humanos e naturais, mas ele não é parte desta criação, nem está limitado a ela. E ao contrário da filosofia estoica, não importa quão difícil nossa vida se torne, não há justificativa para cometer o suicídio” (CHEUNG, p. 25).
Durant também fala da escatologia cristã, particularmente a doutrina do inferno ou do fim do mundo ter vindo do estoicismo. Bom, é bem possível que a doutrina do purgatório seja influenciada por esta concepção pagã. “Também para os estóicos gregos, o fogo era um princípio elementar e a alma do mundo, e assim eles ensinaram uma renovação do mundo por meio do fogo” (HODGE, p. 1585). Charles Hodge nos conta da doutrina do purgatório (e não a do inferno) surgindo a partir de ideias gregas do fogo como purificador de todas as coisas. Orígenes parece ser o primeiro a defender essa ideia, mas logo Agostinho iria lhe dar formato doutrinário e Gregório Magno consolidaria tal conceito como doutrina oficial da Igreja (HODGE, p. 1586-1587). Mas as semelhanças com o estoicismo terminam aí.
Como já foi observado, a história, para os estoicos, é cíclica. Além disso, não há existência do homem após a morte, senão a mesma existência no término do ciclo e início do mesmo ciclo. A única diferença entre os ciclos é como os encaramos, como lidamos com o que se nos procede. A alma, não material, parece fugir da causalidade inalienável. Mas isso é tudo. Entretanto, isso faz a visão estoica ser completamente distinta da visão bíblica, conforme salienta Hoekema: “A visão da história dos gregos é incompatível com a visão cristã, que vê história como um cumprimento do propósito de Deus, e como movendo-se em direção a um alvo. Para os escritores da Bíblia, história não é uma série de ciclos repetitivos sem sentido, mas um veículo através do qual Deus realiza seus propósitos para o homem e o universo. A ideia de que a história está se movendo para alvos estabelecidos por Deus, e que o futuro é para ser visto como o cumprimento de promessas feitas no passado, é a contribuição singular dos profetas de Israel” (HOEKEMA, p. 31). O fogo que irá consumir o mundo irá, de fato, renová-lo, mas será de uma vez por todas e para sempre. Não há ciclo, mas linearidade.
E há total relevância do que se faz enquanto no presente, determinando o que se passará no futuro. Isso, aliás, alavanca uma pesada crítica que John Marsh faz, de cunho existencialista, a esta cosmovisão: “Além disso, se tudo que pode acontecer é a constante repetição de um ciclo de eventos, não há possibilidade de sentido no ciclo em si. Ele não alcança nada em si próprio e também não pode contribuir para nada fora de si. Os eventos da história são destituídos de significado” (MARSH apud HOEKEMA, p. 30). Afinal, por que a história é cíclica? Por que esse deus estoico não cessa de destruir e reconstruir o mundo, da mesma forma? Qual o objetivo disso tudo? Sem resposta a tal fenômeno, a cosmovisão peca por falta de abrangência.

