Pois bem, o movimento foi
criado por Zenão de Chipre. Mas antes de estudar os estóicos, temos que estudar
uma escola que os precedeu, e que muito os influenciou: os cínicos, um movimento
filosófico criado por um dos discípulos de Sócrates chamado Antístenes.
Antístenes é pra Zenão o que Aristipo é para Epicuro. Gaarder e Chalita
reconhecem a influência dos cínicos sobre os estóicos: “Os cínicos foram de
grande importância para a filosofia estoica”(GAARDER, p. 148) e “As ideias dos
estóicos foram influenciadas por uma corrente de pensamento que se desenvolveu
na mesma época de Sócrates: o cinismo. Fundada por Antístenes (445? – 365 a.
C.), um ateniense que conheceu o grande filósofo [Sócrates]” (CHALITA, p. 78).
Veremos o porquê.
O estoicismo nasce, em
Atenas, no final do século IV a. C., o século macedônico da Grécia, com Zenão.
Inwood entende que Zenão nasceu em 334 e morreu em 262 a. C. (PRADEAU, p. 80).
Chalita suspeita da data 320 a 250 a. C. (CHALITA, p. 76). Ambos, nas mesmas
páginas, indicam que ele nasceu em Cítio (ou Cício), na ilha de Chipre.
Chalita nos informa que
“Zenão entrou em contato com a filosofia por meio de textos trazidos de Atenas
por seu pai, um comerciante” (CHALITA, p. 76). Chalita prossegue dizendo que
“Posteriormente, ele se transferiu para Atenas, onde começou a ensinar próximo
ao pórtico da cidade” (CHALITA, p. 76), mas isso pula informações importantes,
concedidas a nós por Inwood. Antes, Gaarder nos diz que Zenão “se transferiu
para Atenas depois de ter sobrevivido a um naufrágio” (GAARDER, p. 148). Quem
sabe o naufrágio tenha-o despertado à reflexão sobre a vida. Ou seria um
naufrágio no caminho à cidade de Atenas? Seja como for, Brad Inwood nos conta que,
antes de começar a ensinar, Zenão foi “seduzido pela leitura das ‘obras
socráticas’, ele foi para Atenas a fim de aprofundar seus conhecimentos. Ele
sentiu um verdadeiro choque com a leitura pública de algumas partes do livro II
das Memórias de Xenofonte (430-355 a. C.) e perguntou onde poderia encontrar
homens como o Sócrates (469-399 a. C.) que se acabava de descrever. Crates de
Tebas (368/365-288/255 a. C.), filósofo cínico renomado, foi-lhe designado.
Levado por seu entusiasmo socrático, Zenão se devotou aos ideais da filosofia
cínica: ele tomou a decisão de viver ‘em conformidade com a natureza’ e de
repensar as convenções da sociedade civil a partir de seus fundamento”
(PRADEAU, p. 80). Isso mesmo! Zenão não apenas estudou o cinismo, como aprendeu
filosofia aos pés de um mestre cínico, e chegou a viver como um verdadeiro
discípulo de Antístenes. Por isso, antes de continuarmos com os estóicos, temos
que fazer uma pequena digressão e estudar os cínicos. Só então poderemos voltar
e compreender melhor o estoicismo.
Antístenes foi um fiel
discípulo de Sócrates. Maria Lacerda de Moura parece considera-lo o mais fiel
seguidor do sábio de Atenas. “Antístenes, durante o processo de Sócrates e os
dias que se seguiram à sua condenação, desesperado diante do inevitável,
revoltado, louco de dor, fugiu a toda e qualquer presença, par apenas viver
junto de Sócrates até os últimos momentos do filósofo. Depois, fugiu de toda
gente, na angústia de uma perturbação irritante contra a maldade, a
incompreensão e imbecilidade humana que condenam um Sócrates, cuja pureza
ninguém queria ver” (PLATÃO, p. 70-71). Talvez a conturbação tenha-o feito
imaginar que a apatia ante as coisas seria a solução para a felicidade. Ele
deve ter se lembrado de um evento com Sócrates que certamente fertilizou sua
mente, fazendo germinar o ‘cinismo’: “Conta-se que, um dia, Sócrates parou
diante de uma tenda do mercado em que estavam expostas diversas mercadorias.
Depois de algum tempo, ele exclamou: ‘Vejam quantas coisas o ateniense precisa
para viver!’. Naturalmente ele queria dizer com isto que ele próprio não
precisava de nada daquilo” (GAARDER, p. 147).
Pois bem, o que Antístenes
ensinava? Gaarder esclarece: “Os cínicos diziam que a verdadeira felicidade não
depende de fatores externos como o luxo, o poder político e a boa saúde. Para
eles, a verdadeira felicidade consistia em se libertar dessas coisas causais e
efêmeras. E justamente porque a felicidade não estava nessas coisas ela podia
ser alcançada por todos. E, uma vez alcançada, não podia mais ser perdida”
(GAARDER, p. 147). É importante destacarmos que, uma vez que a felicidade não
dependia de algo que apenas poucos possuíam, como saúde, riquezas e status,
antes dependia da competência racional que todos tinham para se tornarem
‘cínicos’, ela era de alcance universal. Aqui percebemos as raízes socráticas
do pensamento de Antístenes. Ele credita a felicidade à competência universal
dos homens, à razão humana. É, pois, algo de caráter universal. Chalita
completa a doutrina: “o pensamento cínico pregava que a maior virtude que um
homem podia atingir era a independência frente a todos os acontecimentos da
vida. Isso significava libertar-se dos costumes e das normas sociais por meio
da satisfação apenas das necessidades absolutamente vitais, como a alimentação
e o sono; todas as outras, impostas pelas regras sociais, deveriam ser
desprezadas” (CHALITA, p. 78). Para ele, pois, as coisas que nos faziam pensar
serem necessárias para a felicidade seriam, na verdade, um construto social, um
anseio artificial criado por homens, iludidos, buscando ídolos para satisfazer
a ‘irrealização’ presente em seus corações (observem que as inquietações
existenciais estão, novamente, presentes em outro filósofo da antiguidade). O
anseio por riquezas, status e até saúde são impressos em nossos corações pela
cultura em que vivemos, ensinava Antístenes.
Acontece que Chalita ensina
que alimentar-se e dormir seriam coisas lícitas de se buscar. E, no final das
contas, todas as lutas das pessoas banais não são fruto justamente dessa busca?
Querem dormir melhor, mais confortavelmente, e comer bem, bem como garantir
esses dois. Seja como for, Gaarder amplia e torna a visão cínica ainda mais
radical: “Os cínicos achavam que as pessoas não precisavam se preocupar com a
saúde, nem mesmo com o sofrimento e com a morte. E elas também não deveriam se
atormentar com o sofrimento dos outros” (GAARDER, p. 148). Ou seja, a paz é
alcançada quando não se importa com nada mais além da mera sobrevivência. Essa
parece a proposta de Antístenes.
Antístenes, enquanto o mestre
ainda vivia, não se deu a ensinar e ter discípulos. Por isso Moura relata que
Antístenes dizia: “Quando uma época tem a felicidade de possuir um Sócrates, é
só a ele que convém escutar [...] Aprendereis comigo daquele que me ensina; a
água é mais fresca e mais sã, quando bebida na fonte” (ANTÍSTENES apud PLATÃO,
p. 73) e prossegue: “E Antístenes não teve discípulos enquanto Sócrates viveu.
[...] Morava no Pireu. Todas as manhãs andava quarenta estádios para ouvir Sócrates.
Platão não foi tão longe...” (PLATÃO, p. 73). Mas é claro, logo tal discípulo
comprometido iria angariar discípulos.
