[para uma interpretação mais precisa desse artigo, leia, clicando aqui, o artigo sobre a ética de Platão]
Enquanto, na apresentação da metafísica (que inclui a antropologia e a epistemologia) de Platão seguimos, primordialmente, a Ronald Nash, aqui seguiremos muito a Will Durant. Tal como se deu naquele caso, neste iremos nos valer da complementação de outros títulos que conhecemos, e teceremos alguns comentários buscando elucidar algum ponto que Durant (ou outro comentarista) não nos pareceu claro ou até mesmo tenha sido controverso.
Com este artigo sobre a
concepção política de Platão deixaremos o aristocrata de Atenas. Como é de
praxe, antecipações de várias filosofias que viriam, às vezes, séculos mais
tarde, serão comuns. Não estranhem, pois, Marx e Freud surgirem aqui ou acolá
nas entrelinhas. É evidente, lado outro, que diferenças hajam. Chegará o
momento de avaliar o que pode haver de bom em cada um desses pensadores. Por
hora, conheçamo-los. Mãos à obra.
O PROJETO
FILOSÓFICO-POLÍTICO
Para começo de conversa,
temos que compreender a proposta de Platão. Gaarder diz que “Platão [...]
descreve o Estado ideal, ou seja, ele imagina um Estado-modelo, ou ainda aquilo
que chamamos de Estado ‘utópico’” (GAARDER, p. 106). É, pois, uma idealização.
Com qual objetivo se teoriza em política? Basicamente é o seguinte: “...
[Platão] procurou, de fato, um projeto político no qual o governo da pólis
garantisse a felicidade de todos os seus habitantes” (CHALITA, p. 57). Isso é o
básico. Evidentemente precisamos nos aprofundar.
Primeiro, temos que observar
que a política se relaciona com a antropologia e com a ética. No decorrer da
história do pensamento veremos alguns enfocando mais um que outro, mas,
basicamente recorrem a concepções sobre o homem e sobre conceitos que concebem
sobre o bem e o mal para justificar suas propostas políticas.
Em Platão, o objetivo é
tentar formar indivíduos justos e, portanto, felizes, o que é possível
particularmente em um plano social. Durant, em momentos diferentes, percebe a
questão: “Se, sugere ele, pudermos imaginar um Estado justo, estaremos em
melhores condições para descrever um indivíduo justo” (DURANT, p. 36). “Ele
deseja discutir não só os problemas da moralidade pessoal, mas também os
problemas da reconstrução social e política” (DURANT, p. 37). Aristocles, pois,
irá elaborar o conceito de como seria um estado justo.
Agora, para teorizar na
política, temos que entender o que está acontecendo na ‘pólis’, a problemática
a ser resolvida. Aqui Brisson é extremamente pertinente: “A causa do mal na
cidade, quer dizer, a causa de todo conflito, externo ou interno, é a
competição (agon) que move a inveja e o ciúme (phthonos) e que chega à cobiça
(pleonexia), quer dizer, o desejo de ter cada vez mais. Externamente, isto leva
a cidade a querer incessantemente aumentar seu território, fazendo guerras
repetidas. Internamente, isto conduz cada cidadão a querer aumentar seu domínio
(oikos), usurpando para si os outros ou simplesmente se apoderando dele pela
astúcia ou pela violência: daí a guerra civil” (PRADEAU, p. 41). Observem,
pois, que o problema básico, para Platão, está no desequilíbrio dos indivíduos.
E, ao que tudo indica, Platão concebe o homem como se fosse essencialmente
corrupto.
Durant nota a raiz
antropológica do problema: “Por trás desses problemas políticos está a natureza
do homem [...] o Estado é o que é porque os seus cidadãos são o que são”
(DURANT, p. 39). Ou seja, o Estado é mal e corrupto porque o homem é mal e
corrupto. É preciso elaborar uma política que lide com isso. Durant instiga
nossa reflexão: “A justiça seria uma questão simples, diz Platão, se os homens
fossem simples; um comunismo anarquista seria o bastante” (DURANT, p. 37).
Diríamos que os homens não só não são simples, como não são bons.
Brisson ressalta o problema e
o trabalha um pouco melhor: “Mas, tal como o corpo que ela move, a alma do ser
humano pode ser objeto de desregramentos que não lhe convêm: mesmo que ela
conheça o bem, ela não chega a se conformar com ele. Estes desregramentos
devem, portanto, ter causas exteriores. Estas causas são duas: o mau
funcionamento do corpo e as más instituições que trazem como efeito uma má
educação” (PRADEAU, p. 39). Há, pois, questões que dizem respeito à própria
biologia do homem, e há questões relacionadas à formação do homem no meio. É
possível estruturar o meio para que ele não produza desregramentos na alma do
homem, ou seja, é possível conceber uma educação mais apropriada de modo que o
homem esteja propenso ao bem e até mesmo a lidar com os desregramentos de seu
corpo. É o caminho da educação. “A tarefa da educação é conduzir as pessoas da
escuridão para a luz, da caverna com suas sombras para o sol do meio dia”
(SPROUL, p. 37). Nisso consiste, basicamente, o projeto filosófico de
Aristocles, ou seja, Platão.
Antes de, pois, discursarmos
sobre a formação do cidadão ideal da República (nome da obra que o filósofo
escreveu e que representam basicamente as ideias que aqui iremos expor), temos
que entender se ele propunha uma democracia ou uma aristocracia; e como ele
concebe, primeiramente, as classes sociais da sociedade ideal.
DEMOCRACIA
OU ARISTOCRACIA?
O contexto de Platão é o da
discussão sofística, oscilante entre a anarquia e a aristocracia, no seio da
famosa e arquetípica, para nós, democracia ateniense. Notamos, noutra ocasião,
o ódio de Platão à democracia. Sócrates fora sua vítima e ele mesmo, o antigo
mestre de Aristocles, teria suspeitado da competência da massa burra. Iremos,
sim, encontrar um bom número de reflexões relevantes sobre a questão em Platão.
Embora iremos tecer comentários, aqui, basicamente, iremos expor os conceitos
de Platão via Will Durant.
Primeiramente, “O que este mundo
precisa é de ser governado pelos mais sábios de seus homens” (DURANT, p. 54). É
bom nos lembrarmos que os mais sábios, para Platão, são também,
necessariamente, virtuosos. Então, um apressado poderia pensar que ele estaria
propondo uma mera aristocracia, não é mesmo? Mas não esse o caso. Platão quer
erigir uma aristocracia-democrática: “Queremos ser governados pelo que houver
de melhor, que é o significado de aristocracia [...]. Mas passamos a pensar que
as aristocracias são hereditárias: que se observe com cuidado que essa
aristocracia platônica não é desse tipo; seria melhor chama-la de aristocracia
democrática. Porque o povo, em vez de eleger cegamente o menor de dois males a
ele apresentados como candidatos por facções indicadoras, aqui será, ele próprio,
o candidato [...] não há castas [..] não há impedimento para o talento nascido
sem recursos [...]. A carreira estará aberta para o talento, onde quer que ele
venha a nascer” (DURANT, p. 46).
Alguém poderia, nesse
instante, perguntar: porque não apenas uma democracia ou uma aristocracia. Bom,
para estes que ainda não captaram a problemática até aqui, ou para quem quer
reforçar suas convicções de que nem uma das duas formas de governo parecem
perfeitas em si, temos algumas citações de Durant a lhes apresentar. Primeiro,
complementando a citação anterior, temos críticas às aristocracias (inclusive
as oligarquias): “Toda forma de governo tende a se deteriorar devido ao excesso
de seu princípio básico. A aristocracia se arruína por limitar com demasiado rigor
o círculo dentro do qual se concentra o poder; a oligarquia se arruína pela
irrefletida corrida em busca de riqueza imediata. Em qualquer dos dois casos, o
fim é a revolução. Quando a revolução chega, pode parecer ter sido provocada
por causas pequenas e caprichos fúteis; mas embora possa nascer por motivos
insignificantes, ela é o resultado abrupto de erros graves e acumulados [...]