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Aliás, temos de concebê-la pessoal, afinal, por que é que o mundo surge e é destruído? Seria uma escolha do pneuma?
*2 Nossa suspeita é ampliada por conta de uma afirmação de Durant que, embora mencione algo que só iremos estudar noutra seção, vale a pena ser citada: “Zenon ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental” (DURANT, p. 90). Isso, levado em conta que Crisipo desenvolveu a cosmovisão estoica e a defendeu de seus opositores, nos leva a pensar em reformulações posteriores a Zenão.
Hodge afirma categoricamente que o monismo era adotado inicialmente, mas fora abandonado nas formulações posteriores, não dizendo, no entanto, exatamente quando a metafísica foi alterada: “É sobejamente claro que os estóicos posteriores, especialmente entre os latinos, como Sêneca e Marcos Aurélio, consideravam o princípio geral que animava a matéria como tendo todos os atributos da mente” (HODGE, p. 248).
*3 o ‘conteúdo do pensamento’ são as ideias. Será que eles concebiam-nas existindo à parte das coisas, tal como Platão?
*4 É claro, também podemos conceber a matéria eterna sendo apenas fecundada pelo logos de modo a ganhar propriedades. Mas esse não parece ser exatamente o conteúdo dos estóicos, embora não nos espantássemos com alguém alegando tal interpretação. E não é que Charles Hodge assim expõe o estoicismo? Vejam, ele expõe o estoicismo, primeiro, considerando-o, além de panteísta, hilozoísta (i. é., acredita numa ‘força inteligente, viva’ dentro da matéria), de modo que o logos está em todas as coisas: “Há dois princípios constituintes do universo, um ativo e outro passivo. O princípio passivo é a matéria sem forma e sem propriedades, ou seja, inerte. O princípio ativo é a mente, que habita na matéria seu poder formativo organizador, ou seja, Deus. [...] O universo deve, portanto, ser considerado sobre três aspectos: (a) Como o poder formador de tudo [...] (b) o mundo, como formado por esse princípio vivo, interior [...] (c) a identidade dos dois, quando formam um todo” (HODGE, p. 184). Bem adiante, temos uma clara admissão, de um autor citado por Hodge, que pensa-se na matéria eterna e o logos servindo como causa eficiente, formal e final, mas não material: “A deidade em ação, se podemos assim falar, é um certo éter ou fogo ativo, possuindo inteligência. Este deu forma, no princípio, ao caos original, e, formando uma parte essencial do universo, sustenta sua ordem” (BRYANT apud HODGE, p. 1585).
*5 Cf. o capítulo 7 do brilhante livro de James W. Sire denominado ‘O Universo ao Lado’. Hodge diz claramente que o conceito é hindu: “Os estóicos adotaram a doutrina hindu da dissolução de todas as coisas e do redesenvolvimento de Deus no mundo, depois de longos períodos sucessivos” (HODGE, p. 241).
*6 Infelizmente não é possível colocar as contribuições dos estoicos aqui sem causar enfado. Esta é uma exposição dos conceitos essenciais dos estoicos e basta-nos saber que eles apreciava a disciplina de forma geral.
*7 Quanto à semântica, também lograram-nos elucubrações. Entretanto, ficaram um tanto quanto controversas na exposição de Inwood e, por isso, resolvemos exilá-las do corpo do texto, trazendo-as para o rodapé: “Os estoicos desenvolvem uma teoria semântica complexa, fundada no conceito de exprimível (lekton), e são os primeiros a se interessar pelo conteúdo dos enunciados e dos pensamentos enquanto tais (contrariamente a Aristóteles e a Platão, para quem o sentido da proposição reside na predicação de uma propriedade)” (PRADEAU, p. 87). Os estoicos, segundo Inwood, falam do ‘exprimível’, o que parece se referir ao conceito concebível e que pode ser comunicado. Eles ocuparam-se de estudar os conceitos enquanto conceitos apenas, ao passo que Aristóteles e Platão, diz o autor, falavam do sentido de algo enquanto predicação de uma propriedade. Portanto, um conceito teria sentido enquanto fosse as qualidades de algo sendo comunicado em uma proposição. Isso ficou estranho pois nos parece que Platão concebia os conceitos como conceitos mesmo, como ideias.
Sendo assim, Inwood parece falar de conceitos existindo por si, sem conexão com o mundo para terem significado de forma que não precisem ser predicados para ganharem-no. Mas isso demanda uma metafísica plantonista. Lado outro, eram empiristas, e os conceitos seriam abstrações e junções do percebido.
*8 “A palavra grega pode ser traduzida mais ou menos como ‘paz interior’ ou ‘tranquilidade da alma’” (SPROUL, p. 54).
*9 Lembremo-nos, novamente, que tal ponto foi devidamente trabalhado no artigo sobre epistemologia em Platão.

REFERÊNCIAS

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

CHEUNG, Vincent. Confrontações Pressuposicionalistas. Tradução de Felipe Sabido de Araújo Neto e Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2006, 83 páginas (e-book).

CHEUNG, Vincent. Questões Últimas. Tradução de Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2009. 143 p.

DURANT, Will. A História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.

FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, 1220p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo:Editora Hagnos, 2001. 1777p.

HOEKEMA, Anthony A. A Bíblia e o Futuro. Tradução de Karl H. Kepler. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, 391 p. (e-book).

INWOOD, Brad. O estoicismo _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução e Apêndice de Maria Lacerda de Moura; Introdução de Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, 88p.

SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.