[Para conhecer a Metafísica, Antropologia e Epistemologia de Platão, que precedem esta discussão de agora, clique aqui]
Aqui, neste ponto, é que Platão demonstrará a influência de Sócrates em seu pensamento. Na verdade, muito do que foi dito em Sócrates será observado aqui, e, quem sabe, o que é dito aqui, em partes, é mesmo de Sócrates (ou ainda o contrário: muito do que foi dito alhures pertente, na verdade, a Platão). Platão, pois, segue os dois projetos. Ele não fica por conta apenas das reflexões metafísica e epistemológicas. Ele inclui à esse projeto pré-socrático o projeto sofista. Assim, Platão é o primeiro a buscar elaborar uma cosmovisão completa. Ele aborda metafísica, epistemologia, antropologia e ética. A ética é assunto deste texto. A política fica para o próximo.
Aqui, neste ponto, é que Platão demonstrará a influência de Sócrates em seu pensamento. Na verdade, muito do que foi dito em Sócrates será observado aqui, e, quem sabe, o que é dito aqui, em partes, é mesmo de Sócrates (ou ainda o contrário: muito do que foi dito alhures pertente, na verdade, a Platão). Platão, pois, segue os dois projetos. Ele não fica por conta apenas das reflexões metafísica e epistemológicas. Ele inclui à esse projeto pré-socrático o projeto sofista. Assim, Platão é o primeiro a buscar elaborar uma cosmovisão completa. Ele aborda metafísica, epistemologia, antropologia e ética. A ética é assunto deste texto. A política fica para o próximo.
Entendemos, a despeito de
Maquiavel (ou do que normalmente se concebe sobre sua teoria), que a política
decorre da ética. Talvez boa parte da controvérsia gire em torno de uma mera
disputa de termos (quando formos pensar em Maquiavel iremos expor a questão com
mais detalhes). Mas, recorramos a Brisson como porta voz: “Quando se considera
a moral como um sistema de comportamentos admitidos e incentivados numa
sociedade, pode-se definir a ética como a avaliação racional da moral. Esta
definição supõe, portanto, que, nesta sociedade, alguns comportamentos são
admitidos e incentivados e outros proibidos e condenados” (PRADEAU, p. 39).
A ética é, pois, uma
avaliação racional das regras de uma sociedade. Primeiro, pois, vamos conceber
a ética e, então, passar para a política.
ANTROPOLOGIA
FILOSÓFICA E SUA FACETA ÉTICA
Já vimos como a concepção
platônica sobre o homem influencia em sua epistemologia. Dessa vez mostraremos
a ética decorrente da concepção de Aristocles sobre a ética. Brisson bem
observa ao notar que a concepção do que é o homem precede as concepções éticas:
“A avaliação e a sanção não são, no entanto, evidentes, pois elas implicam uma
representação prévia do que seja um ser humano” (PRADEAU, p. 39). Pois bem,
façamos isso.
Foi observado que Platão
concebeu a alma humana sob três aspectos diferentes*. Temos a Razão; o
Espírito, ou ‘Sentimentos’; por fim, os Apetites, os ‘Desejos’. Embora todo ser
humano possua razão, sentimentos e apetites, existem variações nos graus, i. é,
algumas pessoas são mais racionais, outras mais ‘sentimentais’, e, por fim,
outras são mais, digamos, hedonistas.