‘Surge então a democracia: os pobres vencem seus adversários, matando alguns e
banindo o resto; e dão ao povo uma quota igual de liberdade e poder’” (DURANT,
p. 38).
Platão estaria propondo a
democracia pura e simples, como normalmente se concebe? Nem de longe: “Mas até
a democracia se arruína por excesso de... democracia. Seu princípio básico é o
direito que todos têm de exercer um cargo público e determinar a política do
governo. Isso, à primeira vista, é um sistema encantador; ele se torna
desastroso porque o povo não está adequadamente preparado, pela educação, para
selecionar os melhores governantes e os caminhos mais sensatos [...] para ter
um doutrina aceita ou rejeitada, basta que a mandem elogiar ou ridicularizar
numa peça popular [..] O desfecho de uma democracia dessas é a tirania ou a
autocracia; a massa gosta tanto da lisonja, está com tanta ‘fome de mel’, que por
fim o mais astucioso e mais inescrupuloso lisonjeador, intitulando-se ‘protetor
do povo’, galga o poder supremo” (DURANT, p. 38). Junte toda essa crítica às de
Sócrates, e terás o quadro completo da reserva platônica à democracia.
O que ele propunha, pois,
como já antecipamos, seria uma democracia diferenciada, justa. “Democracia
significa perfeita igualdade de oportunidade, em especial na educação; não o
rodízio de todos os homens comuns nos cargos públicos” (DURANT, p. 45).
O objetivo, claramente, é
colocar os melhores, os mais competentes no governo. É, de certa forma, uma
aristocracia, sem o problema normalmente associado a ela, como nota Pondé: “...noção
de aristocracia [...] que a filosofia, já em Platão, separou da noção de ‘aristocracia
de sangue’ para defini-la como ‘o governo dos mais virtuosos’” (PONDÉ, p. 29). Em
duas citações Durant sintetiza o projeto aristocrático-democrático de Platão: “podemos
impor restrições à ocupação de um cargo e, assim, garantir aquela mistura de
democracia e aristocracia que Platão parece ter em mente [...] os estadistas
deveriam ser treinados tão específica e completamente quanto os médicos”
(DURANT, p. 54) e “Poderíamos até, tornar elegível para um cargo todo aquele
que tivesse sido treinado para ele e, com isso, eliminar por completo o
complexo sistema de indicações no qual tem sua sede a corrupção de nossa
democracia; que o eleitorado escolhesse qualquer homem que, devidamente
treinado e qualificado, se anunciasse como candidato” (DURANT, p. 55). Como
isso seria possível? Prossigamos em conhecer o projeto desse instigante
ateniense.
‘O CORPO’
DO ESTADO
A analogia entre a
constituição humana, ou as três funções da alma, e o Estado explica a divisão
social em Platão. Gaarder escancara o conceito: “Platão imagina um Estado
constituído exatamente como o ser humano. Assim como o corpo possui ‘cabeça’,
‘peito’ e ‘baixo-ventre’, também o Estado possui governantes, sentinelas (ou
soldados) e trabalhadores (dentre os quais se incluem, além dos comerciantes,
também os artesãos e os camponeses)” (GAARDER, p. 106). Mas é Chalita que faz a
exposição mais volumosa do assunto. Representando a cabeça, ou a razão,
teríamos filósofos: “A política, conforme Platão a concebia, deve ser
organizada de maneira análoga [...]. Platão imaginou a pólis como modelo de
vida em grupo. Na cidade, os filósofos, tendo conhecido a verdade através da
contemplação do mundo das ideias, teriam o dever de tomar as rédeas da
administração da cidade. Essa ‘obrigação’ consequência do fato de que, por
conhecer o bem, somente poderiam desejar que esse bem se estendesse à vida de
todos os homens [...]. Os filósofos, dessa forma, seriam como a parte racional
da alma” (CHALITA, p. 57-58).
Para representar as emoções,
obedientes aos filósofos regentes, estariam os guerreiros, os soldados, o poder
militar da pólis: “Nessa pólis, haveria também grupos de guerreiros ou
soldados, que se caracterizam por sua força, integridade e seu grande amor aos
sentimentos que Platão considera os mais nobres, como a fidelidade, a bravura e
a aversão à torpeza. Esses homens correspondem à parte emocional da alma, e
colaborariam obedientemente aos filósofos governantes” (CHALITA, p. 58).
Por fim, representando o
‘apetite’ do Estado, temos a classe basilar: “...homens que, por meio de seus
diferentes trabalhos garantiriam o sustento da sociedade: os agricultores,
pastores, artesãos, construtores, tecelões. Esse grupo estaria relacionado à
parte sensual da alma, por ser movido por ambição do lucro e não pelo desejo do
bem. Embora necessário para a sobrevivência material de todas as pessoas,
precisaria ser controlado pelos guardiães da cidade, segundo as ordens dos
dirigentes filósofos, que ditariam as normas de comportamento, a distribuição
dos alimentos e a realização de melhorias urbanas” (CHALITA, p. 58).
Essa divisão é ideal. Não é
bom que pessoas ‘destinadas’ a serem guerreiras ou camponeses assumam o
governo. Portanto, a primeira proposta objetiva de Platão para curar os males
do Estado é estabelecer filósofos como seus regentes: “A ruína chega quando o
negociante, cujo coração se anima com a riqueza, torna-se o governante” (PLATÃO
apud DURANT, p. 40) “quando o general usa seu exército para instalar uma
ditadura militar” (DURANT, p. 40). “Enquanto os filósofos não forem reis, ou os
reis e príncipes deste mundo não tiverem o espírito e o poder da filosofia, e a
sabedoria e a liderança política não encontrarem no mesmo homem, (...) as
cidades jamais deixarão de sofrer de seus males, o mesmo acontecendo com a ração
humana” (PLATÃO apud DURANT, p. 40).
Podemos dizer que, para
Platão, há uma meritocracia, ou seja, não outro critério a não ser o mérito
para colocar uma pessoa nessa ou naquela situação: “a divisão do trabalho deve
ser por aptidão e capacidade, não por sexo; se uma mulher se mostra capaz de
exercer administração política, que ela governe; se um homem se mostrar capaz
apenas para lavar pratos, que exerça a função para a qual a Providência o
destinou” (DURANT, p. 48). Assim, pelo menos, deve ser uma sociedade justa.
É interessante notar, a essa
altura, que Platão concebe a mulher tão capaz quanto o homem. Veremos que, em
sua opinião, seria o estado das coisas, a organização social, que embargam as
mulheres de usarem suas habilidades. Protelemos, por hora, esse assunto. O
importante, pois, para Platão, é que todos tivessem as mesmas oportunidades
educacionais, de formação, para que se definissem as posições no Estado Ideal.
Portanto, a República propõe “igualdade de oportunidade educacional que abrisse
para todos os homens e mulheres, independentemente das condições financeiras
dos pais, o caminho da instrução universitária e do progresso político”
(DURANT, p. 55). É sobre a educação que versaremos agora.
Antes, reforcemos o conceito.
