Já vimos, noutro artigo (leia-o aqui), uma
iniciativa para compreender Parmênides. Sabemos, pois, que pelo livro “Sobre a
Natureza” Parmênides expressou-se e expôs poeticamente suas ideias. Conhecemos
a via da verdade. Linguisticamente concordamos com Parmênides. Entretanto, esse
pensador levará aquela ideia a conclusões complicadas e enredará a filosofia em
campos misteriosos, confusos, quiçá ilógicos. Veremos isso.
O SER É IMUTÁVEL
Já sabemos que o não-ser, ou
o ‘nada’, não pode nem mesmo ser pensado. Portanto, toda proposição racional
tem de ser enunciada em termos de ‘ser’ para que faça algum sentido. Mas
Parmênides extrapola tal conclusão para o campo da realidade, para além da
linguagem. Parmênides não afirma apenas que ‘o que é, é’, mas completa com ‘e o
que é não pode deixar de ser’. Osborne capta o passo dado por Parmênides de uma
maneira concisa: “Afirmando que não podemos nem pensar o que não é, nem dele
falar, e que ‘nada’ não pode nunca existir, a deusa de Parmênides sugere que a
realidade é algo imutável, sem início nem fim, sem passado nem futuro”
(PRADEAU, p.24). Que o mundo sempre existiu era um pressuposto dos gregos. Com
isso não havia problemas para a aceitação de Parmênides. Mas ele vai mais
longe, como aponta Osborne, e propõe que tudo sempre existiu do mesmo jeito!
Gaarder deixa a mensagem clara: “Parmênides acreditava que tudo o que existe
sempre existiu. Este era um pensamento muito corrente entre os gregos, para
quem era praticamente evidente que tudo o que existe no mundo sempre existiu. Nada
pode surgir do nada, dizia Parmênides. E nada que existe pode se transformar em
nada. Mas Parmênides foi mais longe do que a maioria dos outros. Ele
considerava totalmente impossível qualquer transformação real das coisas. Nada
pode se transformar em algo diferente do que já é” (GAARDER, p.46-47).
Em outras palavras, o ser é
imutável. Chalita explica: “o ser é imutável e eterno, porque, se sofresse uma
transformação qualquer, teria de deixar de ser (isto é, tornar-se não ser) para
tornar-se outra coisa (isto é, de não-ser, tornar-se ser). Mas isso seria
impossível, pois nada pode surgir do não-ser” (CHALITA, p. 39). Como tudo que
existe é, então tudo que existe sempre existiu e não pode sofrer qualquer
alteração. Sproul é outro que tenta elucidar o problema: “Para Parmênides, tudo
o que existe de modo absoluto, não pode mudar (‘tudo o que é, é’). Não pode ser
e não ser ao mesmo tempo e da mesma maneira. Se está se tornando não pode estar
sendo. Se não está sendo, não é nada. Tem de ser absolutamente ou não ser”
(SPROUL, p. 23).
Vamos tentar deixar tudo
isso o mais simples possível. Bom, temos um determinado ente, um ser. Ele é
isso ou aquilo, portanto, ao dizermos o que ele é enunciamo-lo com seus devidos
predicados. Se fôssemos pensar em algo transformando-se ele, primeiro, teria de
deixar de ser o que é para, então, tornar-se outra coisa. Nesse processo, o
que, num instante, é algo, noutro já não-é. Nesse instante Parmênides entende
que a coisa perde o próprio ser e torna-se nada. Ilustremos da seguinte maneira.
Um círculo é algo com a propriedade de ser circular, arredondado. Para um
círculo tornar-se um quadrado ele tem que deixar de ser círculo e, então,
tornar-se quadrado. Neste ínterim, quando ele não é mais círculo mas ainda não
é quadrado, o que ele é? Parmênides diria: ele não seria nada. No ato de
tornar-se ainda não se é. Uma coisa que será outra não é nada ainda.
Ficamos, em nossa pequenez,
nos perguntando algumas coisas. Questionamos se algo, ao transformar-se,
precisaria passar por um instante de perda total de qualquer predicado. Um novo
predicado não poderia ser creditado ao ente no mesmo instante? Ele precisaria
deixar de existir? Será que o predicado da existência não poderia ser mantido
enquanto outros fossem alterados? Ainda assim permanece a questão sobre como e
porque as coisas se alteram. Os próximos filósofos terão de lidar com essa
questão. Antes, vamos terminar de ver o que mais o eleata mais célebre de todos
tem a nos ensinar, ou, pelo menos, a nos instigar.