Alguém, além de Zenão, viveu
ao extremo essa filosofia: “Diógenes (século IVa .C.), o cínico mais famoso,
levou esse ideal às últimas consequências, vivendo em absoluta pobreza. Há
histórias que afirmam que ele chegou a viver dentro de um barril, nu, e que
ridicularizava a todos os cidadãos e seus hábitos com um humor implacável”
(CHALITA, p. 78). Talvez zombasse deles, pra lá e pra cá, ávidos em conseguir
coisas, mirando objetivos que não eram melhores que as miragens dos viajantes
do deserto. Gaarder nos conta uma interessante histórica sobre Diógenes:
“Conta-se que ele vivia dentro de um barril e não
possuía mais do que uma túnica,
um cajado e um embornal de pão. [...] Um dia, quando estava sentado ao sol
junto ao seu barril, recebeu a visita de Alexandre Magno. Alexandre
aproximou-se do sábio, perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que,
caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. Ao que Diógenes
respondeu: ‘Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol’. Com isto Diógenes
mostrou que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Ele tinha
tudo o que desejava” (GAARDER, p. 147-148).
Inwood diz que, “em seu
começo, ele [o estoicismo] se restringiu à atividade filosófica do fundador da
escola” (PRADEAU, p. 80), ou seja, entendemos com isso que não havia mestres
tão cedo do estoicismo. Talvez seus bons discípulos tenham vindo depois. O
certo é que “ele reunia seus ouvintes debaixo de um pórtico. O substantivo
estoico vem da palavra grega para ‘pórtico’ (stoa)” (GAARDER, p. 148).
Depois de um tempo como
cínico, Zenão continuou a filosofar, e a estudar, e abandonou o ideal de Antístenes,
conforme nota Inwood: “Somente muito mais tarde, depois de pesquisas
aprofundadas em vários domínios da filosofia, foi que Zenão fundou uma escola
que se comprometia na via de uma ciência universal. Essas ciências compreendia
a física, aí incluídas a cosmologia e a teologia, a análise dos modos formais
de raciocínio e da epistemologia, assim como uma determinada abordagem da ética
e da política, onde se sustenta valores civis ao mesmo tempo em que se
repensava seu fundamento” (PRADEAU, p. 80). Ou seja, Zenão tinha pretensões de
desenvolver uma cosmovisão completa. Ele não poderia ter conceitos tão
simplesmente ético-existenciais. Era preciso refletir sobre o mundo, sobre os
homens, sobre as relações humanas e sobre os próprios pensamentos.
Inwood prossegue dizendo que
“em seu começo a escola era pequena. Na realidade, os primeiros discípulos de
Zenão forma chamados mais de ‘zenonitas’ do que ‘estoicos’, enquanto que os
discípulos de Epicuro (341-270 a. C.) foram desde o início chamados de ‘epicuristas’”
(PRADEAU, p. 81). Mas esse tímido movimento prosseguiu, ganhou caráter próprio
e vida além do mestre, como segue informando Inwood: “mas o movimento fundado
por Zenão sobreviveu ao seu fundador e adquiriu uma identidade independente. Os
filósofo que escolheram seguir Zenão em vida formavam um conjunto heteróclito.
Alguns eram, por exemplo, encarregados da tarefa frequentemente ingrata de
conselheiros políticos [...] Outros discípulos de Zenão foram menos fiéis aos
princípios filosóficos de seu mestre...”” (PRADEAU, p. 81).
Dentre os famosos estoicos,
conhecemos aquele que viveram já a partir do primeiro século da era cristã em
diante. Sêneca, o escravo Epíteto e o imperador Marco Aurélio são os mais celebrados.
Entretanto, segundo Brad Inwood, “os mais célebres discípulos de Zenão foram
incontestavelmente Cleanto de Assos (331/330-225/220 a. C.) e Ariston de Quios
[nasceu por volta de 300 e não se sabe quando morreu] [...], dois rivais cujas
interpretações da herança zenoniana diferiam sensivelmente” (PRADEAU, p.).
Percebam, pois, que, já no início a própria ortodoxia zenonita (ou seja,
estoica) havia uma disputa. Aliás, a disputa era justamente em definir a
ortodoxia.
Quanto a Ariston, Inwood diz:
“Como Herillus de Cartago, Ariston pensava que o coração das doutrinas da
escola era a ética num sentido muito preciso, quer dizer, uma ética socrática
de inspiração cínica” (PRADEAU, p.). Portanto, nesse sentido, o estoicismo não
teria necessariamente uma cosmovisão, ou, pelo menos, a teria toda voltada para
a ética.
Cleanto, por sua vez, “ao
contrário, afirmava que a escola devia considerar a física, a teologia, mas
também a epistemologia e a lógica como objetos de estudo da mesma importância
da ética. Ele se esforçou para encontrar uma combinação satisfatória entre
estes domínios de estudos que iria caracterizar a escola” (PRADEAU, p.) Ou
seja, Cleanto seguia a proposta do mestre, como vimos, e buscou formar uma
cosmovisão coerente dentro do estoicismo.
Bom, como Cleanto seguiu a
proposta do mestre, estava ali a ortodoxia. Sendo assim “não é, portanto, de
admirar que Ariston se tenha distanciado da escola estoica para libertar seu
próprio ensino. Seus discípulos eram chamados de ‘aristonianos’, mas eles não
foram muitos, e a influência da escola de Ariston não durou” (PRADEAU, p.)
Entretanto, como veremos adiante, a escola acabou adotando uma postura mais
aristoniana no futuro mais distante.
Inwood ainda nos diz que
“Cleanto permaneceu à cabeça da escola quando da morte de Zenão em 262/261 a.
C., durante trinta e dois anos até sua própria morte em 230/299 a. C.”
(PRADEAU, p.). Portanto, a fidelidade aos princípios do mestre garantiu a
Cleanto a sequência na administração da casa.
Mas o desenvolvimento da
filosofia estoica não estava em Cleanto, mas em seu discípulo Crisipo: “Seu
discípulo Crisipo de Soles (281/278-208/205 a. C.) assumiu as teses de Cleanto
([...] a propósito da tradição estoica e as desenvolveu”. Inwood amplia muito
nosso conhecimento sobre Crisipo: “Depois de um período em que ele ministrou
seu ensino de maneira autônoma, Crisipo reacendeu a chama da Escola. Ele se
preocupava em permanecer fora da política, diferentemente dos primeiros
estoicos; ele era, por outro lado, vigorosamente contrário à intepretação
aristoniana do estoicismo. [...] Ele é conhecido por ter defendido com
entusiasmo a concepção zenonista da epistemologia estoica (que mistura uma
crença na possibilidade de um saber inabalável com posições materialistas e
empiristas) contra a Academia”(PRADEAU, p. 81-82). Portanto, foi não apenas um
sistematizador, mas também um apologista do estoicismo.
É aqui, em Crisipo, que temos
a resolução máxima do estoicismo. Mais adiante Inwood irá dizer: “Ainda que as
doutrinas da escola tenham evoluído consideravelmente durante os quinhentos
anos de sua existência, a versão mais acabada e mais influente do estoicismo
permanece seguramente aquela de Crisipo e dos seus discípulos” (PRADEAU, p.).
Por isso, não achamos interessante prosseguir na exposição que Inwood faz sobre
o resto da história. Podemos resumir que no século II a. C. houve uma perversão
da doutrina. Mas, foi nesse período, como vimos, que os romanos começam a
intervir na Grécia. Isso acabou minando o poder das escolas vigentes, as
famosas escolas de Aristóteles e Platão, bem como o Jardim de Epicuro. Nesse
tempo, o estoicismo já havia avançado por outros territórios e em breve
alcançou o espírito romano. Vincent Cheung nos dá uma pista interessante para
explicar como o epicurismo impregnou-se nos romanos: Posidônio, um filósofo
estoico que viveu de 130 a 50 a. C., foi o instrutor de Cícero, e este último
foi um dos grandes divulgadores da filosofia no império romano (CHEUNG, p. 23).
Nos primeiros séculos da era cristã já não temos escolas oficiais, mas há
mestres e escritores estoicos. A escola acaba ganhando uma cadeira no império,
ao lado das cadeiras do epicurismo, aristotelismo e platonismo. Um imperador
chega a ser estoico. Mesmo assim, a escola acaba morrendo no império romano
cristão. Arrematemos a seção com Chalita: “O estoicismo teve uma longa duração,
estendendo-se até o final do século II da era cristã, quando alguns pensadores
romanos ainda cultivavam as ideias dos filósofos estóicos, modificadas conforme
os interesses individuais, segundo os diferentes momentos históricos e lugares”
(CHALITA, p. 77).