Tomemos consciência da analogia do Estado com o homem e concebamos o seguinte: “Ora,
assim como a ação individual eficiente dá a entender que o desejo, embora
aquecido pela emoção, é guiado pelo conhecimento, no Estado perfeito as forças
industriais iriam produzir, mas não governar; as forças militares iriam
proteger, mas não governar; as forças do conhecimento, da ciência e da
filosofia seriam alimentadas e protegidas, e iriam governar” (DURANT, p. 39).
A FORMAÇÃO
DO CIDADÃO IDEAL
Essa, talvez, seja a parte
mais chocante da filosofia de Platão. A proposta cheira (ou melhor, fede) muito
a Marx, como todos poderão testemunhar. Temos que ter em mente que o projeto
filosófico tem uma agenda muito bem definida e Durant reforçará o conceito do
projeto de Platão: “Criar um método de impedir que a incompetência e a
velhacaria ocupem um cargo público e de selecionar e preparar os melhores para
governarem para o bem comum – este é o problema de filosofia política” (DURANT,
p. 38). Will Durant, aliás, é a nossa principal informação aqui, e basicamente
citaremos as partes mais importantes de seu texto.
Aqui Platão tem um plano, e
Pondé e Moura o sintetizam em poucas palavras: “Na República a escola deveria
selecionar os melhores para cuidar da cidade” (PONDÉ, p. 38) ou “O problema
político de Platão é educar e selecionar os melhores para governar” (PLATÃO, p.
73). Vejamos.
Pois bem, a proposta se
inicia no berço. Já observamos que Platão era aristocrata de nascença, e estes
tendiam à apreciação dos espartanos nesse quesito. Pois bem, é possível que
Platão tenha aprendido as seguintes propostas da observação, quiçá diálogo, com
espartanos, que praticavam a eugenia: “se nós conseguimos resultados tão bons
na criação de gado de forma selecionada para obter as qualidades desejadas, e
de reprodução apenas dos melhores de cada geração, por que não aplicar
princípios semelhantes ao acasalamento da humanidade? [...] Nenhum homem ou
nenhuma mulher deve procriar, a menos que goze de perfeita saúde [...] Os homens
só poderão reproduzir-se quando tiverem mais de 30 e menos de 45 anos; as
mulheres só quando tiverem mais de 20 e menos de 40 [...]. Os filhos nascidos
de uniões não autorizadas, ou deformados, devem ser abandonados, e deve-se
deixar que morram. Antes e depois das idades especificadas para procriação, as
uniões serão livres, sob a condição de o feto ser abortado [...] O casamento
entre parentes está proibido, por induzir à degeneração [...] Nossa juventude
mais brava e melhor, além de suas outras honrarias e recompensas, deve ter
permissão para ter maior variedade de parceiros, porque pais assim devem ter
tantos filhos quanto for possível” (DURANT, p. 48)*1. Maria Lacerda de Moura coloca
isso da seguinte forma: “A solução é tirar as crianças do seu meio pervertido:
leva-las para o campo. Esperar o desabrochar dos talentos, educação
generalizada, igual para todos” (PLATÃO, p. 73).
Tudo bem, garantindo que
pessoas ‘normais’ e saudáveis componham a população da República temo que
pensar em sua educação. Para começo de conversa, quem educaria essas crianças
não seriam os pais, e sim o Estado. Na implantação desse regime, a primeira medida
é separar os futuros cidadãos da perfeita sociedade dos já educados de forma
equivocada, bem como confiscar suas crianças: “Devemos começar ‘mandando para o
interior todos os habitantes da cidade que tiverem mais de dez anos de idade e
apossando-nos das crianças, que, assim, ficarão protegidas dos hábitos de seus
pais’ (540). Não podemos construir a Utopia com os jovens corrompidos, a cada
instante, pelo exemplo dos mais velhos [...] Seja como for, temos que dar a
cada criança, e desde o início, plena igualdade de oportunidade educacional,
não há como dizer onde surgirá a luz do talento ou do gênio” (DURANT, p. 40).
Lembremo-nos da proposta aristocrático-democrática. Aqui ela começa a se
fundamentar. O objetivo é dar à todas as pessoas as mesmas condições.
Enquanto ainda temos
crianças, o procedimento é o seguinte: “Nos primeiros dez anos de vida, a
educação será predominantemente física [...] na primeira década haverá formação
de uma tal reserva de saúde, que tornará desnecessária toda a medicina”
(DURANT, p. 40). Em suma, Platão acredita que as doenças são causadas, em
geral, pelo sedentarismo. Crianças fisicamente saudáveis, pois, serão criadas
por meio dessa proposta.
A próxima etapa é formar
jovens não só saudáveis como corajosos, harmoniosos. Ou seja, investir-se-á na
formação do caráter, do ‘Espírito’, da ‘Vontade’ do cidadão. E como Platão
propõe isso? É a música que Platão concebe como o preceptor do homem: “Como
iremos descobrir uma natureza delicada que também tenha uma grande coragem?
Porque as duas parecem incompatíveis” (PLATÃO apud DURANT, p. 41). “Não
queremos uma nação de lutadores de boxe e levantadores de peso. Talvez a música
resolva o nosso problema: através da música, a alma aprende harmonia e ritmo e,
até, uma propensão à justiça, afinal, ‘poderá aquele que é harmoniosamente
constituído vir a ser injusto[?]’” (DURANT, p. 41). Os adolescentes, agora,
aprenderão música. Isso formará um espírito sensível neles.
Para Platão o poder da música
sobre a alma humana é tão poderoso que ele acreditava que “A música modela o
caráter e, portanto, participa da determinação de questões sociais e políticas.
[...] quando mudam os estilos de música, as leis fundamentais do Estado mudam
com eles” (DURANT, p. 41). É como se a música, a harmonia musical, ditasse a
própria moralidade da sociedade! Parece-nos um conceito muito forçado.
Entretanto, temos de admitir o poder da música sobre nosso espírito.
Podemos falar até mesmo de
musicoterapia em Platão: “A música é valiosa não apenas porque cria requinte de
sentimentos e caráter, mas também porque preserva e restaura a saúde. Há
doenças que só podem ser tratadas através da mente [...]. As fontes
inconscientes do pensamento humano são tocadas e acalmadas por esses métodos; e
é nesses substratos de comportamento e sentimento que o gênio planta suas
raízes” (DURANT, p. 41)*2.
A música (quiçá poderíamos
incluir a ‘arte’), tem ainda outra função. Tampouco a música deve ser apenas
música; ela deve ser usada para proporcionar formas atrativas ao conteúdo às
vezes nada apetitosos da matemática, da história e da ciência” (DURANT, p. 42).
Ou seja, para os jovens a música pode tornar assuntos áridos coisas mais
agradáveis. Assim, ela tem um sentido pedagógico.
Tudo isso coaduna com a
proposta pedagógico-didática de Platão. Ele propõe que a educação deve ser
livremente buscada. O conhecimento não pode ser adquirido sob coação. Por isso,
a educação inicial deve ser mais divertida (DURANT, p. 42).
Matemática, história e
ciências, ao que parece, são disciplinas que vão sendo introduzidas aos poucos,
provavelmente com o lúdico, inicialmente, e segue-se durante a vida,
tornando-se cada vez mais sólidas, conforme o ofício que os cidadãos operarão
na sociedade. Prossigamos para compreender melhor.
Chega um momento em que a
adolescência termina e não se pode ficar pra sempre aprendendo música. Tal como
acontece com o esporte, a música deve ter limites. Platão a propõe até os 16
anos, segundo Durant (p. 42).