Pois bem, somada à exposição
que já fizemos, acrescentemos o seguinte comentário de Durant, que já irá
esboçar que tipo de atividade, ofício, é ideal para cada tipo de pessoa,
conforme a proeminência de um aspecto da alma: “Essas forças e qualidades estão
todas em cada indivíduo, mas em graus variados. Certos homens não passam da
personificação do desejo; alma irrequietas e gananciosas, que ficam absorvidas
por buscas materiais e lutas; que ardem de cobiça de artigos de luxo e
exibição, e que sempre são um valor zero aos seus ganhos ao compará-los com
seus objetivos sempre distantes: são estes os homens que dominam e manipulam a
indústria. Mas existe outros que são templos de sentimento e coragem, que não
se importam tanto com aquilo pelo que lutam quanto com a vitória em si mesma e
por si mesmo; eles são combativos, e não gananciosos; seu orgulho está no
poder, e não na posse, seu deleito está no campo de batalha e não no mercado:
são estes os homens que fazem os exércitos e as marinhas do mundo. E por último
estão os poucos que se deliciam com a meditação e com a compreensão; que
anseiam não por bens, nem pela vitória, mas pelo conhecimento; que deixam o
mercado e o campo de batalha para se perderem na tranquila clareza do
pensamento solitário; cuja vontade é uma luz, e não um fogo, cujo abrigo não é
o poder, mas a verdade: estes são os homens de sabedoria, que ficam de lado sem
serem utilizados pelo mundo” (DURANT, p. 39). A título de completude, e para
reforçar o conceito, mais uma citação, dessa vez de Nash, não nos prejudicará:
“Platão faz essa distinção tríplice por causa dos óbvios conflitos que os
homens sentem dentro deles mesmos. A parte racional da alma humana (o condutor)
busca a verdade e adquire conhecimento. Essa parte racional da alma é a sede da
imortalidade humana; nenhum animal possui tal faculdade. As partes espiritual e
apaixonada da alma são as faculdades do seu lado irracional. A parte espiritual
da alma [...] exemplifica a ira, o ressentimento e o desejo de excelir; a parte
apaixonada da alma [...] busca os prazeres da comida e do sexo, bem como a
satisfação de outros desejos corporais” (NASH, p. 95). O problema com Nash é
que ele fala da parte ‘espiritual’ apenas associada a sentimentos ruins, o que
não é o caso em Platão. É legal, também, Nash relembrar a questão de que apenas
a parte racional é que é permanente e distintiva nos homens.
Pois bem, ainda que as coisas
sejam assim, Platão propõe um ideal, uma ética, uma conduta individual e em
sociedade que devem ser realizadas em prol do próprio bem e do bem maior. É
preciso harmonizar as partes da alma, colocando-as em seus devidos lugares. Bem
mais adiante Durant elucida: “Todo indivíduo é um cosmos ou um caos de desejos,
emoções e ideias; deixe que eles entrem em harmonia e o indivíduo sobrevive e
obtém sucesso; deixe que eles percam seu lugar e sua função adequados, deixe
que a emoção tente se tornar tanto a luz da ação como o seu calor (como no
fanático), ou deixe que o pensamento tente se tornar tanto o calor da ação como
a sua luz (como no intelectual) – e começa a desintegração da personalidade e
fracasso avança como a noite inevitável” (DURANT, p. 50). O indivíduo jamais
poderá ser feliz e se realizar enquanto não estiver harmônico, integralmente
ajustado, em sua alma. É preciso que a sabedoria e o conhecimento guiem a vida,
mas não podemos nos esquecer de que a alma demanda questões sentimentais, onde
se relaciona, inclusive, com as virtudes, e, por fim, os apetites que garantem
a subsistência corporal.
Já se mencionou uma ressalva
importante na ética platônica: “A vida correta ou virtuosa é denominada pela
razão contemplativa” (SPROUL, p. 39). Para explicar esse conceito teremos de
fazer uma digressão e expor a ‘doutrina do amor’, do ‘Eros’, de Platão, para
que a ética seja compreendida.
EROS
OU O AMOR
No diálogo denominado ‘o
Banquete’, Platão fala sobre o amor. Retomando o conceito de reminiscência, ou
seja, a lembrança das formas, conhecidas antes da encarnação da alma, o homem
começa a almejar pelos ‘céus’: “Ao mesmo tempo que ocorre, isto [a
reminiscência] desperta no homem um anseio de retornar à verdadeira morada da
alma. Platão chamava este anseio, esta saudade, de eros que significa amor. A
alma experimenta, portanto, um ‘anseio’ amoroso de retornar à sua verdadeira morada.
[...] Ela quer se libertar do cárcere do corpo” (GAARDER, p. 103). Embora, como
já observamos, não entendamos, pois, por que raios a alma foi se encarnar, já
que almeja libertar-se do corpo (questão que fica ainda mais complicada se
acredita-se na reencarnação), percebemos o conceito de Platão com um cunho
existencial. Aquele ‘incômodo’ existencial, o desejo por paz interior, por
felicidade, é, na verdade, gemidos da alma ansiando por se libertar do corpo.