Com Inwood seguiremos o
desenvolvimento máximo da cosmovisão estoica, encontrado em Crisipo e seus
seguidores. Talvez, por isso, encontremos divergências para com outros autores
(embora, claro, possa ser apenas incompletude de Inwood). Seja como for,
buscaremos formular uma exposição completa da filosofia estoica em forma de
cosmovisão.
Antes, é interessante notar
as informações que Inwood nos concede sobre a teorização filosófica conforme
era concebida por Zenão e demais estoicos. A filosofia era exposta dividida em
física (metafísica e teologia inclusas), ética e lógica. “Para Zenão, trata-se
na realidade de uma divisão do discurso sobre a filosofia mais do que de uma
divisão da própria filosofia; outros filósofos (como Sêneca na Carta 89) afirmam com insistência que a filosofia em seu conjunto é uma, e que a divisão em
partes é certamente útil, mas totalmente artificial. Podem existir divergências
entre os estoicos quanto à ordem de apreensão destas partes. De acordo com
eles, esta ordem é em certa medida o efeito de uma convenção; testemunha disso
é a necessidade entrecruzar os temas próprios a cada uma das partes do ensino”
(PRADEAU, p.). Na verdade, a sabedoria é uma coisa só, uma única disciplina.
Sêneca reconhece que a divisão é útil, didática. Zenão entende que se trata de
um discurso e não da própria filosofia. Tanto é que não podemos desassociá-las
completamente ao discursar sobre cada uma particularmente.
Entretanto, mesmo concordando
na utilidade do discurso filosófico fracionado em disciplinas diferentes, não
entram em acordo para com a relação entre as partes da filosofia. Propuseram
famosas analogias, como registra Inwood, para elucidar a questão: Sabe-se que
os estoicos empregavam muitas analogias para descrever a relação das partes da
filosofia entre si e em relação com o todo, e a maioria delas implica uma
concepção holista e orgânica da filosofia. A única imagem que tende a fazer de
uma parte da filosofia um elemento autônomo é aquela que compara a lógica com
um tapume que cerca um campo cultivado, no qual a ética designa os frutos que
aí crescem, a física as árvores que os carrega ou a terra que produz a
colheita. A partir desta imagem, a física aparece em relação íntima e direta
com a ética da qual ela recolhe os benefícios (a física é então a árvore que
carrega as olivas, ou, antes, a terra onde cresce o trigo), enquanto que a
lógica é o instrumento de proteção que parece separado desses benefícios. [...]
Mas, em outras analogias, a lógica em seu papel de proteção é muito mais
solidária com aquilo que ela defende: ela é a casca do ovo, ou, antes, os ossos
e os tendões do corpo animal” (PRADEAU, p. 83-84).
FÍSICA, METAFÍSICA E TEOLOGIA
Comecemos a metafísica dos
estoicos por Inwood: “A física estoica é profundamente influenciada pelo Timeu
de Platão e pela cosmologia de Aristóteles. O cosmos é uno, é um todo finito,
composto pelos quatro elementos fundamentais da matéria (a terra, o ar, o fogo
e a água) e seus compostos (os estoicos consideram que existem dois princípios
nos elementos: um princípio ativo divino e um princípio inerte, sem qualidade e
passivo; mas estes dois fatores ou princípios não são jamais separados um do
outro nos corpos)” (PRADEAU, p.). O que temos aqui são conceitos da matéria
semelhantes aos de, primeiramente, Empédocles e seus quatro elementos; e, em
seguida, o conceito próximo (senão idêntico) aos de Aristóteles e Platão, que
concebiam a matéria em si algo próximo ao ápeiron de Anaximandro, ou seja, algo
sem qualidades, apenas um ente com propriedade de ser. Esse, aliás, seria o
‘princípio passivo’, inerte, a qual Inwood se refere. Mas esse não é todo o
quadro. Precisamos prosseguir para compreender como se dá o segundo princípio.
Quando foi dito que os
estoicos foram influenciados por Platão, temos uma informação nova sobre o
ateniense: “A exemplo de Platão os estoicos pensam que o cosmos é um ser vivo.
No entanto, sua alma é incorpórea: ela é feita de pneuma, uma espécie de sopro
composto de ar e de fogo (embora sua natureza seja controvertida no seio da
escola)” (PRADEAU, p.). Bom, o que Inwood se esquece é de mencionar que os
estoicos eram, aqui, influenciados por Heráclito. Sproul admite isso: “Deram
ênfase à ideia de Heráclito do fogo seminal que determina todas as coisas, o
logos spermatikos” (SPROUL, p. 54). Temos, pois, a alma do cosmos, algo
imaterial, a quem nos referiremos por ‘pneuma’. É algo incorpóreo mas, ao mesmo
tempo, lembra o fogo. Um ‘fogo espiritual’, talvez. Talvez aqui tenhamos a
ideia do fogo, embora não o admitindo como algo deste mundo, algo material, e
novamente voltamos a uma espécie de ápeiron (embora, agora, perfeitamente
qualificado; estamos nos referindo apenas à ideia de que é algo que não é deste
mundo). Difícil determinar. Inwood mesmo diz que é uma ideia controvertida.
Como já meio que antecipamos,
esse pneuma ganha ares pessoais, talvez mero antropomorfismo de alguns, e é
responsável pela ‘criação’ do mundo. Percebam a doutrina, segundo expõe Inwood:
“os estoicos sustentam a ideia de que há ciclos de criação e de e destruição do
universo, sob influência de uma entidade ativa divina, Zeus, responsável tanto
pelo fim eventual do cosmos numa conflagração ígnea quanto por sua regeneração
a partir do fogo, passando por uma zona úmida, até o reaparecimento dos quatro
elementos conhecidos do cosmos” (PRADEAU, p. 84-85). Portanto, não só criação,
como deterioração do mundo. Esse logos, portanto, é que determina todas as
coisas, como apontou Sproul. A própria matéria emana dele, e para ele volta.
Nesse sentido, temos mesmo uma espécie de panteísmo nos estoicos. Vincent
Cheung, também admitindo a influência de Heráclito, arremata o conceito: “Provavelmente
inspirado por Heráclito [...], os estóicos ensinavam que no princípio não havia
nada, mas apenas o fogo eterno, do qual emergiram os elementos que construíram
o universo. O mundo seria eventualmente consumido numa conflagração universal e
retornaria para o fogo, e assim o ciclo da história iria se repetir
eternamente” (CHEUNG, p. 23).
O logos é também o
responsável pelo desenvolvimento de todas as coisas. Ele é como um princípio
teleológico do mundo. Vincent Cheung, observando a ‘história’ da doutrina do
logos, claro, chega aos estoicos, e então diz: “o estoicismo considera o logos
um princípio da razão divina, e o logos spermatikoi governa, na forma de
sementes e lampejos o fogo divino, o desenvolvimento de cada objeto na
natureza” (CHEUNG, 2009, p. 63). Em termos semelhantes, deixando claro a
responsabilidade pelo movimento do mundo material, temos Chalita: “O universo,
por sua vez, teria um elemento que o organizaria racionalmente: o fogo; esse
elemento faria aparecer todas as características da matéria nas diferentes
coisas, como a luz solar faz uma semente germinar e crescer” (CHALITA, p. 77).
O conceito de semente elucida o que Inwood, logo no começo desta seção, quis
dizer por ‘princípio ativo’ nos elementos. É como se o logos ‘semeasse’ as
qualidades no princípio passivo, conduzindo-o e levando-o às mudanças diversas,
e a adquirir os mais diferenciados predicados.
Cheung admite a teleologia
implicada pelo conceito do logos “O fogo divino que permeia todo o mundo é um
fogo racional, e o logos ou Razão que determina o curso do universo. Algumas
pessoas têm a concepção errônea de que pelo fato do Estoicismo afirmar que
todos os eventos são determinados pelo Destino, ele nega, portanto, que haja um
propósito na história. Contudo, visto que o logos deles é um fogo inteligente,
o Estoicismo pode de fato afirmar uma visão teleológica do universo” (CHEUNG,
p. 23). Portanto, não se tratava meramente de uma ‘força’, mas de uma força
inteligente, (tal como em Anaxágoras), quiçá pessoal*1.