Aos vinte anos o cidadão da
República irá passar por um teste. Um exame tanto prático quanto teórico. “Cada
tipo de habilidade terá uma chance de se mostrar, e toda sorte de estupidez
será exposta. Os que não passarem serão designados para o trabalho econômico da
nação” (DURANT, p. 43). Acreditamos que os testes irão não só fazer a primeira
peneira, como designarão as aptidões que cada um tem, sua vocação na base
econômica da sociedade.
“O teste será imparcial e
impessoal; se o indivíduo vai ser fazendeiro ou filósofo, isso será determinado
não pela oportunidade monopolizada ou pelo favoritismo nepótico; as seleções
serão mais democráticas que a democracia” (DURANT, p. 43).
Os remanescentes da primeira
peneira irão estudar mais 10 anos. Após esse tempo, será aplicado um novo
teste, ainda mais rigoroso. Os fracassados nesse teste serão os militares. Aqui
Platão pode ter sido influenciado pelos espartanos*3.
Aqui é preciso cautela para
lidar com esses eliminados, pois como dominarão a força do Estado, precisam
estar perfeitamente persuadidos de seu destino, ou então poderão, facilmente,
tomar o poder. “Nesse caso, a religião e a fé serão nossa única salvação;
diremos a esses jovens que as divisões nas quais eles foram classificados são
determinadas por Deus e irrevogáveis” (DURANT, p. 43)* 4.
Falando em religião, Platão é
da posição de que é preciso haver uma religião para que uma sociedade perfeita
subsista. Se não existe Deus, ele concorda, tudo é permitido. A crença em Deus,
portanto, se faz necessária, pois, “já que os homens são, por natureza,
gananciosos, ciumentos combativos e eróticos, como iremos persuadi-los a se
comportarem? Com o onipresente cassetete da polícia? [...] Há um meio melhor, que
é o de dar às exigências morais da comunidade a sanção de uma autoridade
sobrenatural. Temos que ter uma religião. Platão acredita que uma nação não
pode ser forte, a menos que acredite em Deus. Uma simples força cósmica [...]
que não seja uma pessoa, mal poderia inspirar esperança, devoção ou sacrifício
[...]. Mas um Deus vivo pode fazer tudo isso e incitar ou obrigar, pelo medo, o
individualista a moderar um pouco a sua ganância, a controlar um pouco sua
paixão. Ainda mais se à crença em Deus se acrescentar a crença na imortalidade
pessoal” (DURANT, p. 42).
Os remanescentes finais,
agora, poderão aprender filosofia. Filosofia na boca de jovens é um convite
muito sedutor à vaidade. “Esse caro deleito, a filosofia, significa duas coisas
principais: pensar com clareza, que é metafísica; e governar com inteligência,
que é política” (DURANT, p. 43-44). Para atingir a habilidade de pensar com
clareza o filósofo estuda a teoria do mundo das ideias.
“Sem essas Ideias – essas
generalizações, regularidades e ideias – o mundo seria, para nós, o que deve
parecer aos olhos da criança que se abriram pela primeira vez, uma massa de
pormenores não-classificados e sem significado de sensação [...] Portanto, a
essência de uma educação mais elevada é a busca de Ideias: de generalizações,
leis de sequência e ideais de desenvolvimento; por trás das coisas, temos que
descobrir sua relação e seu significado, seu modo e sua lei de funcionamento, a
função e o ideal a que elas servem ou que elas prenunciam; temos que
classificar e coordenar a nossa experiência dos sentidos em termos de lei e de
propósito” (DURANT, p. 45). Durant parece dizer que logo o filósofo aprenderia
a aplicar o princípio de identificar as leis do comportamento humano.
Aos trinta e cinco anos, ou
seja, após cinco anos de treinamento filosófico, passamos para uma nova e
última etapa. “Generalizações e abstrações de nada valem se não forem testadas
por este mundo concreto” (DURANT, p. 45).
Então os filósofos serão
‘jogados’ à sociedade para viver, sem qualquer favorecimento. Por quinze anos,
informa-nos Durant, esses filósofos irão viver entre os homens. “Aqueles que
sobreviverem, com cicatrizes e aos cinquenta anos, de juízo assentado e com
confiança em si mesmos, despojados da vaidade escolástica pelo implacável
atrito da vida, e armados agora com toda sabedoria que a tradição e a
experiência, a cultura e o conflito podem cooperar para dar – esses homens irão
tonar-se automaticamente, afinal, os governantes do Estado” (DURANT, p. 45).
OS
FILÓSOFOS REIS
Platão diz o seguinte:
“Enquanto os filósofos não forem reis ou os reis e príncipes deste mundo não
tiverem o valor e o poder da filosofia, e a sabedoria e aptidão para governar
não se encontrarem reunidas no mesmo homem... não terminarão os males das
cidades nem da raça humana” (PLATÃO, p. 73). Já vimos que essa é a proposta
para os cargos mais altos na República de Platão.
Alguém poderia pensar que
Platão teorizou de modo que privilegiasse a si mesmo. Afinal, era o parteiro da
filosofia magna, e, portanto, certamente iria tornar-se um rei ao ver seus
ideais entrarem em voga. Entretanto, conforme nos informa Chalita, “Platão
[...] nunca tentou chegar ao poder em Atenas” (CHALITA, p. 58). Portanto, se o
cargo traz algum benefício, não foi ele quem o desfrutou.
Mas será que era um cargo tão
almejado assim? Lembremo-nos que o rei de Siracusa entrou em conflitos com
Platão e acabou escravizando-o! Veremos, agora, o porquê.
Primeiro, reforcemos o
conceito. Dionísio deve ter tentado dialogar com Platão sobre alternar o fato
de o rei precisar ser filósofo. Se o fez, recebeu explicações como essas: “Do
mesmo modo como um indivíduo saudável e harmônico mostra equilíbrio e
moderação, um Estado justo se caracteriza pelo fato de cada um conhecer o seu
lugar no todo [...] Decisivo para a criação de um bom Estado é que ele seja
dirigido pela razão. Do mesmo modo como a cabeça comanda o corpo, os filósofos
devem indicar à sociedade o caminho por onde ela deve ir” (GAARDER, p.
106-107).
Pois bem, mas, e como é que
esses reis vivem? O que ele fazem? Quais são seus ofícios?
Primeiramente, esses reis
filósofos, chamados também de ‘guardiães’, não farão qualquer outra atividade a
não ser governar para o bem do povo. Assim, “pondo de lado todas as outras atividades,
os guardiães irão dedicar-se inteiramente à manutenção da liberdade no Estado,
fazendo disso o seu ofício e não se dedicando a atividade alguma que não vise a
esse fim” (PLATÃO apud DURANT, p. 46).
Contra a inércia dos
filósofos, que poderiam reclusar-se em suas torres de marfim, Platão diz estar
prevenido. Os reis serão homens de ação. “Por filosofia Platão entende uma
cultura ativa, sabedoria que se mistura com a atividade concreta da vida, não
entende um metafísico de gabinete e sem utilidade” (DURANT, p. 46). Afinal,
eles passaram muitos anos entre o povo. Não podem deixar de pensar neles. São,
além de tudo, virtuosos, e, portanto, bondosos e caridosos. Afinal, ‘viram’ o
próprio bem. Não podem deixar de imitá-lo.
Competirá aos reis, também,
organizar a economia da pólis: “O comércio e a indústria serão regulados pelos
guardiães, para evitar uma excessiva riqueza ou pobreza individual; todo aquele
que adquirir mais de quatro vezes a posse média dos cidadãos terá que ceder o
excesso ao Estado” (DURANT, p. 49).