Pois bem, como é pelo
intelecto que se contempla as formas, e, portanto, que se experimenta as
primícias da redenção da alma, ele se torna a parte que deve ser destacada,
mais valorizada, na alma humana. É, pois, na contemplação do mundo das ideias
que se conhece as virtudes e, acima de tudo, o bem. Portanto, nesse contexto,
Chalita reforça a ideia: “Platão ensinava que Eros é uma força que instiga a
alma para atingir o bem; ele não cessa de mover a alma enquanto essa não for
satisfeita. O bem almejado é determinado pela parte da alma que prevalecer sobre
as outras. [...] ... o melhor é que a alma seja conduzida por sua parte
racional e que utilize a energia inesgotável do amor para se dirigir ao bem
verdadeiro – que compreende a justiça, a honra, a fidelidade; em suma, as
virtudes supremas” (CHALITA, p. 56).
Quando a força do amor não é
aplicada, aproveitada para a busca do bem, em última instância, acontecem os
desequilíbrios da alma. Deixar com que a alma seja dominada pelos sentimentos
(paixões) ou pelos apetites trará consequências devastadoras. De novo Chalita:
“De acordo com o pensamento platônico, o desprezo à razão conduz à valorização
apenas das paixões pessoais, à agressividade, à imprudência, o que resulta em
ação violenta contra o próximo. Segundo Platão, quando o homem se deixa levar
pela paixão, pelos prazeres do corpo, pela busca sem limites da satisfação
física, ele está exercendo violência contra si mesmo, porque age de maneira
irracional. E ainda, se o homem age, em sociedade, dessa mesma maneira, não
leva em consideração as necessidades alheias [...] [e] provoca a infelicidade
de todos” (CHALITA, p. 52).
COMO
O CONHECIMENTO FILOSÓFICO CONDUZ À VIDA VIRTUOSA?
Aproveitando a exposição do
tema precedente, temos de tentar compreender um pouco melhor como é que a
contemplação das formas levam à virtude individual. Chalita, novamente, é muito
bom aqui: “Para Platão [...] o amor é a insuficiência de algo e o desejo de
conquistar aquilo de que sentimos falta. O amor dirige-se para o bem, cuja
aparência externa é a beleza. Existiriam muitas formas de beleza, mas a
sabedoria seria a maior de todas. A filosofia, defende Platão, é o único
caminho para contemplar essa suprema verdade. Para realizar-se, o filósofo é
capaz de desligar-se da paixão por outro indivíduo e dedicar-se à pura
contemplação da beleza” (CHALITA, p. 57). O conceito, pois, é o do anseio da
alma pelo que lhe falta, e a contemplação do bem, forma última, que engloba as
demais virtudes, é o anseio máximo do coração humano. Quanto mais profundo e
competente como filósofo ele for, melhor se deixará guiar pela dialética
formal. Sproul busca elucidar: “O verdadeiro filósofo busca a essência das
coisas, os ideais. Isso lhe permite elevar-se acima da superficialidade do
sofisma e do ceticismo dos materialistas. Ele busca o universal e não se
satisfaz com uma lista de particulares. Depois de discernir que determinado
objeto é belo ou virtuoso, ele vai além daquele particular para descobrir a
própria essência da beleza e da virtude. Algo só é bom se participa ou imita a
ideia perfeita do bem, e esse era o deus de Platão” (SPROUL, p. 39). É, pois,
uma ascensão espiritual que leva o filósofo à realização existencial. Aristófanes
coloca isso em termos de amar verdadeiramente: “Para amar verdadeiramente,
devemos progredir do desejo por um corpo belo para o amor por belos
pensamentos, leis, instituições, até que adquiramos uma visão mística do bem,
da verdade, da beleza” (ARISTÓFANES apud CHALITA, p. 56).
PROEMINÊNCIA
DO INTELECTO EM DETRIMENTO DOS DEMAIS ASPECTOS DA ALMA?