Aqui, antes de continuarmos
na exposição da cosmovisão estoica, temos que lidar com um impasse. Ou os
diversos intérpretes estão em franca contradição, ou não compreenderam bem o
estoicismo, ou ainda não se expressaram muito bem. Pode ser, ainda, que os
autores estejam se referindo às concepções de Zenão ou Cleanto, ao passo que
estejamos analisando o desenvolvimento da doutrina em Crisipo*2. Percebam,
primeiro, um tipo de informação. Sproul se refere, metafisicamente aos
estoicos, da seguinte maneira: “Os estóicos desenvolveram uma cosmologia de
materialismo” (SPROUL, p. 54). Portanto, para ele, os estóicos são
materialistas, tal como Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Junto a R. C.
Sproul, temos Jostein Gaarder no seu clássico ‘O Mundo de Sofia’ (já
antecipando nossa discussão antropológica): “... os estóicos também negavam a
oposição entre ‘espírito’ e ‘matéria’. Para eles existia apenas uma natureza.
Chamamos tal concepção de monismo” (GAARDER, p. 148). Portanto, evidentemente,
os estoicos seriam materialistas e monistas. É Inwood que completa o ‘quadro de
acusação’: “O cosmos é de fato um todo físico, onde não há nem vazio no
interior (embora o cosmos seja cercado por um espaço vazio infinito), nem
entidades causais eficientes incorpóreas” (PRADEAU, p.). Portanto, se não há
causas eficientes corpóreas, temos um determinismo materialista à lá Demócrito.
No entanto, é o próprio
Inwood quem vai nos falar de realidades incorpóreas: “Existem também os
incorpóreos no sistema estoico: o vazio, o espaço, o tempo, os ‘exprimíveis’
(lekta), o conteúdo intelectual do discurso e do pensamento*3” (PRADEAU, p. 85).
Não bastassem essas, ele mesmo admite a existência do ‘pneuma’, o deus estoico,
que cria e destrói a todas as coisas. Não vimos que ele denomina esse pneuma
como uma entidade incorpórea? E não foi estudado que é ele a causa eficiente,
material, formal e final de todas as coisas? Talvez Inwood tenha intentado
dizer que não há espíritos e deuses permeando o cosmos. Mas, transcendendo-o,
semelhante à concepção metafísica de Espinoza, temos uma alma, incorpórea,
determinadora de todas as coisas, e de onde todas as coisas surge. O conceito
pode ser resumido em Charles Hodge: “O universo, portanto [...], do qual Deus é
a alma, e a Natureza, o corpo, é vivo, imortal, racional e perfeito. [...]
Deus, como o princípio controlador e operativo em todas as coisas, age segundo
leis necessárias, totalmente racionais” (HODGE, p. 184).
Aqui nos deparamos com uma
possível controvérsia. Vincent Cheung parece negar a transcendência do logos estoico:
Os estóicos eram panteístas, de forma que o logos deles não é transcendente,
mas imanente” (CHEUNG, p. 23-24). Entretanto, segundo o que temos visto,
parece-nos possível conceber algum grau de transcendência tal como uma alma
transcende o corpo, entretanto está intimamente associado a ele. A propósito,
essa analogia foi, de fato, usada por Sêneca: “Sêneca explica Zeus ou a
existência de Deus ao mesmo tempo que o mundo e a alma do mundo, apontando para
o homem que se sente como um ser singular e contudo também como constituído de
duas substâncias, corpo e alma” (DOLLINGER apud HODGE, p. 241). A analogia só
falha pelo fato de que parece ser do próprio ser do logos que se faz o mundo, e
onde ele termina. É como se esse ‘fogo’ misterioso transformasse-se na matéria
e, em seguida (?), em tudo mais*4.
Podemos, então, falar de
antropologia filosófica. Inwood faz uma intrigante afirmação: “Mas a alma, o
espírito e deus são entidades causais que interagem com outros corpos; por
conseguinte, eles são de natureza material, quer dizer, feitos do pneuma
anteriormente mencionado” (PRADEAU, p. 85). Podemos entender ‘deus’ como o
pneuma, e ‘espírito’ como parte da ‘alma’, mas não há qualquer indício de
distinção, e, a única saída e recorrer ao conceito platônico que vê ‘espírito’
como uma parte da alma; uma alternativa é ver espírito como ‘pneuma’ – afinal,
em grego, é esse o termo para espírito – e ‘deus’ como uma entidade diferente,
mas isso iria complicar todo o sistema. Buscando conciliar as coisas, versemos
sobre ‘deus’ como o pneuma. Sendo assim, claro, há uma relação causal para com
o cosmos. Mas, e a alma humana? É certo que há uma interação entre o homem e a
natureza. Então começamos a compreender a antropologia dos zenonitas. Inwood
lança mais uma sentença nada clara (aliás, o que é comum no livro de Pradeau):
“A alma humana perfeita é indiscernível, tanto física quanto moralmente, do ser
divino” (PRADEAU, p. 85). É certo que tudo que existe provém do pneuma, e,
talvez, nesse sentido, podemos falar de ‘monismo’ dentro de uma concepção
panteísta. Mas, claro, há distinções de propriedades entre ‘alma’ e ‘matéria’.
Para começar, a mais essencial de todas: a alma é ‘imaterial’. Ao menos a alma
do mundo é. E é bem necessário que a alma dos homens o seja, afinal, nela
reside os ‘exprimíveis’ e os conteúdos mentais. Retomando os dizeres de Cheung,
o logos divino espalha suas sementes no cosmos, e isso não só originando e
dirigindo o ‘movimento’ (no sentido antigo da expressão), mas criando pequenas
‘ramificações’, que são as almas humanas: “Esse logos universal produz sementes
ou ‘faíscas’, os logoi spermatikoi, em todas as coisas, de modo que cada pessoa
tem em si uma faísca do divino” (SPROUL, p. 54). Com essa concepção em mente
podemos entender o conceito ‘cosmopolita’ dos estoicos, conforme aponta
Gaarder: “Assim como Heráclito, os estóicos diziam que todas as pessoas eram
parte de uma mesma razão universal, ou ‘logos’. Eles consideravam cada pessoa
um mundo em miniatura, um ‘microcosmo’, que era reflexo do ‘macrocosmo’”
(GAARDER, p. 148). Os homens são ‘micro-pneumas’, como ‘chuviscos ígneos’,
faíscas do logos criador de todas as coisas (o que muitos, dentro de um
contexto religioso politeísta, referiam-se a Zeus). Isso acabou “levando
Epitecto a afirmar que existe uma ‘centelha de divindade’ dentro de todo homem”
(CHEUNG, p. 24).
E, não podemos refletir
adequadamente sobre antropologia filosófica sem lidar com a questão da
imortalidade da alma. Quanto a isso, Vincent Cheung nota que “a visão estoica
da história parece excluir a imortalidade individual, ainda que pareça haver
visões levemente diferentes neste assunto” (CHEUNG, p. 23). Hodge confirma: “A
alma dos homens é da mesma natureza que a alma do mundo, mas como existência
individual, deixando de existir quando a vida do corpo cessa” (HODGE, p. 184). De
uma forma ou de outra tudo que surge no fogo, termina no fogo, inclusive as
almas humanas. Então Cheung prossegue, citando Marvin R. Vincent: “Eles negavam
a imortalidade universal e perpétua da alma; alguns supondo que ela era
englobada na deidade; outros, que ela sobreviveria apenas até a conflagração
final; outros, que a imortalidade era restrita apenas aos sábios e bons”
(VINCENT apud CHEUNG, p. 23).
Antes de terminar a
metafísica, ainda nos resta refletir sobre o determinismo que o sistema
implica. Inwood se expressa da seguinte forma: “No sistema estoico, todo
acontecimento é causado e determinado por uma cadeia racional e providencial de
causas e efeitos, que se reproduz naturalmente a cada ciclo de criação e destruição
do cosmos. Somente os corpos podem ser causas ou efeitos” (PRADEAU, p. 85).