Para prevenir os governadores
filósofos da ganância, Platão propõe um comunismo entre eles: “...nenhum deles
deve ter qualquer bem além do que for absolutamente necessário; tampouco
deverão ter casa própria, com barras e trancas, fechadas para qualquer pessoa
que pretenda entrar; suas providências deverão ser apenas as exigidas por
guerreiros treinados, que são homens de moderação e coragem; concordarão em
receber dos cidadãos uma quota fixa a título ordenado, suficiente para cobrir
as despesas durante o ano, e nada mais; e terão refeições comuns e viverão
juntos [...] E isso será a sua salvação, e a salvação do Estado. Mas se eles
adquirem casas, terras ou capital próprio, irão tonar-se donos de casa e
agricultores em vez de guardiães; inimigos e tiranos, em vez de aliados dos
outros cidadãos...” (PLATÃO apud DURANT, p. 47).
Acreditamos que esse tenha
sido o principal ponto de discórdia entre Platão e Dionísio, o rei de Siracusa.
Afinal, ser rei lhe conferiria a perda de seus privilégios e regalias. Era uma
República completa e verdadeira. O Estado é para o povo e não para os seus
líderes. Quem quer reinar assim? Somente pessoas muito virtuosas!
“Os guardiães não terão
esposas. O comunismo deles será tanto de mulheres como de bens. Eles deverão
estar livres não apenas do egoísmo próprio, como do egoísmo da família [...]
serão dedicados não a uma mulher, mas à comunidade. Nem mesmo seus filhos serão
específica e distinguivelmente seus; todos os filhos de guardiães serão tirados
de suas mães ao nascerem e criados em comum; sua paternidade se perderá na
confusão [...] Todas as mães-guardiães tomarão conta de todos os filhos-guardiães
[...] todo menino será irmão de todos os outros meninos, toda menina será irmã,
todo homem será pai, e toda mulher será mãe” (DURANT, p. 47-48)* 5.
Como foi observado, pessoas
boas devem procriar o máximo que possível. E as mulheres com que os guardiães
deverão relacionar-se são de qualquer classe.
É bom lembrar, também, que
mulheres poderiam tornar-se guardiãs. “Platão tinha uma visão positiva das
mulheres – pelo menos para sua época. No diálogo O banquete é uma mulher,
Diotima, que abre a Sócrates as portas da filosofia” (GAARDER, p. 108).
Como dissemos outrora, para
ele, parece que são as condições sociais da sociedade patriarcal que inibe,
embarga, as mulheres de serem igualmente competentes, fazendo voz de feminista
já naquela época. Veja essa outra citação de Gaarder comentando o assunto e
perceba a dissolução da família observada alhures: “E é bom lembrar que ele
achava que as mulheres eram tão capacitadas quanto os homens para governar.
Isto porque os governantes deveriam dirigir a cidade-Estado com a razão. Platão
acreditava que as mulheres tinham a mesma razão que os homens, bastando para
isto que recebessem a mesma formação que os homens e fossem liberadas do
serviço de casa e da guarda das crianças. (E Platão queria abolir a vida
familiar e a propriedade privada dos governantes do Estado e de seus
sentinelas.). A educação infantil era importante demais para ser deixada a
cargo do indivíduo” (GAARDER, p. 107).
Portanto, na República, o
modelo tradicional de família onde as mães cuidam de seus filhos é banido.
Parece-lhe prejudicial.
LEIS?
Os guardiães deterão os três
poderes: executivo, judiciário e legislativo. Na verdade, não é bem ‘leis’ que
serão feitas. Parece que Platão não estava muito interessado no registro de
leis que, aliás, deram origem à democracia.
Chalita observa o seguinte:
“Platão compara o governante de uma pólis ao capitão de um navio (piloto) que,
para conduzir adequadamente sua tripulação, não se guia por um ‘manual’ ou
regras escritas, usa os conhecimento que somente ele possui. [...] o bom
governante pode fazer tudo, até mesmo descartar as leis escritas, desde que
estabeleça um governo perfeitamente baseado na justiça” (CHALITA, p. 19). Isso
parece coadunar com o que Nash diz sobre as leis e a teoria ética de Platão: “A
ética de Platão nada tem a ver com mandamentos tal como os temos no judaísmo e
no cristianismo. Platão ignora mandamentos e coloca toda ênfase sobre a
importância da virtude ou excelência, crendo que se os seres humanos possuírem
um caráter virtuoso, sua conduta será moralmente aceitável [...]. Uma pessoa
propriamente virtuosa se comportará em obediência aos mandamentos de Deus”
(NASH, p. 94).
Bom, os filósofos são aqueles
que contemplaram as virtudes e o bem. São, pois, pessoas justas e boas. Suas decisões
serão sábias e sensatas. Eles governarão com justiça.
Aliás, como Platão aprendera
com Sócrates, há palavras (bem como muitos outros termos) difíceis de se
definir. “Para a justiça, porém, Platão arrisca uma definição. ‘Justiça’, diz
ele, ‘é ter e fazer o que nos compete’” (DURANT, p. 50). É possível explicar,
tendo em mente tudo que foi explicado até aqui: “cada homem irá receber
equivalente àquilo que produz e irá exercer a função para a qual esteja mais
bem preparado. Um homem justo é aquele colocado justa no lugar certo, fazendo o
que lhe for possível e dando o pleno equivalente daquilo que recebe [...]
Justiça é coordenação eficiente” (DURANT, p. 50).
Refutando àquela noção
nietzschiana que relaciona justiça às imposições violentas do super-homem, “...justiça
não é força pura e simples, mas força harmoniosa; justiça não e o direito do
mais forte, mas a efetiva harmonia do todo” (DURANT, p. 50).
Assim, compete aos guardiães
manter uma sociedade de acordo com a proposta da República de Platão. Eles
devem harmonizar as partes, fazendo com que cada um exerça a função para a qual
Deus o vocacionou, e tenham o que lhes compete. Para tal, parece que Platão não
acredita ser necessária uma legislação. Basta educação.
DISCUSSÃO
POLÍTICA: AS CRÍTICAS A PLATÃO E O SEU PROJETO POLÍTICO
Várias críticas têm sido
feitas à filosofia política de Platão. Algumas estudaremos no momento em que
formos expor os demais filósofos. Podemos, entretanto, abordar várias coisas
nesta oportunidade que temos pela frente.
É evidente que Platão propõe
um Estado Totalitário. Esse Estado legisla até mesmo sobre se devemos ou não
ficar os filhos que tivermos. Ele propõe, (ainda que Platão vá tentar fazer uma
ressalva salvadora do sistema, como veremos adiante), a dissolução da família
como um ideal. Gaarder reconhece tal impressão totalitária: “Hoje em dia talvez
chamássemos o Estado de Platão de totalitário. E exatamente por causa disso
muitos filósofos criticam duramente Platão. Mas não podemos nos esquecer de que
ele viveu numa época completamente diferente da nossa” (GAARDER, p. 107). Bom,
continua totalitário. O Estado se intromete completamente na vida das pessoas,
inclusive destituindo-as de suas famílias.
Durant observa ainda algumas
outras críticas que são feitas e como, talvez, Platão lidaria com elas. Por
exemplo, “É muito bonito planejar uma sociedade em que todos os homens sejam
irmãos; mas estender esse termo a todos os nossos contemporâneos do sexo
masculino é tirar dele todo o calor e significado. O mesmo acontece com a
propriedade comum: significaria uma diluição da responsabilidade; quando tudo
pertence a todos, ninguém cuidará de coisa alguma [...] não deixaria espaço
algum para a privacidade ou individualidade; e iria presumir a existência de
virtudes como a paciência e a cooperação, que só uma minoria santa possui. ‘Não
devemos presumir um padrão de virtude que esteja acima das pessoas comuns
[...]’” (DURANT, p. 52). Ou seja, Platão está ciente dessa dificuldade.