A MUDANÇA É ILUSÓRIA
Embora as coisas não mudem,
de fato, aparentemente mudam. As transformações são patentes aos nossos
sentidos. São empiricamente comprovadas. Ninguém nega isso. Mas essa via, esse
modo de conhecer, não nos conduz à verdade. Chalita expõe: “Através dos sentidos,
os homens percebem os mais diversos fenômenos naturais, constatam mudanças nas
pessoas e nos seres vivos em geral: em resumos, testemunham um mundo que está
em constante transformação. Segundo Parmênides, entretanto, o que é percebido
pelos sentidos não permite que o homem conheça realmente a verdade, o ser
verdadeiro e universal (CHALITA, p. 39).
O que está sendo disputado
aqui é a primazia da razão ou das sensações. Chamemos Gaarder para esclarecer:
““É claro que Parmênides sabia das constantes transformações que ocorrem na
natureza. Mas ele não conseguia harmonizar isto com aquilo que sua razão lhe
dizia. E quando era forçado a decidir se confiava nos sentidos ou na razão,
decidia-se pela razão. Todos nós conhecemos a frase ‘Só acredito vendo’. Mas Parmênides
não acreditava nem quando via. Ele dizia que os sentidos nos fornecem uma visão
enganosa do mundo; uma visão que não está em conformidade com o que nos diz a
razão” (GAARDER, p. 47). Portanto, em suma, “a mudança, para Parmênides, é
ilusão” (SPROUL, p. 23).
Mas Osborne nos informa que
a deusa ordenara a Parmênides que se notificasse das opiniões dos homens: “Como
resultado deste monismo incontestável, a terceira parte do poema (‘Caminho da
Opinião’) tem algo de espantoso. A deusa ‘concluiu, diz ela, sua explicação
digna de confiança da verdade’, e o jovem deve doravante descobrir a opinião
dos mortais. Mas por quê? [...] Trata-se da melhor explicação possível do mundo
da sensação?” (PRADEAU, p. 24). Seja qual for o motivo, segundo Gaarder, a
tarefa do filósofo, para Parmênides, era desmentir as sensações: “Como
filósofo, ele achava que sua tarefa consistia em desvendar todas as formas de
‘ilusão dos sentidos’” (GAARDER, p. 47).
A EPISTEMOLOGIA PROBLEMÁTICA
Ainda temos que explorar,
brevemente, a questão da opinião, a última via de seu poema Sobre a Natureza.
Todo conhecimento não racional, o conhecimento empírico, é ilusório. A “opinião
é designada, em grego, pela palavra doxa, e Parmênides a considerava algo
desprezível, como um ponto de vista qualquer, individual e que nunca poderia
corresponder à verdade” (CHALITA, p. 39).
Portanto, quando notamos
alguma mudança, algum movimento, alguma transformação, estamos apenas
percebendo as coisas de uma forma, de um modo, de um ponto de vista. Mas isso
não corresponde à realidade. É uma opinião, diz Parmênides. Chalita, mais uma
vez, torna isso claro: “A doxa diz respeito ao modo como cada um exprime suas
preferências, seus gostos, interesses, sentimentos, variando de pessoa para
pessoa” (CHALITA, p.40). Segundo Chalita, pois, para Parmênides toda impressão
pessoal, todo conhecimento subjetivo, é opinião. Ou melhor, todo conhecimento
não racional é subjetivo.
Ainda acompanhando Chalita,
para Parmênides somente as opiniões são passíveis de se tornarem vítimas da
retórica: “Vencerá aquele que melhor souber persuadir e conquistar a opinião
alheia, e não a melhor ideia. As opiniões mudam, ora afirmando ora negando a
mesma coisa; são instáveis e não nos permitem, realmente, saber o que as coisas
são” (CHALITA, p. 40). Portanto a opinião pode assumir o status de
verossimilhança, no máximo, mas nunca de verdade. E, de fato, os dados
empíricos são muito verossímeis, mas a razão, para o eleata, impede-nos de
dizer que são verdadeiros.