Temos, aqui, pois, uma história cíclica. Um conceito provavelmente oriundo das
filosofias orientais*5. Gaarder se expressa de maneira mais informal, ou menos
técnica: “... os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo,
a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. [...]
Nada acontece por acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de
acontecer e de nada adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua
porta” (GAARDER, p. 149). Claro, tal conceito irá suscitar críticas de viés
ético-existencial que serão usadas pelos adversários do sistema, como Inwood
nos conta: “O determinismo causal que caracteriza este sistema físico suscita
críticas de seus adversários, mas Crisipo e outros estoicos tiveram sucesso em
mostrar que a forma do determinismo que eles defendiam não excluía a
responsabilidade moral e a possibilidade de cada um se tornar melhor, como sua
própria teoria ética pressupõe” (PRADEAU, p. 85). Com isso, abriremos nossa
discussão sobre a ética epicurista. Antes, uma breve exposição epistemológica.
Os estoicos, tal como
Heráclito, os materialistas e Aristóteles, eram empiristas também. Gabriel
Chalita apresenta de forma sucinta o conceito: “O conhecimento seria adquirido
sempre por meio dos cinco sentidos, que captariam as características dos
objetos e dos seres. [...] as ideias e os conceitos sobre qualquer coisa são
apenas combinações mentais das informações que o ser humano adquire
sensorialmente” (CHALITA, p. 77), ao que Inwood expõe em termos mais formais:
“Na medida em que os estoicos acreditam na confiabilidade das percepções
sensíveis, e que o conteúdo da percepção pode constituir um fundamento sólido
para a formação de conceitos e de inferências, é crucial mostrar a seus
adversários (em geral, aos acadêmicos, durante o período cético da escola) que
existe pelo menos um tipo de percepção sensível confiável” (PRADEAU, p.). É
interessante destacarmos, aqui, um conceito que, posteriormente seria defendido
por filósofos como David Hume, e que foi ignorado por Epicuro quando concebeu a
existência dos deuses: os conceitos que formulamos são abstrações mentais,
junções do que formamos em nossa mente, ou como coloca Chalita, combinações
mentais das informações sensíveis. Não são, portanto, necessariamente,
realidades concretas (ou quem sabe o sejam, se admitirmos um viés platônico do
estoicismo).
Brad Inwood amplia nossa
compreensão da epistemologia estoica: “Houve um debate em torno do que se chama
de representação compreensível [...] no início do século III a. C., que se
prologou até Cícero [..] sem que se possa, porém, reconhecer claramente um
vencedor. Os estoicos permaneceram convencidos de que existem percepções
sensíveis confiáveis, que contêm seu próprio critério de verdade e que
representam as coisas tais como elas são na realidade. [...] A objeção cética
consiste sumariamente em afirmar que se pode sempre encontrar e imaginar uma
representação errada, indiscernível, de uma representação confiável, de maneira
que sua verdade não pode jamais ser asseverada com certeza” (PRADEAU, p. 88).
Diferindo-se de Demócrito, e agregados a Epicuro, entendiam que o que nos era
informado pelos sentidos de fato, correspondia ao que era a realidade. O que
temos na mente é, pois, uma representação do real. Mas os céticos trabalhavam
com a questão de que o que é representado em nossa alma ser algo falso. No
final das contas, essa discussão não pode ser resolvida apenas na lógica, mas
tão somente no campo da disputa das cosmovisões. Tudo dependerá dos
pressupostos assumidos e da coerência e abrangência das cosmovisões a que cada
conceito é derivado.
Inwood também nos conta que
“os estoicos se servem, além disso, da lógica como de um instrumento de defesa
nas discussões” (PRADEAU, p.) e, por isso mesmo, ampliaram muito os estudos da
lógica, particularmente no que diz respeito à análise de paradoxos e
ambiguidades*6. E, por lógica temos todo o conceito do Trivium já organizado
pois, como Inwood informa, “ela inclui tanto a retórica quanto a dialética”*7 (PRADEAU, p. 87).
Uma ética adequada, coerente,
deve estar calcada nos fundamentos da cosmovisão a que pertence. Nisso o
estoicismo dá de dez a zero no epicurismo. Da metafísica e antropologia
filosófica implicamos a ética. Lembremo-nos que a “razão do homem é vista como
sendo do mesmo tipo do fogo eterno, o qual permeia a ordem do mundo” (BAHNSEN
apud CHEUNG, p. 24). Portanto, o logos, aquele fogo que permeia o mundo,
dirigindo seus passos, é o que habita em todos os homens. A razão humana é a
razão do mundo. O curso da natureza, o destino, pois, é o curso da razão.
Compreendido isso podemos entender esta citação de
Inwood: “No domínio da
ética, os estoicos sustentam uma forma de eudemonismo: o objetivo da vida
humana é a realização do fim (telos) que lhe é próprio [Aristóteles]. Este fim
consiste em viver em conformidade com a natureza (a nossa natureza e a natureza
do cosmos; compreende-se então a importância da ideia segundo a qual nossa
natureza é idêntica à potência divina que estrutura o mundo natural)” (PRADEAU,
p.). Portanto, a virtude consiste em olhar para a razão que está em nós e no
mundo a fim de lhe seguir. É adequar-se, pois, ao logos, tal como existe em nós
e fora de nós. Então tomemos Cheung para ampliar a discussão: “Visto que o
homem está sujeito às forças imanentes do mundo, ele deve viver em harmonia com
a natureza. Visto que a Razão permeia e governa o mundo, viver em harmonia com a
natureza é viver em conformidade com a racionalidade, e a racionalidade é
superior às emoções. Tudo que está fora da razão deveria ser visto com
indiferença, seja o prazer, o sofrimento, ou mesmo a morte” (CHEUNG, p. 24).
Nesse sentido parece que os estoicos consideram as paixões, o prazer e a dor,
como efeitos não racionais na alma, que devem ser abandonados, desprezados e
erradicados, afinal, “o mais elevado fim da vida é a virtude; e a virtude é
viver segundo a razão” (HODGE, p. 184).
Isso nos leva ao conceito de
apatia. Como já falamos repetidamente, há variantes na doutrina estoica, de
modo que teremos dois tipos, pelo menos, de concepção estoica aqui. Uma, de
viés mais cínico, é a que Chalita apresenta: “A felicidade, para os estóicos,
era um estado de tranquilidade plena, que só podia ser atingido por meio da
prática virtuosa. Por sua vez, a virtude era definida como uma negação
constante, que consistia na indiferença dirigida a todas as experiências da
vida; o estado que seria atingido com esta prática é descrito pelo termo grego
apatheia. Em outras palavras, o homem não deveria se preocupar com questões
relacionadas com a morte, não deveria se esforçar pelo enriquecimento material,
nem deveria sofrer com o cansaço. O único valor, segundo os estóicos, é a
sabedoria, que é alcançada com o cultivo do pensamento, que por sua vez é a
única atividade em que vale a pena se empenhar. Em resumo, trata-se de uma
indiferença direcionada a toda forma de prazer e de sofrimento. Tanto as
experiências dolorosas quanto as prazerosas são irracionais, conforme a
doutrina do estoicismo, porque são paixões, ou seja, vícios e, portanto, mal
supremo” (CHALITA, p. 76). Aqui, evidentemente, temos um ‘q’ aristotélico
quando se fala que a atividade máxima seria o cultivo da sabedoria que, para os
estoicos, tal como Platão e Aristóteles tomam como sinônimo para sua própria
filosofia, corresponde ao estoicismo. Prazer e dor, seguindo a interpretação
também de Cheung, perturbam a alma. Não se deve ser afetado de forma alguma.
Como Chalita completa: “Ser indiferente, ou seja, não sofrer nem agir por
nenhuma paixão, era para os estóicos ser virtuoso. Dessa forma, o máximo da
virtude seria alcançado quando o homem ficasse alheio a tudo, vivendo como numa
fortaleza interior, tendo como seu tesouro o pensamento e a sabedoria
filosófica” (CHALITA, p. 77). Essa perspectiva torna o perseguidor da
tranquilidade um sujeito inerte que, de preferência, vive em reclusão e deixa
as coisas rolarem. Entretanto, Inwood nos fala de uma corrente dominante
(talvez a de Crisipo e seus discípulos), que concebem a coisa em termos um
pouco diferentes: “Na corrente dominante do estoicismo, o ideal de vida é muito
mais naturalista e é orientado também tanto para ação quanto para a contemplação.