Mas as críticas não param por
aí. Durant compila mais algumas reivindicações, particularmente, de ‘cor’
direita, conversadora: “Platão não deu o devido valor, segundo nos disseram, à
força do hábito acumulado na instituição da monogamia e no código moral
associado a esta instituição; subestimou o possessivo ciúme dos elementos do
sexto masculino, ao supor que um homem iria contentar-se em possuir apenas uma
parte de uma esposa; minimizou o instinto maternal ao supor que as mães iriam
concordar em ter filhos levados para longe delas e criados em um anonimato
cruel. E acima de tudo, esqueceu-se de que ao abolir a família estava
destruindo a grande zeladora da moral e da principal fonte dos hábitos
cooperativos e comunistas que teriam que ser a base psicológica de seu Estado”
(DURANT, p. 53).
Entretanto é o mesmo Durant
que sai a defesa de Platão, buscando concatenar as respostas que o filósofo de
Atenas iria dar a essas críticas: “Platão isenta, explicitamente, a maioria de
seu plano comunista; reconhece com nitidez que só uns poucos são capazes da
renúncia material que ele propõe para a sua classe dirigente; só os guardiães
irão chamar cada guardião de irmão ou irmã; só os guardiões não terão ouro ou
bens. A imensa maioria irá manter todas as instituições respeitáveis [...] No
que se refere ao instinto maternal, ele não é forte antes do nascimento, ou
mesmo do crescimento, da criança. A mãe comum aceita o recém-nascido mais com
resignação do que com alegria; o amor por ele é um sentimento que se
desenvolve, não um milagre repentino, e aumenta à medida que a criança cresce”
(DURANT, p. 53).
É evidente que as respostas
não podem ser aceitas tão facilmente. Primeiramente, o senso de família é uma
criação cultural? Eis a questão. Será que a educação, principiada na infância,
fora do alcance dos pais, não irá tornar o cidadão da República apático à sua
família? Essa educação não é universal? Então, quando é que o cidadão irá
voltar à sua família? E como é que ele vai vincular-se a ela?
Além do mais, é difícil
concordar com a ideia de que uma mãe não ama seu filho até que o tempo passe.
Platão teria que ter o testemunho de todas as mulheres que existem, ou pelo
menos a maioria, para averiguar tal fato. Se um grupo significante de mulheres
disserem que amam seus filhos já ao conceberem, ainda, quem sabe, no ventre
materno, então o mais célebre aluno de Sócrates tem um problemão pela frente.
Não seria violento, cruel, mal, tirar essas crianças à força dos braços de suas
mães? E, não fazendo isso, subverte-se todo o projeto.
E quanto à guerra? Idealmente
não há conflitos internos na República, mas ela precisa, assim mesmo, de
soldados para proteger-se de ataques externos. Vejamos Durant a comentar: A
República é um Estado pacífico. Mas deve estar preparado para o combate. “os
estados vizinhos, não administrados da mesma maneira, bem poderiam considerar a
ordenada prosperidade de nossa Utopia um convite ao ataque e à pilhagem”
(DURANT, p. 49). Assim, é preciso manter um exército. “Ao mesmo tempo, deverão
ser tomadas todas as precauções para evitar os motivos para uma guerra. O
motivo primordial é o excesso de população [...], o segundo é o comércio
exterior, com as inevitáveis disputas que o interrompem [...] o comércio
competitivo é realmente uma forma de guerra [...] Será bom, portanto, situar o
nosso Estado ideal bem no interior, a fim de que fique isolado de qualquer
grande desenvolvimento do comércio exterior” (DURANT, p. 49). Portanto, a
República não mantém relações externas. Ela é uma cidade autossuficiente, tais
como eram basicamente as pólis da época de Platão. Entretanto, pensar em coisas
do gênero a título de Estados e não apenas cidade-estado podem gerar mais
dificuldades. Não há como ‘se isolar’ ou ‘ir para o centro. É preciso proteger
os limites, as fronteiras. A aplicação desse projeto de isolamento,
principalmente em nosso mundo, parece-nos bem longe da realidade. Todavia,
certamente a disputa mercadológica é uma guerra. Se for possível evadir-se
dela, melhor. Lado outro, há uma perda na comunicação com outras culturas e nos
benefícios que tal comunicação traria. Já imaginaram cada nação ter que fazer
todas os avanços tecnológicos feitos pela humanidade, no decorrer dos séculos,
por si só?
Durant ainda desencadeia uma
série de raciocínios ‘conspiratórios’ contra a ideia da divisão de classes, precipuamente
a classe dos ‘filósofos-reis’: “A república de Platão, segundo se alega,
denuncia a divisão de toda cidade em duas outras, e depois nos oferece uma
cidade dividida em três. A resposta é que a divisão no primeiro caso é pelo
conflito econômico; no Estado de Platão, as classes guardiã e auxiliar estão
especificamente excluídas da participação nessa concorrência em busca do outro
e de bens. Mas, nesse caso, os guardiões teriam poder sem responsabilidade; e
será que isso não levaria à tirania? Em absoluto; eles têm poder e comando
político, mas nenhum poder econômico ou riqueza; a classe econômica, ficando
descontente com o modo de governar dos guardiães, poderia suspender o
fornecimento de alimentos, tal como os parlamentos controlam os executivos ao
conterem o orçamento. Mas então se os guardiães detêm o poder político, mas não
o econômico, como poderão manter o seu domínio? [...] A dependência econômica
dos guardiães de Platão em relação à classe econômica iria reduzi-los, muito em
breve, a controlados executivos políticos daquela classe [...]. Para Platão só
restaria uma coisa: que muito embora as políticas econômicas devam ser
determinadas pelo grupo economicamente dominante, é melhor que elas sejam
administradas por funcionários especialmente preparados para essa finalidade do
que por homens que passam, desajeitados, do comércio ou da indústria para a
função política sem qualquer treinamento nas artes do estadismo” (DURANT, p.
53-54). Ok, vamos por parte. Primeiramente, acreditamos que Platão tenha
resposta para a primeira pergunta. Os guardiães não seriam tiranos justamente
por serem pessoas de virtude elevadíssima por conta de seu contato com as
virtudes e com o bem.
A segunda questão é,
realmente, espinhosa. Os filósofos são garantidos como pessoas de virtude. Mas
e as ‘classes inferiores’? O que garantiria que os militares ou a classe da
subsistência não se revoltasse e cortasse o fornecimento de recursos às classes
superiores? Os homens são maus e poderiam, simplesmente, subverter todo o plano,
toda a estrutura, por ignorância, pela negligência em ‘fazer sua parte’. A
solução de Durant pode implicar em problemas. Por exemplo, a questão abordada
atrás. As classes inferiores poderiam muito bem almejar o comércio exterior.
Parece-nos, pois, uma questão não muito bem resolvida.
Durant observa, não sabemos
se exatamente expondo Platão, que “Alterações na distribuição da riqueza
produzem alterações políticas” (DURANT, p. 38). Se é assim, é muito possível
que o dedo de não-sábios na economia vá alterá-la a ponto de trazer implicações
políticas para a pólis. A única solução é que os próprios filósofos-reis
comandem o plano econômico e o Estado intervenha completamente na economia.
Será que seria possível aos homens comuns contentarem-se com isso?