É evidente, com isso, que as
demais partes não devem ser negadas. Chalita é bom para reforçar a ideia e
trazer esse esclarecimento: “No plano individual, a felicidade é alcançada
quando as três partes da alma agem em conjunto na busca do Bem Supremo,
impulsionadas pelo amor. Para essa finalidade, a parte racional precisa reinar,
ajudada pela parte emocional, obediente às determinações da primeira; a parte
sensual, também necessária para a vida do homem, deve, no entanto, ser
controlada – mas não suprimida, pois a satisfação da fome e da sede (atributos
dessa parte da alma) é condição de sobrevivência do ser humano. O bem, ideia
principal entre todas, leva à verdade, à beleza, à justiça. Em outras palavras,
a alma tem de se dirigir à contemplação das ideias” (CHALITA, p. 57). Dessa vez
é Nash que vem complementar nossa exposição. Embora já seja ponto pacífico que
o homem precise priorizar o intelecto para se dar bem, há virtudes máximas para
cada parte da alma. O homem justo, pois, é o que é o mais harmônico em cada
aspecto de sua alma, conforme esclarece Nash: “Para Platão, há quatro tipos
básicos de virtude, chamados de virtudes cardeais: temperança, coragem,
sabedoria e justiça. Temperança (ou domínio próprio) é a própria virtude das
paixões. Coragem significa fortaleza em face da adversidade, a qual é a parte
espiritual da alma. Sabedoria significa excelência na seleção de meios
adequados para um fim; deveria ser óbvia sua relação com a parte racional da
alma. A quarta virtude, a que Platão chama de justiça, é a virtude abrangente
que se faz presente quando os seres humanos são temperantes, corajosos e
sábios” (NASH, p. 95-96).
O
HOMEM VIRTUOSO
O homem virtuoso, pois, é
aquele que contempla as virtudes e o bem. Temos de nos lembrar que essas
‘ideais’ não são, para Platão, meras abstrações. Elas são entidades muito
reais. Aliás, são mais reais que a realidade sensível. São a realidade última.
Portanto, conhece-las é conhecer a verdade. Conhecer a beleza, a temperança, a
sabedoria, a justiça e, por fim, o bem, fará com que o homem se torne bom.
Como? Aqui Platão é um fiel discípulo de seu mestre, como observa Chalita e Brisson:
“... como Sócrates, apostava na razão filosófica como o caminho que conduziria
o homem ao exercício da justiça e à pratica da virtude” (CHALITA, p. 52) e “Platão
retoma [... uma convicção de Sócrates que está fundada em dois postulados. 1) O
mal e o erro são indissociáveis; o reino do bem coincide com o reino da
verdade, que se instala quando, no homem, domina o movimento do círculo do
mesmo que é o lugar do conhecimento racional. 2) O desejo segue necessariamente
o pensamento; eis por que é impossível desejar outra coisa que não seja o bem
que se impõe à razão [...] Para lutar contra o mal que o homem não pode cometer
a seu bel-prazer e que em última análise resulta da ignorância, a melhor arma é
a educação dispensada pela cidade boa” (PRADEAU, p. 40). Esse, portanto, é
aquele conceito socrático, que já estudamos, no qual o conhecimento do bem
torna-o impreterível para o homem.
Aqui já começamos tanger à
educação e à cidade boa, ou seja, projetos políticos, o que ficará para outra
hora.
DEVEM
TODOS SER FILÓSOFOS?
Gaarder, em meio a esta
exposição, diz: “Devo dizer sem demora que Platão descreve aqui o desenrolar
ideal de uma vida, pois é claro que nem todas as pessoas liberam suas almas
para que elas possam empreender uma jornada de volta ao mundo das ideias. [...]
O que Platão descreve é o caminho percorrido pelo filósofo. Podemos considerar
sua filosofia a descrição da atividade de um filósofo” (GAARDER, p. 104).
