terça-feira, 22 de abril de 2014

Gafes (pra lá de comuns) na tentativa de refutar o argumento cosmológico

(artigo anterior sobre Parmênides)

Já escrevemos, noutra ocasião, sobre o argumento cosmológico*1. Mesmo que tenhamos migrado para outro método apologético, a saber, o pressuposicionalismo, ainda, confessamos, guardamos alguns afetos para com o tomismo, particularmente o argumento cosmológico. No decorrer dos anos e das páginas lidas, temos visto alguns equívocos comuns na tentativa de refutar esses argumentos. Como um dos objetivos do blog é justamente poupar-nos o tempo de ter que repetir os mesmos argumentos todas as vezes (no sentido de redigitá-los), preferimos registrar algumas refutações aqui e apresenta-las quando as objeções que tangem surgirem.
Vamos aproveitar nossos estudos sobre Parmênides e nosso contato com Gaarder e notaremos dois erros. Ao texto, pois.

GAARDER E A CONFUSÃO TÍPICA

Sofia, a personagem principal do romance de Gaarder, mal começa a filosofar e, aparentemente, já percebe o erro do argumento cosmológico. Percebam a reflexão de Sofia (aliás, ao que parece, a do próprio Gaarder): “Nas aulas de religião ensinavam a ela [Sofia] que Deus tinha criado o mundo, e agora Sofia tentava se consolar com o fato de que, apesar de tudo, esta talvez fosse a melhor solução para o problema*2. Mas logo começou a pensar novamente. Ela até poderia se contentar com o fato de Deus ter criado o mundo. Mas e o próprio Deus? Teria ele próprio se criado a partir do nada absoluto? De novo, alguma coisa protestava dentro dela contra essa ideia. Embora não restasse dúvida de que Deus fosse capaz de criar todas as coisas possíveis, dificilmente ele poderia ter criado a si mesmo, sem antes possuir um ‘si mesmo’ através do qual pudesse criar. E então só restava uma possibilidade: Deus sempre existiu. Mas esta possibilidade ela já tinha rejeitado. Tudo o que existia tinha que ter tido um começo” (GAARDER, p. 19). A premissa aqui aparece pouco atrás, quando ela refletia sobre a possibilidade da existência eterna do mundo: “Tudo o que existe tem que ter um começo” (GAARDER, p. 19).
O grande problema aqui é o enunciar equivocado do argumento cosmológico. Ele não diz que ‘tudo que existe tem que ter um começo’, mas que ‘tudo aquilo que tem um começo tem uma causa’*3, o que é redondamente diferente. Desafiamos Gaarder e a qualquer um a provar a premissa de Gaarder. De onde se conclui que tudo que existe tem, obrigatoriamente, por necessidade lógica, que ter um começo? É absolutamente racional, a priori, pensar tanto na eternidade do mundo quanto na eternidade de Deus. A questão, pois, no argumento cosmológico, reside, agora, no debate em torno da premissa de que o universo teria surgido, sido criado. Se ele foi criado, deve haver uma causa, e por aí vai...