“Porque um paraíso simples
como o que ele descreveu nunca chega? Por que essas Utopias nunca aparecem no
mapa? Ele responde: devido a ganância e o luxo. Os homens não se contentam com
uma vida simples: são gananciosos, ambiciosos, competitivos e invejosos; logo se
cansam do que possuem e anseiam por aquilo que não têm; e raramente desejam
qualquer coisa, a menos que ela pertença a terceiros. O resultado é a invasão
de um grupo sobre um território de outro, a rivalidade de grupos pelos recursos
do solo, e depois a guerra. O comércio e as finanças se desenvolvem e trazem
novas divisões de classes. ‘Qualquer cidade comum representa, na verdade, duas
cidades, uma dos pobres e a outra dos ricos, cada qual em guerra com a
outra...” (DURANT, p. 37). Em suma, há pobres e ricos nas pólis. Uma classe que
alcançou o poder e outra que almeja tirá-lo. Platão concebe, pois, algo como
uma luta entre os opressores e oprimidos. É importante notar que aqui Platão
fica muito distante, e acreditamos até mesmo que refute a Marx. As utopias
propostas não são possíveis porque o homem não se contenta. Ele sempre quer
mais. É evidente que o problema da sociedade está na própria corrupção do
indivíduo, e não é a sociedade opressora que o torna mal, e sim ele, mal, que
cria uma sociedade opressora, reflexo de seu caráter. O melhor a ser feito é,
para Platão, agir conforme seu projeto e tentar educar os homens o melhor
possível para que a pólis aproxime-se o máximo possível de seu ideal.
E, sim, Platão estava ciente
de que, de repente, sua República não passasse de uma utopia, um ideal a ser
perseguido, mas, talvez, impossível de ser alcançado justamente por conta da
corrupção humana. Os ‘não-filósofos’ poderiam, mesmo sob ‘ameaça religiosa’,
mesmo sabendo de suas ‘posições sociais conforme a providência divina’, por não
terem contemplado a verdade, sempre estar a cobiçar o que não lhes pertence. Na
cosmovisão platônica diríamos que seria um direcionamento equivocado do Eros.
Na linguagem teológica diríamos que é um ídolo*6. Bom, Durant é quem nos relata da
confissão e Platão: “Por fim, é justo acrescentar que Platão compreende que a
sua Utopia não se encaixa bem no terreno das coisas exequíveis. Ele admite que
descreveu um ideal difícil de ser atingido [...] a importância do homem está em
que ele pode imaginar um mundo melhor e querer transformar pelo menos uma parte
dele em realidade [...] ‘Olhamos para trás e para a frente e ansiamos por
aquilo que não existe.’ E nem tudo deixa de produzir resultados” (DURANT, p.
55).
Platão acaba, inclusive, concebendo
um outro Estado Ideal. Na verdade, seria o segundo melhor, como nos informa
Gaarder: “Depois de passar por várias e pesadas decepções políticas*7, Platão escreveu o diálogo As
leis. Nele, Platão descreve o ‘Estado legal’ como o segundo melhor tipo de
Estado e reintroduz as noções de propriedade privada e laços familiares. Desse
modo, a liberdade das mulheres é restringida. Mas ele também diz que um Estado
e que não forma nem educa suas mulheres é como um homem que treina apenas o
braço direito” (GAARDER, p. 107).
NOSSAS
IMPRESSÕES
O projeto de Platão é,
deveras, engenhoso. Não podemos nos furtar de elogiá-lo. Entretanto,
parece-nos, em muitos aspectos, pífio, principalmente pelo fato de a cosmovisão
não estar completa e apresentar sérios problemas. Há, no entanto, que se reter
algumas coisas. Consideramos digno de aproveitamento os seguintes pontos.
Primeiramente, de fato,
quanto mais sábios forem nossos governantes, melhor. Não é que o conhecimento
seja suficiente para termos bons governantes. Entretanto, evidentemente bons
governantes, no mínimo, serão beneficiados com a instrução. A instrução não
poderá prejudica-los e, possivelmente, os tornará melhor. Por que não, pois,
demandar que nossos governantes sejam pessoas de extrema competência?
Parece-nos, igualmente
necessário, principalmente numa República, demandar que nossos governantes
sejam pessoas de bom caráter e patriotas. Exigir que vivam na pobreza e miséria
seria demais. Mas é certo que, não sendo boas pessoas, irão corromper-se e tornar
o Estado uma escada para o próprio bem, perdendo o ideal republicano,
evadindo-se de pensar no povo.
Platão nos ensina, também,
que, primeiro, evidentemente, nem todos são iguais. Isso é óbvio*8. Mas o governo deve buscar, na
medida do exequível, proporcionar condições semelhantes para todos os cidadãos
de modo a maximizar o desenvolvimento de seus dons. O investimento na educação
é, pois, algo de sumo valor.
É óbvio, também, que uma
população que envolve-se com esportes e atividades físicas são menos suscetíveis
à várias doenças. Claro que nem todas as doenças podem se evitar com meros
hábitos saudáveis. Mas investir e incentivar a prática esportiva é algo que o
governo bem poderia fazer.
Também achamos válido o
controle do Estado na máxima renda. Parece-nos legal que haja um máximo de
riqueza que alguém possa ter. Não somos especialistas em filosofia política,
mas essa parece-nos uma boa ideia.
Talvez, realmente, falte à
população uma formação artística mais adequada. É claro que não acreditamos no
poder moralizador da música. Mas suspeitamos que ela possa trazer, sim, algum
progresso civilizatório.
---------------------------------------------------------------
*1 Como se não bastasse nosso respeitado filósofo antecipar Marx, ele também antecipa Darwin na pior e mais negligenciada consequência de sua proposta filosófica, como observa o grande filósofo brasileiro da atualidade, Olavo de Carvalho, no artigo ‘Por que não sou fã de Charles Darwin’. Vamos extrair uma citação do próprio Darwin que ali aparece e rogamos para que percebam as semelhanças: “Entre os selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os sobreviventes geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, civilizados, por nosso lado, fazemos o melhor que podemos para deter o processo de eliminação: construímos asilos para os imbecis, os aleijados e os doentes; instituímos leis para proteger os pobres; e nossos médicos empenham o máximo da sua habilidade para salvar a vida de cada um até o último momento... Assim os membros fracos da sociedade civilizada propagam a sua espécie. Ninguém que tenha observado a criação de aniamis domésticos porá em dúvida que isso deve ser altamente prejudicial à raça humana. É surpreendente ver o quão rapidamente a falta de cuidados, ou os cuidados erroneamente conduzidos, levam à degenerescência de uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio ser humano, ninguém jamais foi ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzissem” (DARWIN apud CARVALHO, p. 400).
*1 Como se não bastasse nosso respeitado filósofo antecipar Marx, ele também antecipa Darwin na pior e mais negligenciada consequência de sua proposta filosófica, como observa o grande filósofo brasileiro da atualidade, Olavo de Carvalho, no artigo ‘Por que não sou fã de Charles Darwin’. Vamos extrair uma citação do próprio Darwin que ali aparece e rogamos para que percebam as semelhanças: “Entre os selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os sobreviventes geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, civilizados, por nosso lado, fazemos o melhor que podemos para deter o processo de eliminação: construímos asilos para os imbecis, os aleijados e os doentes; instituímos leis para proteger os pobres; e nossos médicos empenham o máximo da sua habilidade para salvar a vida de cada um até o último momento... Assim os membros fracos da sociedade civilizada propagam a sua espécie. Ninguém que tenha observado a criação de aniamis domésticos porá em dúvida que isso deve ser altamente prejudicial à raça humana. É surpreendente ver o quão rapidamente a falta de cuidados, ou os cuidados erroneamente conduzidos, levam à degenerescência de uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio ser humano, ninguém jamais foi ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzissem” (DARWIN apud CARVALHO, p. 400).