Entretanto, embora seja o
caminho percorrido pelo filósofo, particularmente pelo filósofo platônico, é o
caminho ideal. Não deve ser preterido por ninguém. O Eros chamará a todos para
realizarem-se na contemplação das ideias. E a contemplação delas é que irá
tornar o espírito e o apetite virtuosos, como observamos anteriormente. Nesse
sentido, é mister que todos sejam educados na filosofia para o próprio bem e
para o bem da sociedade. Veremos que Platão não parece ter essa pretensão de
educação filosófica universal, e isso o distancia de seu mestre.
CARMA
Não bastasse Platão adotar a
doutrina espírita* da reencarnação, ele ainda propõe a doutrina do carma.
Brisson nos informa que “o Timeu termina com a descrição de um sistema
retributivo que supõe uma culpa real e, portanto, a consideração de alguma
responsabilidade” (PRADEAU, p. 40). É o mesmo Brisson nos guiará à contemplação
da doutrina do carma. Intimamente ligado aos conceitos antropológicos, temos a
doutrina de que a encarnação segue o critério moral: “... para que um sistema
retributivo como este que Platão propõe seja possível, é preciso antes que uma
entidade autônoma subsista depois da morte, quando a alma se separa do corpo, e
que esta entidade passe de um corpo a outro, em função da qualidade da sua
existência anterior num corpo” (PRADEAU, p. 35).
A grande discussão é se
Platão cria ou não na transmigração. Brisson crê que sim: “Diferente das almas
dos deuses e dos demônios, toda alma humana é suscetível de atravessar o corpo
de seres vivos diferentes, homem, mulher ou animal, em função da qualidade de
suas vidas anteriores. Para evitar decair ou para subir na escala dos seres
vivos, o ser humano deve guardar uma justa proporção entre seu corpo e sua
alma: este é o objetivo da educação. O intelecto deve também permanecer
dominante na alma” (PRADEAU, p.40).
A
DISCUSSÃO METAÉTICA EM PLATÃO
Platão reserva parte de suas
discussões à metaética, seguindo, aqui, a tradição sofística. Durant assim se
expressa: “Temos, aqui, o problema fundamental da ética, o ponto crucial da
teoria da conduta moral. O que é justiça? Devemos procurar a integridade, ou o
poder? É melhor ser bom, ou ser forte?” (DURANT, p. 36).
Por que Durant está fazendo
essas perguntas? É simples: Platão dialoga sobre essas questões. Primeiro,
lida-se com a questão de, na verdade, não haver moralidade peremptória,
objetiva. Na história da filosofia, tão incisivo quanto os sofistas, talvez
seja Nietzsche ao assumir essa posição. Tal fato já fora observado. E quem
conhece o filósofo irá se surpreender ao ver em Platão antecipações razoáveis
de suas teorias. Dois trechos são excelentes. Extraímos os dois do livro de
Durant: “Eu declaro que a força é um direito, e que a justiça é o interesse do
mais forte. (...) As diferentes formas de governo fazem leis, democráticas,
aristocráticas, ou autocráticas, visando a seus respectivos interesses; e essas
leis, assim feitas por elas para servirem aos seus interesses, elas as entregam
a seus súditos como sendo ‘justiça’ e punem como ‘injusto’ todo aquele que as
transgredir. (...) [...] Ora, quando um homem tirou o dinheiro dos cidadãos e
os transformou em escravos, em vez de ser chamado de trapaceiro e ladrão, ele é
chamado de próspero e é abençoado por todos. Pois a injustiça é censurada
porque aqueles que a censuram têm medo de sofrer, e não devido a qualquer
escrúpulo que pudessem ter de eles mesmos cometerem injustiça” (PLATÃO apud
DURANT, p. 35). Durant, mesmo, observa que essa doutrina é, mais ou menos
corretamente, associada a Nietzsche.
No Górgias o sofista Cálicles
diz: “Mas se houvesse um homem com força suficiente [...] ele iria
desembaraçar-se, romper e fugir de tudo isso; esmagaria com os pés todas as
nossas fórmulas, feitiços e amuletos, e todas as nossas leis, que pecam contra
a natureza. (...) Aquele que fosse realmente viver deveria permitir que seus
desejos chegassem ao máximo; mas quando eles alcançassem o ponto máximo, ele
deveria ter a coragem e a inteligência para atendê-los e satisfazer todos os
seus anseios. E isso eu afirmo ser justiça e nobreza naturais. Mas a maioria
não pode fazer isso e, portanto, condena essas pessoas porque sente vergonha da
própria incapacidade, que deseja esconder. Daí dizerem que o descomedimento é
torpe. (...) Eles escravizam as criaturas mais nobres e louvam a justiça só
porque são covardes” (PLATÃO apud DURANT, p. 36).