Todos os estoicos estão, no entanto, de acordo em afirmar que a virtude humana
designa o estado ideal da alma racional unificada; eles subscrevem nesse
sentido o ideal socrático do Protágoras ou do Fédon, mais do que o modelo
platônico ou aristotélico da harmonização das ‘partes’ da alma entre si, cada
uma tendo uma função própria e se comportando de maneira quase autônoma”
(PRADEAU, p. 85-86). Ou seja, descartando a ideia de que a há repartições na
alma, como o fizeram Platão e Aristóteles, fica definido que há somente um
aspecto do homem que precisa ser realizado, levado a cabo: a razão. Mas o que
diferencia essa interpretação é que se segue: “Viver de acordo com a natureza
significa, por conseguinte, ter uma vida ativa, ter um ideal moral de autogoverno
e se esforçar para alcança-lo” (PRADEAU, p. 86). Diferente da inércia cínica
proposta na outra, aqui a conformidade com a natureza inclui atividade, embora
atividade racional, consciente e em interação com o curso das coisas. Seja como
for, todos concordam que é preciso uma vida de reflexão filosófica,
contemplação.
Essa vida contemplativa,
filosófica tem insinuações que não exploramos muito bem: “A vida completamente
conforme à razão é a única vida virtuosa e feliz, e o melhor guia para levar
esta vida perfeita e divina, de acordo com Crisipo, é a compreensão dos acontecimentos
que ocorrem na natureza” (PRADEAU, p.). Portanto, a questão não é apenas lidar
com o prazer e a dor, e sim lidar com o destino. Viver de acordo com a razão,
com o logos, e viver de acordo com o curso racional e fixo que o logos mantém o
mundo. “Os estoicos da corrente aristoniana parecem mais socráticos do que
platônicos nesse ponto; para praticar a virtude, afirmam eles, o homem não tem
necessidade de estabelecer uma teoria física elaborada” (PRADEAU, p. ). Eles
entendem que não é, pois, preciso conceitos metafísicos elaborados, bastando
seguir a vida em aceitação ao que ela traz. Já outros entendiam que um
conhecimento da física e, quiçá, da metafísica, poderiam orientar o homem: “A
vontade cínica de seguir a natureza mais do que as convenções se torna, nos
estoicos eminentes, o esforço de viver em conformidade com esta ordem própria
do cosmos regido pela providência” (PRADEAU, p.). Em todo caso, é impossível
não pensarmos em Antístenes aqui.
Deixemos Sproul,
resumidamente, resumir o que iremos expor de forma mais ampliada (percebam que
ele fala a partir da perspectiva de que o estoicismo era materialista): “A
preocupação central do estoicismo foi a filosofia moral. A virtude é encontrada
na reação da pessoa ao determinismo materialista. O ser humano não pode
determinar seu próprio destino. Ele não tem controle sobre o que lhe acontece.
Sua liberdade é restrita à sua reação ou atitude interior ao que lhe sobrevém.
O objetivo da vida virtuosa é a ataraxia*8 filosófica” (SPROUL, p. 54). Esse
conceito de aceitar seu destino com apatia é muito bem trabalhado por Jostein
Gaarder: “... os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo,
a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. Por
esta razão, o homem deveria aprender a aceitar o seu destino. Nada acontece por
acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de acontecer e de nada
adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua porta. Também as
coisa felizes da vida devem ser aceitas pelo homem com grande tranquilidade.
Vemos aqui a proximidade dos estóicos com os cínicos, que viam com total
indiferença todos esses eventos exteriores. Ainda hoje falamos de uma
‘tranquilidade estóica’ quando queremos nos referir a uma pessoa que não se
deixa inflamar por seus sentimentos” (GAARDER, p. 149).
Portanto, a pessoa sábia é
aquela que, refletindo, alcança a ciência do curso das coisas, mas também se
autoconvence de que não há nada, em muitos casos, a fazer senão aceitar. Por
isso Sproul diz: “Os estóicos buscavam a ataraxia pela prática da
‘imperturbabilidade’, a aceitação do destino pessoal com serenidade e coragem.
[...] O segredo de uma vida boa e feliz é saber o que está sob o nosso controle
e o que não está” (SPROUL, p. 54). A morte e a guerra eram, naqueles tempos,
inevitáveis. Por isso, “diante da guerra e da morte inevitável, não há
sabedoria a não ser na ataraxia – ‘encarar todas as coisas com serenidade de
espírito’” (DURANT, p. 92). Isso mesmo, lutar contra a morte é uma perda de
tempo, e só redundará em frustração. Ela, pois, se levanta como o símbolo
máximo do que não pode ser evitado e deve ser encarado com naturalidade. Por
isso, Durant completa: “... os estóicos achavam que a indiferença filosófica
era a única atitude razoável para com a vida na qual a luta pela existência
está tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for
inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar
nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao
nível de nossas realizações” (DURANT, p. 90).
Máximas muito interessantes,
então, surgem. Epiteto, o escravo, diz: “Não posso escapar à morte, mas será
que não posso escapar ao medo dela?” (EPICTETO apud SPROUL, p. 54). Durant
também se arrisca num aforisma: “Não procure fazer com que as coisas aconteçam
segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm que
acontecer, assim viveras com prosperidade” (DURANT, p. 92). Essa é, pois, a
“filosofia da ‘cabeça erguida’, pela qual nada jamais nos abala ou nos faz
perder as esperanças” (SPROUL, p. 54). Por isso, “devemos demonstrar
autocontrole, autossuficiência e indiferença emocional em meio às situações da
vida. Mas se a vida se torna dura demais, o Estoicismo permite o suicídio”
(CHEUNG, p. 24). Não estamos certos se essa concessão é, de fato, ortodoxa,
visto que o suicídio só pode resultar de uma alma que está completamente
afetada pela situação, de modo que está longe da ataraxia. Mas vale a
observação de Cheung de que a doutrina implica em autodomínio, autocontrole e
autossuficiência.
Fica, clara, pois, a
diferença entre estoicos e epicureus, mas Gaarder é pertinente para assinalar e
ressaltar a diferença: “O objetivo dos cínicos e dos estóicos era suportar
todas as formas de dor, e isto é algo completamente diferente de fazer todo o
esforço para tirar do caminho a dor.” (GAARDER, p. 149). Em certo sentido, o
estoico também foge da dor, mas não por afastar-se do que traz dor, mas pela
apatia.
Subsiste a questão de como
educar a alma e alcançar a ataraxia (semelhante a um nirvana). Vamos com
Inwood: “Os meios da educação moral que os estoicos conservam parecem estar
inspirados em Aristóteles, tornamo-nos corajosos ao realizar ações corajosas,
ainda que, à primeira vista, a maioria das ações corajosas não atinja o ideal
procurado” (PRADEAU, p. 86). Assim, tal como Aristóteles ensinava que a virtude
só pode ser alcançada pela imitação dela mesma, ou seja, na prática da virtude,
o estoico dirá que a tranquilidade só pode ser alcançada na busca pela tranquilidade.
Esse conceito é importante para livrá-los de uma arapuca que se monta à frente
diante do sistema, e que Inwood mesmo nos informa: “Encontramos o mesmo
absolutismo paradoxal na psicologia moral dos estoicos: sendo dado que a alma
humana é uma (não existe partes irracionais para controlar, trata-se somente de
perfazer o exercício de sua razão), a única maneira de preservar sua liberdade
contra as perturbações devastadoras e dolorosas que se chamam paixões (pathé)
consiste em erradicar pura e simplesmente qualquer erro e qualquer forma de
fraqueza moral. Somente o ‘sábio’ pode atingir esse estado; infelizmente os
modelos a imitar são, em todo caso, muito pouco numerosos, e Sócrates é a única
figura de sábio que não se presta à controvérsia” (PRADEAU, p. 86). Traduzamos
o problema da seguinte maneira: a alma só se liberta das perturbações, da dor,
quando não é mais afetada pelas paixões. Mas somente a alma já perfeita, da
qual não temos muitos exemplos (se é que temos), pode não ser afetada pelas paixões,
de modo que todos, no final das contas, estão enredados na situação de afetação
e distantes da perfeição. Se você precisa ser perfeito para não ser afetado,
como poderá, a partir da situação de suscetível à afetação, tornar-se perfeito
se, para isso, é preciso não ser afetado? Podemos colocar ainda de outra forma.