PARMÊNIDES E AS IMPLICAÇÕES PARA O ARGUMENTO COSMOLÓGICO

Parmênides, ao discutir a questão da transformação, notou que não seria possível que algo pudesse vir do nada. Para ele, para que algo se transformasse teria de deixar de ser, tornando-se não-ser, para então tornar-se ser de novo. Como ‘não-ser’ é nada, então isso não poderia acontecer. Sproul tenta ilustrar: “Se existe mesmo alguma coisa, então tem de haver o ser, porque sem ser nada pode ser. Ao mesmo tempo, Parmênides compreendeu o princípio ex nihilo, nihil fit (‘nada vem do nada’). Parmênides considerou corretamente absurda a ideia de que alguma coisa pode vir do nada ou de que o nada pode dar origem a algo. Realmente, se houve um tempo em que não havia nada, então não haveria nada agora” (SPROUL, 2002, p.23).
Sproul, noutra obra, deixa claro o problema de algo vir do nada, e aplica a questão à cosmologia, criticando a proposta de que o universo teria se autocriado: “Para que algo se crie ou para ser seu próprio efeito assim como sua própria causa, deve existir antes de existir. O universo, para ser autocriado, deverá existir antes de existir. Colocando nos termos da não-contradição o universo teria que existir e não-existir ao mesmo tempo e no mesmo sentido” (SPROUL, 2007, p. 96).
Vamos sintetizar as propostas. Dizer que algo vem do nada é creditar algum poder de ação ao nada. Mas ‘nada’ é um ‘não-ser’, e não pode ser agente de ação nenhuma, pois não existe. A autocriação proclama que algo é nada e, ao mesmo tempo, se cria. É a mesma burrice.
Mas há quem vá aplicar Parmênides à própria ideia da criação. Veja o próprio Sproul nos advertindo: “Contudo, é importante observar que Parmênides aparentemente não estava atacando apenas a noção absurda da autocriação, mas também qualquer ideia de criação, o que, por implicação, inclui a noção cristã de criação” (SPROUL, 2002, p. 23).
Mas eis que surge nosso mui amado teólogo de Princeton (da antiga Princeton) para resolver o problema. A citação é longa, mas vale muito a pena registrá-la: “Em todos os tempos, uma objeção à doutrina da criação tem sido que ela é inconsistente com este axioma: ex nihilo nihil fit. Esse aforismo pode, não obstante, ter dois sentidos. Pode significar que não há efeito sem causa – que nada pode produzir nada. Nesse sentido, ele expressa uma verdade auto-evidente com a qual a doutrina da criação é perfeitamente consistente. Essa doutrina não pressupõe que o mundo existe sem uma causa, o que vem do nada. Ela atribui uma causa perfeitamente adequada para sua existência na vontade de um Ser Onipotente e inteligente. No outro sentido da frase, significa que uma criação ex nihilo é impossível, que Deus não pode fazer a matéria ou alguma outra coisa começar a existir. Neste sentido, ela não é uma verdade auto-evidente, mas uma pretensão arbitrária, e consequentemente carece de força ou autoridade” (HODGE, p. 419).

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*1 Aqui: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2010/10/crenca-ateista-parte-4.html
E aqui: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2010/11/o-universo-comeca-existir-e-o-ateismo.html
*2 O problema ao qual o narrador se refere é o meditado anteriormente. Ela pensou na possibilidade da existência eterna do mundo, mas a rejeitou pela premissa que destacamos acima. Então começou a pensar num regresso causal que a levou a concluir que algo deveria surgir do nada. Talvez Gaarder estivesse pensando na questão, de Parmênides, que iremos expor adiante (exceto na última interrogação) quando escreveu: “Afinal de contas, algum dia alguma coisa tinha de ter surgido do nada. Mas será que isto era possível? Esta ideia não é tão absurda quanto a noção de que o mundo sempre existiu?” (GAARDER, p. 19).
*3 Para ser mais exato, o argumento pode ser traduzido de forma lógica ao princípio da causalidade: todo efeito deve ter uma causa. Para definir a proposição Sproul é muito competente: “Observando cuidadosamente a definição desta lei (‘todo efeito deve ter uma causa’) como podemos definir ‘efeito’? Ele não tem uma definição óbvia? Um efeito é ‘aquilo que foi causado’. Um efeito, por definição, é algo que foi causado por outra coisa. A palavra ‘causa’ é outra definida de forma evidente, por isto, por definição, traz algum tipo de resultado, ou ‘efeito’. Não podemos ter uma causa sem um efeito.” (SPROUL, 2007, p.45). Pouco à frente o mesmo filósofo responde a um filósofo, crítico ao conceito supracitado: “Você escreveu em sua revisão que um dos principais problemas com meu livro era que eu não admitia um efeito sem causa. Mea culpa. Você está absolutamente certo. Mas pensei que minha recusa rígida de não aceitar efeitos sem causa fosse uma virtude – não uma imperfeição. Entretanto, ficaria mais feliz em que retratar se você fizesse a gentileza de me escrever pelo menos um exemplo, em qualquer lugar do universo, de um efeito sem causa” (SPROUL, 2007, p. 46). E Sproul ainda aguarda o tal exemplo. Ele não existe justamente por conta da causalidade ser uma verdade por definição, um postulado lógico.

REFERÊNCIAS

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo:Editora Hagnos, 2001. 1777p.

SPROUL, R. C. Defendendo sua fé: uma introdução à apologética. Tradução de Patrícia Merlim. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, 192p.


SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.

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