Essa, entretanto, é uma
doutrina que Platão tem de descartar, visto que as formas das virtudes existem.
Aliás, fora de uma teoria metafísica que justifique a ética de forma
ontológica, é uma disputa inútil tentar ‘legislar’. No final tudo vai girar em
torno de avaliar algo em prol do bem comum. Durant também nota isso. Aqui, em
suas observações, pouco que antecipa Freud e suas concepções sócio
antropológicas: “Em moral não devemos esperar inovações surpreendentes; apesar
das interessantes aventuras dos sofistas e dos nietzschianos, todas as
concepções morais giram em torno do bem geral. A moralidade começa com
associação, interdependência e organização; a vida em sociedade requer a
concessão de uma parte da soberania do indivíduo à ordem comum; e a norma de
conduta acaba se tornando o bem estar do grupo” (DURANT, p. 51).
Mas, como dissemos, embora a
moralidade platônica tenha seus aspectos sociais, ela é mais que isso. Ela vê
uma existência real das formas das virtudes. Portanto, o ‘bem’ existe de forma
concreta, e não apenas abstrata. Não se trata de uma mera abstração.
É agora, pois, que Nash
observa o dilema que Platão tenta solucionar no diálogo denominado Eutífron: “É
alguma coisa boa porque os deuses a ordenaram, ou os deuses a ordenam porque é
boa?” (PLATÃO apud NASH, p. 93). No Eutífron, um dos primeiros diálogos de
Platão, ele recomenda que “Se Deus quer x (um ato), tem de ser porque x é bom
antes e independente de Deus o querer. A razão de Platão para rejeitar [que] x
é bom somente porque Deus assim o quer é porque isso torna a ética arbitrária e
caprichosa. [...] Se a moralidade é baseada em nada mais do que um mandamento
arbitrário de Deus, é possível que Deus possa nos mandar realizar atos que
reconheçamos como imorais” (NASH, p. 93). Platão faz sua recomendação por
parecer falar dos deuses como sujeitos ao ‘bem’. Isso é importante ser notado,
pois, a concepção teológica de Platão em relação aos deuses não corresponde à
concepção teológica judaico-cristã. Quando formos estudar Anselmo perceberemos
que Deus é um conceito com implicações próprias, um conceito definido, que foge
à concepção antiga e pagã. O conceito escapou a Platão também. Sua solução é a
concepção de deuses limitados, tal como seu demiurgo. Nash também nota isso:
“Se a única alternativa a uma visão caprichosa e arbitrária da ética é crer que
o que Deus quer tem de ser subordinado a um padrão de bondade que está acima ou
é superior a ele, então um elemento importante da crença judaico-cristã terá de
ser abandonado, a saber, a convicção de que Deus é supremo e soberano e de que
nada é superior a Deus” (NASH, p. 93). Como veremos, Agostinho resolve
perfeitamente esse impasse valendo-se da teologia proveniente das Escrituras
Sagradas.
CRÍTICA À
ÉTICA PLATÔNICA
É evidente que a ética platônica está ligada à
veracidade de suas propostas antropológicas, epistemológicas e metafísicas em
geral. Mas podemos, ainda, acrescentar críticas específicas ao que abordamos
aqui, além das que já fizemos no decorrer do texto.
Nash faz uma afirmação que nos intriga. O
conceito já está, a esta altura, esclarecido, mas há um detalhe que não
abordamos: “O corpo humano é um impedimento à obtenção dessa verdade. Os
sentidos físicos impedem o avanço da alma na direção da verdade. A morte
liberta a alma de tal impedimento e torna possível para um filósofo alcançar
aquilo que ele tem buscado [...]. Embora o filósofo deva aceitar a morte, não
deve forçar a porta ou acelerar o processo por meio do suicídio [...] Para tal
pessoa, a morte somente pode significar um meio de realização daquilo que o
filósofo buscou durante mitos anos” (NASH, p. 87). Por que o filósofo ou
qualquer outra pessoa, ciente de que o corpo é uma prisão para a alma, não
podem acelerar o processo? Por que não o suicídio? Seria o modo mais rápido de
se alcançar o bem almejado. Não?