Mas então começam os
problemas. Chalita diz que “A opinião seria mera aparência e, assim, faria
parte do não-ser” e, apesar de a opinião ser mera ilusão, “os mortais tendem a
tomar o não-ser pelo ser, uma vez que guiavam seu pensamento pela opinião”
(CHALITA, p. 40). Pode ser que simplesmente não tenhamos compreendido
Parmênides, e o leitor, nobre, que venha nos notificar (seremos muito gratos),
mas parece-nos que aqui temos uma contradição visível.
Na exposição de Chalita,
Parmênides acredita que as opiniões, como aparências, fazem parte do não-ser.
Ou seja, percebemos as transformações. Essa percepção é um dado mental, algo
que está em nossa mente. Vimos algo mudar, transformar-se. Essa visão é um
ente, algo existente em nossa mente. Mas é mera ilusão. É aparência. Como é
aparência, na verdade, segundo Chalita, é um não-ser. Mas já vimos que o
‘não-ser’ não pode, nem mesmo, ser pensado. Portanto, se a opinião é não-ser
ela não poderia ser pensada. Então as opiniões jamais chegariam às nossas
mentes porque, afinal, elas nem mesmo existem. Ou Parmênides, ou Chalita, estão
em sérios apuros aqui.
Chalita complica-se ainda
mais: “Ser, pensar e dizer seriam a mesma coisa. Não-ser, perceber, opinar
teriam o significado oposto, nada representando perante o pensamento” (CHALITA,
p.40). Aqui parece que Parmênides, segundo Chalita, está identificando o ato de
pensar de modo unívoco ao ser. Se penso, o que quer dizer que penso
racionalmente, que concluo segundo a razão, sou. Pensar é ser. Isso levaria a
filosofia de Parmênides para o solipsismo.
Outra interpretação das
palavras de Chalita é que ao pensarmos estamos identificando o ser, ao passo
que ao percebermos, identificamos o não-ser. Entretanto, estaríamos captando
mentalmente o não-ser, o que é, repetimos, impossível e, no panorama do
sistema, contraditório.
Ainda temos uma última
crítica. Parmênides pressupõe a validade da razão, mas não parece considerar
dois problemas. Primeiro, quem falou que nossa razão é garantida? Outro modo de
dizer isso é: por que acreditar na razão*?
Outro ponto é o fato de que,
ainda que admitamos a razão e sua infalibilidade, ainda podemos cometer erros
lógicos. Podemos raciocinar de forma equivocada, errar no raciocínio. Isso não
parece ser considerado por Parmênides.
Outras críticas ao
racionalismo puro serão feitas no devido momento. Por hora, fiquemos com apenas
isso.
A FALTA DE ABRANGÊNCIA E DE PRATICABILIDADE DA COSMOVISÃO DE
PARMÊNIDES
Ronald Nash propõe três vias
de teste para a disputa entre as cosmovisões: o teste da razão, onde se disputa
sobre a coerência interna na cosmovisão, observando se há alguma contradição e,
ao identifica-la, já se descarta aquela cosmovisão, ou então é preciso
modifica-la; o teste da abrangência, onde disputa-se o quão competente é a
cosmovisão para explicar a realidade e todo tipo de fenômeno conhecido de modo
que a cosmovisão que não abarca alguns dados da realidade é uma cosmovisão
incompleta e, portanto, ruim; por fim, o teste da prática que observa a
possibilidade de se viver determinada cosmovisão (NASH, p. 26-29) *. É com essa
perspectiva que preferimos rejeitar a proposta de Parmênides. Fizemos algumas
questões, acima, ao seu sistema. Mas gostaríamos de complementar o quadro de
indagações na perspectiva do teste da abrangência e da prática.
O que é o mundo? Por que,
pois, ele existe de um modo e não de outro (Leibniz)? Por que as pessoas são
iludidas? Quem as ilude? Qual a diferença entre um homem e qualquer outro ente
no mundo? Não seria a ilusão uma própria mudança na mente dos homens? Se tudo é
e não muda, e a mudança é uma ilusão, não seria tolice fazer qualquer coisa?
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* Escrevemos sobre isso
aqui: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/10/sobre-ciencia-e-fe-5.html
* Confira nossos artigos
sobre o assunto aqui: teste da razão: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/12/cosmovisoes-parte-3-primeiro-teste.html; teste da abrangência; teste da prática: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/12/cosmovisoes-parte-4-segundo-teste.html.
REFERÊNCIAS
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução
à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã,
2008. 448 p.
OSBORNE, Catherine. O
nascimento da filosofia _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução
de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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