*2 Aqui pedimos licença ao leitor
para observar mais uma antecipação genial de Platão. Dessa vez ele antecipa a
Freud ao conceber, nos sonhos, um ‘homem’ desembargado pelas pressões
socioculturais: “Certos prazeres e instintos desnecessários são considerados
ilegais, todo homem parece tê-los, mas em certas pessoas eles são submetidos ao
controle da lei e da razão [...], e com os desejos melhores predominando sobre
eles, são inteiramente suprimentos [...] enquanto que em outras pessoas são
mais fortes e mais abundantes. Refiro-me, em particular, aos desejos que estão despertos
quando poder de raciocínio, de subjugar e governar [...] da personalidade está
adormecido; o animal selvagem que há em nossa natureza, empanturrado de carne e
bebidas, levanta-se e sai andando por aí nu e se sacia à vontade [...] Mas
quando o pulso de um homem é saudável e comedido, e ele vai dormir frio e
racional, (...) depois de saciar seus apetites sem exageros para mais ou para menos, mas o suficiente para deixa-los
adormecidos (...), ele passa a ser, então, o menos sujeito a ser um joguete de
visões fantasiosas e licenciosas. (...) Em todos nós, mesmo nos homens bons,
existe latente essa natureza de animal selvagem, que espreita durante o sono”
(PLATÃO apud DURANT, p. 41).
*3 Quanto às informações dos
espartanos, basicamente as temos oriundas de um vídeo do professor Rodolfo
Neves, intitulado ‘Antiguidade Clássica – Esparta’. Façamos uma breve exposição
dos pontos relevantes para nossa instrução aqui. Ou seja, só tocaremos os
pontos pertinentes à proposta da nota, a saber, compreender a nossa sugestão de
influência espartana na proposta de Platão.
Quanto à sociedade,
estamental, era dividida em três camadas. A primeira era composta por
esparciatas: latifundiários, militares e, inclusive, descendentes dos Dórios.
Temos, também, nessa camada, os ‘hoplitas’, ou seja, os soldados cidadãos.
Na segunda camada temos os
periecos, ou seja, creto-micênicos que não resistiram à invasão dos Dórios.
Eram os homens livres. Ou desenvolviam trabalhos ligados aos esparciatas ou
comércios. Eram homens sem posse de terra. Eram pobres e não tinham direito à
cidadania, ou seja, não eram ‘hoplitas’.
Na última camada social temos
os ‘hilotas’, ou seja, aqueles creto-micênicos que tentaram lutar contra a
invasão dos Dórios e que acabaram sendo capturados e feitos servos, escravos. O
professor Rodolfo cita uma controvérsia relacionada ao assunto. Alguns entendem
que os hilotas eram prisioneiros de guerra e convertidos em escravos, outros
entendem que eram prisioneiros da cidade, servos da cidade que ficavam
circunscritos a determinados lotes de terra. Assim, quando um esparciata
precisava de mão de obra, podia solicitar hilotas à cidade, embora não pudesse
vende-los.
Ainda segundo o professor
Rodolfo Neves, a educação espartana, chamada de Ágogue, começava aos sete anos
e ia até os trinta. Os filhos dos esparciatas (a educação não se estendia aos
periecos e hilotas) eram tirados de suas famílias aos sete anos e era colocada
em um quartel militar para serem educadas. Lá ela perdia o contato com sua
família e suas afeições eram dirigidas à cidade de Esparta. Desde então há um
intenso treinamento militar até que aos dezoito anos o jovem esparciata é
submetido a uma prova para averiguar se o jovem poderia tornar-se um militar. A
prova consistia em matar hilotas. Os que passavam nessa prova iam para a
segunda etapa da educação militar que ia até os trinta anos! Somente aos trinta
anos o soldado recebe o título de hoplita: soldado cidadão. Então ele recebia
terra, hoplitas para trabalhar para ele e angariava o direito de casar-se e ter
família.
A semelhança que encontramos
está, além do fato de a educação começar na infância, distante da família, no
fato de haver um teste na juventude que garante o progresso na educação para
identificar os verdadeiros militares e, por fim, aos trinta anos termos
militares formados. Entretanto, para os de Esparta, a educação terminaria ali.
Para a República de Platão seriam os ‘fracassados’ no teste que tornar-se-iam
militares.
*4 Aqui Durant entra (ou parece
entrar) em desacordo com o que temos aprendido sobre a complicada teologia de
Platão. Já notamos que não é possível identificar a divindade de Platão. Temos
o ‘bem’ e o ‘demiurgo’ como candidatos. Entretanto ele também fala dos ‘deuses’
do panteão. Seja como for, o demiurgo é uma figura complementar ao sistema,
portanto, precisa ser elencado para que o sistema busque se completar. Já o
‘bem’ é um ser necessário, deduzido do sistema. Não poderia, pois, coadunar com
o que Durant afirma sobre Platão: “Admite-se que nenhuma das crenças pode ser
demonstrada; que Deus pode, afinal de contas, ser apenas o ideal personificado
do nosso amor e da nossa esperança, e que a alma é como a música da lira e
morre como o instrumento que lhe deu forma; no entanto, sem dúvida [...] que
não nos fará mal algum o fato de acreditarmos, e é possível que faça um bem
incalculável a nós e a nossos filhos” (DURANT, p. 42). Evidentemente,
inevitável pensar na Aposta de Pascal. Mas quando se fala do ‘bem’ Platão não
parece falar de uma mera aposta. É possível que aqui esteja mais uma das
contradições no sistema do sábio.
*5 Aqui parece-nos haver outra
contradição em Platão. Primeiro ele ensina que não propõe, como diz Pondé, uma
aristocracia de sangue, e sim de competência. Portanto, não quer que se
distinga entre filhos de guardiães ou filhos de camponeses. Do filho de um
camponês pode sair alguém com competência para ser um rei ou um militar. Do
filho de um rei pode sair alguém com a competência para ser um camponês ou
militar. Não é pelo sangue que se decidem as funções na sociedade.
Por outro lado, ensina-se que
os mais competentes, os reis, devem ter mais mulheres pois seus filhos
provavelmente serão mais saudáveis. Ora, isso soa muito contraditório!
*6 Falaremos disso noutra
oportunidade. É provável que o mencionemos em Agostinho e em outro artigo
especificamente sobre o assunto.
*7 Maria Lacerda de Moura, sagaz,
comenta: “Depois disso [do impasse em Siracusa], Platão escreve as Leis, livro
quase oposto à República, conservador, autoritário, reacionário. Seria sua
experiência de Siracusa?...” (PLATÃO, p. 73).
*8 Iremos desenvolver melhor essa
ideia num futuro artigo sobre Formas de Governo.
REFERÊNCIAS
BRISSON, Luc. Platão_
PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James
Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de
Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
CARVALHO, Olavo de;
BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para não ser um
idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
PLATÃO. Apologia de
Sócrates. Tradução e Apêndice de Maria Lacerda de Moura; Introdução de
Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, 88p.
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia
Politicamente Incorreto da Filosofia: ensaio de ironia. São Paulo: Leya,
2012, 232 p.
NEVES, Rodolfo. Antiguidade
Clássica – Esparta. Acessado dia 05/05/2014 em: https://www.youtube.com/watch?v=AdkgZdz-TJQ.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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