A alma só é livre se não houver erros morais, se for apática. Mas só alcança a
apatia quem tiver alcançado a perfeição. Portanto, a alma não poderia se
erradicar. Como dissemos, o segredo está na busca pela apatia. Através da
reflexão a alma irá se tornando cada vez menos afetada até atingir a apatia
total, o nirvana estoico. Quanto mais próximo da apatia, mais feliz se é.
Gaarder nos conta que a ideia
de que há uma ‘partícula divina’ em todo homem gera a ideia de direito
universal e natural: “Isto levou à ideia de um direito universalmente válido, o
assim chamado direito natural. O direito natural baseia-se na razão atemporal
do homem e do universo e, por isso mesmo, não se modifica no tempo e no espaço.
Nesse sentido, os estóicos colocam-se ao lado de Sócrates contra os sofistas. O
direito natural vale para todas as pessoas, inclusive para os escravos. Para os
estóicos, as legislações dos diferentes Estados não passavam de imitações
imperfeitas de um direito cujas bases estavam na própria natureza” (GAARDER, p.
148). Essa é uma implicação muito interessante da doutrina, e não a vimos
explorada por outros autores, exceto, talvez, por Franklin Ferreira e Alan
Myat: “para os filósofos estóicos, este mesmo princípio cósmico [o logos]
permeia todas as coisas e provê o padrão de conduta para o homem racional”
(FERREIRA; MYATT, p. 509). Novamente, é possível que seja uma modificação de
algum estoico em particular. Seja como for, é perfeitamente adequada. O homem
tem valor, naturalmente, por ser, em certo sentido, divino, e, a partir da
razão, i. é., da concepção humana do que é bom, deve-se legislar. Lado outro,
tudo seria divino num sistema panteísta, talvez, dependendo da interpretação do
estoicismo, não tendo uma ‘alma’ semelhante ao logos, mas, certamente, ‘parte’
dele.
Gabriel Chalita e Jostein
Gaarder também falam da implicação sociológica do conceito
antropológico-filosófico. “Na política, finalmente, há uma única ideia estoica
relevante. Eles afirmavam que o homem não pertenceria a um país ou a uma
cidade, mas sim que ele seria cidadão do mundo. Essa ideia foi denominada de
cosmopolitismo. Assim, afirmou Musônio Rufo, no século I: ‘O mundo é a pátria
comum de todos os homens’” (CHALITA, p. 77). Chalita diz que essa seria a única
contribuição relevante que fizeram à filosofia política. Gaarder nota que é uma
ideia perfeitamente pertinente ao momento imperialista que viviam esses
pensadores: “Os estóicos eram marcadamente ‘cosmopolitas’, o que significava
que eram filhos legítimos de usa época. Sendo cosmopolitas, eram mais abertos
para a cultura contemporânea do que os ‘filósofos de barril’ (os cínicos). Os
estóicos chamavam a atenção para a convivência entre as pessoas,
interessavam-se por política, e alguns deles chegaram até mesmo a ser
estadistas atuantes, como o imperador romano Marco Aurélio (121-180), por
exemplo” (GAARDER, p. 148-149).
Como estamos falando de
Grécia (mesmo de Roma), estamos falando de confronto aberto e sério de ideias.
O estoicismo, pois, seria criticado, e teria de se defender. Principalmente por
se tornar uma cosmovisão tão importante e, justamente, por se tornar uma
cosmovisão. Olharemos, pois, para algumas objeções históricas a esta visão de
mundo e para algumas outras questões que ela suscitou. Outras questões, como o
problema epistemológico, já foram abordadas no decorrer do texto. É importante
irmos vendo o que já temos e um dos grandes problemas do estoicismo é
justamente seu empirismo, sem, ao que nos parece, considerar a possibilidade de
haver ideias inatas*9.
Uma primeira crítica óbvia é
a dos que, contra o determinismo, acreditam que a inércia é a resposta. É como
se, pelo fato de as coisas estarem determinadas, fossemos embargados de fazer
algo. Observem o relato de Durant: “Quando Zenon, que não acreditava na
escravidão, e estava batendo num escravo seu por causa de algum delito, o
escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha
sido destinado, por toda a eternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon
replicou com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele,
Zenon, tinha sido destinado a bater nele por causa dela” (DURANT, p. 90). Essa
é, pois, a perspectiva prática ante o determinismo. De fato, não há coação.
Mesmo assim, a relação de causa e efeito é preservada de modo que a concepção
sobre o mundo ainda é racional.
Uma das críticas mais
mordazes que vimos é do próprio Epicuro, segundo nos informa Durant: “Seu ponto
de partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer –
embora não necessariamente o prazer sensual – é a única finalidade concebível,
e perfeitamente legítima, da vida e da atividade [...] até mesmo um estoico
sente um prazer sutil na renúncia” (DURANT, p. 90-91). A essa objeção achamos
impossível o estoico fugir. Ela falha, justamente, em não lidar com um fenômeno
óbvio: temos, seja lá o que for, ‘receptores’ de paixão, e isso é muito natural
no homem. A alma humana não consiste simplesmente em razão. Negar as afeições é
negar a própria natureza humana, o que é impossível. Mesmo que tenhamos o maior
estoico como exemplar, saberemos que ele sente-se bem, sente prazer, na sua
apatia plena.
Agora, finalmente, temos que
lidar com uma questão muito corrente, a saber, a de creditar ao cristianismo
algum plágio ao estoicismo. Durant, que faz essas estúpidas comparações, é quem
nos servirá de base para a crítica: “Em trechos assim, sentimos a proximidade
do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética cristã da
abnegação, o ideal político cristão de uma fraternidade quase comunista do
homem, e a escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro,
fragmentos da doutrina estoica flutuando na corrente do pensamento?” (DURANT,
p. 92).
Primeiramente, ofereçamos uma
resposta à questão da abnegação, da autossuficiência que os cristãos
martirizados demonstraram, à sua calma estoica ante a morte. Observemos que,
embora todos não sejam destinados ao martírio, só consegue ser martirizado os
que eram extremamente piedosos e virtuosos, de modo que seu caráter torna-se
padrão para o cristianismo. Bom, em primeiro lugar, longe de estarem apáticos,
eles aceitavam com alegria seu destino, cientes de que estariam com Cristo.
Além disso, consideravam que Deus é quem guiava seus destinos, e, assim, aquela
situação estava sob controle.
Seguimos com Cheung.
Observando que o estoico poderia ver uma semelhança de seu ensino em Filipenses
4:12, o filósofo observa que a grande diferença está no verso 13: “Tudo posso
naquele que me fortalece” e expõe: “O Cristianismo na verdade ensina a
autossuficiência espiritual, emocional e social, sem rejeitar a legitimidade da
comunidade; contudo, esta autossuficiência é somente relativa a outros seres
humanos, mas não para com Deus, de modo que estamos sempre em necessidade dele
[...] Os recursos internos do cristão provêm de Deus, que é distinto do próprio
cristão, enquanto que os estóicos buscavam alcançar a autossuficiência
absoluta, e não a autossuficiência relativa do cristão. Nós vencemos o mundo e
cumprimos nosso propósito não por nós mesmos, mas pelo poder de Deus, o qual
opera poderosamente em nós (Colossenses 1:29)” (CHEUNG, p. 25). Tal conceito,
pois, faz toda a diferença. Nossa suficiência está em Cristo, e tão somente
nele!