Talvez alguém diga que isso não seria muito
moral, e a alma não seria muito bem reencarnada. Bom, embora seja enfadonho, é
necessário enfatizar que a questão de a alma, feliz desencarnada, no mundo das
ideias (a concepção de almas desencarnadas como fantasmas e afins parece não
estar nem perto da cabeça de Platão), buscar encarnar-se parecer um contra
senso total. Mesmo assim, temos que lidar com essa explicação. Não nos parece
coadunar com a filosofia de Platão dizer que é moral e correto viver neste
mundo. O que parece ser mais virtuoso, acima de todas as outras ações, é a
contemplação filosófica. Se é assim, a questão do suicídio parece ainda mais
instigante.
Mas podemos tecer críticas à própria noção de
carma. Para isso, peguemos Ferreira e Myatt: “Carma, então, é uma lei de causa
e efeito absolutos. Embora as ações fluam do livre-arbítrio da pessoa, o carma
é uma forma de determinismo. As ações boas ou más devem receber seu galardão ou
castigo nas vidas futuras. Não há possibilidade de fugir da ‘roda do carma’.
Toda história é um ciclo eterno que se repete e do qual não há escapatória. O
resultado é um fatalismo prático” (FERREIRA; MYATT, p.324).
Podemos acrescentar as observações de que a
ética da fusão da doutrina do carma é um tanto quanto antiética. Isso mesmo!
Percebam que, na doutrina do carma alguém que padece de um mal está, na
verdade, expiando sua própria culpa. Portanto, ajuda-la seria prejudica-la. Ao
mesmo tempo, para que nossa própria alma ascenda, é mister que pratiquemos o
bem, a caridade. No final das contas, estamos a praticar um ato externamente
bom, mas que, olhado em sua inteireza, não passa de uma ação inescrupulosa e
egoísta. É, pois, muito possível praticar atos externamente reconhecidos como
frutos de amor, mas internamente maus. Não seria isso que Paulo estava falando
no famoso capítulo 13 da epístola aos Coríntios? Notamos os seus seguintes
dizeres: “E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda
que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada
disso me aproveitará” (esse é o terceiro versículo).
Essa doutrina do carma é muito estranha ao
sistema de Platão. Parece não se encaixar. Afinal, que força é essa que designa
a necessidade da existência virtuosa, com a ameaça de reencarnar mal caso não
se observe os preceitos? Seria o demiurgo? Os deuses? O bem não parece uma
entidade pessoal. Tudo muito estranho.
Embora Platão pareça, em muitos aspectos, mais
Kardecista que Cristão, ele abriu espaço para elucidação de muitos aspectos da
fé bíblica. No decorrer de nossos estudos, principalmente na exposição de
Agostinho, pretendemos demonstrar tal fato.
É interessante e aproveitável, também, sua doutrina sobre o 'eros'. Ele nota que há um tipo de anseio no homem, só não acerta exatamente o que é. Também em Agostinho, como em Pascal e Kierkegaard, iremos explorar o que nos parece ser a fonte do real anseio: Deus.
[confira, aqui, a filosofia política de Platão]
[confira, aqui, a filosofia política de Platão]
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* Quando formos estudar antropologia teológica,
particularmente a disputa entre dicotomia e tricotomia, é bom nos lembrarmos
desse ponto. A doutrina da tricotomia teria fundamento principal em Platão.
* Tecnicamente é o espiritismo que imita a
Platão, que por sua vez deve ter aprendido essas doutrinas em alguma seita
oriental, provavelmente dos pitagóricos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
A BÍBLIA Sagrada.
Tradução de João Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1999. 1334 p.
BRISSON, Luc. Platão_
PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James
Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de
Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
FERREIRA, Franklin;
MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e
apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, 1220p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de
Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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