Claro, há muitas outras
dissemelhanças e Cheung menciona mais algumas: “Este Deus não é um fogo
racional imanente panteísta que é parte do universo, mas uma mente
transcendente racional que é distinta e o criador do universo. [...] Ele é
imanente no sentido de que escolhe exercitar seu poder nos assuntos humanos e
naturais, mas ele não é parte desta criação, nem está limitado a ela. E ao
contrário da filosofia estoica, não importa quão difícil nossa vida se torne,
não há justificativa para cometer o suicídio” (CHEUNG, p. 25).
Durant também fala da
escatologia cristã, particularmente a doutrina do inferno ou do fim do mundo
ter vindo do estoicismo. Bom, é bem possível que a doutrina do purgatório seja
influenciada por esta concepção pagã. “Também para os estóicos gregos, o fogo
era um princípio elementar e a alma do mundo, e assim eles ensinaram uma
renovação do mundo por meio do fogo” (HODGE, p. 1585). Charles Hodge nos conta
da doutrina do purgatório (e não a do inferno) surgindo a partir de ideias
gregas do fogo como purificador de todas as coisas. Orígenes parece ser o
primeiro a defender essa ideia, mas logo Agostinho iria lhe dar formato
doutrinário e Gregório Magno consolidaria tal conceito como doutrina oficial da
Igreja (HODGE, p. 1586-1587). Mas as semelhanças com o estoicismo terminam aí.
Como já foi observado, a
história, para os estoicos, é cíclica. Além disso, não há existência do homem
após a morte, senão a mesma existência no término do ciclo e início do mesmo
ciclo. A única diferença entre os ciclos é como os encaramos, como lidamos com
o que se nos procede. A alma, não material, parece fugir da causalidade
inalienável. Mas isso é tudo. Entretanto, isso faz a visão estoica ser
completamente distinta da visão bíblica, conforme salienta Hoekema: “A visão da
história dos gregos é incompatível com a visão cristã, que vê história como um
cumprimento do propósito de Deus, e como movendo-se em direção a um alvo. Para
os escritores da Bíblia, história não é uma série de ciclos repetitivos sem
sentido, mas um veículo através do qual Deus realiza seus propósitos para o
homem e o universo. A ideia de que a história está se movendo para alvos
estabelecidos por Deus, e que o futuro é para ser visto como o cumprimento de
promessas feitas no passado, é a contribuição singular dos profetas de Israel”
(HOEKEMA, p. 31). O fogo que irá consumir o mundo irá, de fato, renová-lo, mas
será de uma vez por todas e para sempre. Não há ciclo, mas linearidade.
E há total relevância do que
se faz enquanto no presente, determinando o que se passará no futuro. Isso,
aliás, alavanca uma pesada crítica que John Marsh faz, de cunho
existencialista, a esta cosmovisão: “Além disso, se tudo que pode acontecer é a
constante repetição de um ciclo de eventos, não há possibilidade de sentido no
ciclo em si. Ele não alcança nada em si próprio e também não pode contribuir
para nada fora de si. Os eventos da história são destituídos de significado”
(MARSH apud HOEKEMA, p. 30). Afinal, por que a história é cíclica? Por que esse
deus estoico não cessa de destruir e reconstruir o mundo, da mesma forma? Qual
o objetivo disso tudo? Sem resposta a tal fenômeno, a cosmovisão peca por falta
de abrangência.
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*1 Aliás, temos de concebê-la pessoal, afinal, por que é que o mundo surge e é
destruído? Seria uma escolha do pneuma?
*2 Nossa suspeita é ampliada
por conta de uma afirmação de Durant que, embora mencione algo que só iremos
estudar noutra seção, vale a pena ser citada: “Zenon ergueu sua filosofia da
apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achou difícil
distinguir do fatalismo oriental” (DURANT, p. 90). Isso, levado em conta que
Crisipo desenvolveu a cosmovisão estoica e a defendeu de seus opositores, nos
leva a pensar em reformulações posteriores a Zenão.
Hodge afirma categoricamente
que o monismo era adotado inicialmente, mas fora abandonado nas formulações
posteriores, não dizendo, no entanto, exatamente quando a metafísica foi
alterada: “É sobejamente claro que os estóicos posteriores, especialmente entre
os latinos, como Sêneca e Marcos Aurélio, consideravam o princípio geral que
animava a matéria como tendo todos os atributos da mente” (HODGE, p. 248).
*3 o ‘conteúdo do pensamento’
são as ideias. Será que eles concebiam-nas existindo à parte das coisas, tal
como Platão?
*4 É claro, também podemos
conceber a matéria eterna sendo apenas fecundada pelo logos de modo a ganhar
propriedades. Mas esse não parece ser exatamente o conteúdo dos estóicos,
embora não nos espantássemos com alguém alegando tal interpretação. E não é que
Charles Hodge assim expõe o estoicismo? Vejam, ele expõe o estoicismo,
primeiro, considerando-o, além de panteísta, hilozoísta (i. é., acredita numa
‘força inteligente, viva’ dentro da matéria), de modo que o logos está em todas
as coisas: “Há dois princípios constituintes do universo, um ativo e outro
passivo. O princípio passivo é a matéria sem forma e sem propriedades, ou seja,
inerte. O princípio ativo é a mente, que habita na matéria seu poder formativo
organizador, ou seja, Deus. [...] O universo deve, portanto, ser considerado
sobre três aspectos: (a) Como o poder formador de tudo [...] (b) o mundo, como
formado por esse princípio vivo, interior [...] (c) a identidade dos dois,
quando formam um todo” (HODGE, p. 184). Bem adiante, temos uma clara admissão,
de um autor citado por Hodge, que pensa-se na matéria eterna e o logos servindo
como causa eficiente, formal e final, mas não material: “A deidade em ação, se
podemos assim falar, é um certo éter ou fogo ativo, possuindo inteligência.
Este deu forma, no princípio, ao caos original, e, formando uma parte essencial
do universo, sustenta sua ordem” (BRYANT apud HODGE, p. 1585).
*5 Cf. o capítulo 7 do
brilhante livro de James W. Sire denominado ‘O Universo ao Lado’. Hodge diz
claramente que o conceito é hindu: “Os estóicos adotaram a doutrina hindu da
dissolução de todas as coisas e do redesenvolvimento de Deus no mundo, depois
de longos períodos sucessivos” (HODGE, p. 241).
*6 Infelizmente não é possível
colocar as contribuições dos estoicos aqui sem causar enfado. Esta é uma
exposição dos conceitos essenciais dos estoicos e basta-nos saber que eles
apreciava a disciplina de forma geral.
*7 Quanto à semântica, também
lograram-nos elucubrações. Entretanto, ficaram um tanto quanto controversas na
exposição de Inwood e, por isso, resolvemos exilá-las do corpo do texto,
trazendo-as para o rodapé: “Os estoicos desenvolvem uma teoria semântica
complexa, fundada no conceito de exprimível (lekton), e são os primeiros a se
interessar pelo conteúdo dos enunciados e dos pensamentos enquanto tais
(contrariamente a Aristóteles e a Platão, para quem o sentido da proposição
reside na predicação de uma propriedade)” (PRADEAU, p. 87). Os estoicos, segundo
Inwood, falam do ‘exprimível’, o que parece se referir ao conceito concebível e
que pode ser comunicado. Eles ocuparam-se de estudar os conceitos enquanto
conceitos apenas, ao passo que Aristóteles e Platão, diz o autor, falavam do
sentido de algo enquanto predicação de uma propriedade. Portanto, um conceito
teria sentido enquanto fosse as qualidades de algo sendo comunicado em uma
proposição. Isso ficou estranho pois nos parece que Platão concebia os
conceitos como conceitos mesmo, como ideias.
Sendo assim, Inwood parece
falar de conceitos existindo por si, sem conexão com o mundo para terem
significado de forma que não precisem ser predicados para ganharem-no. Mas isso
demanda uma metafísica plantonista. Lado outro, eram empiristas, e os conceitos
seriam abstrações e junções do percebido.
*8 “A palavra grega pode ser
traduzida mais ou menos como ‘paz interior’ ou ‘tranquilidade da alma’”
(SPROUL, p. 54).
*9 Lembremo-nos, novamente,
que tal ponto foi devidamente trabalhado no artigo sobre epistemologia em Platão.
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