“Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela
me disse: ‘Eu não sou Deus.’ E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo.
Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam:
‘Não somos teu Deus; busca-o acima de nós’. Perguntei aos ventos que sopram; e
todo o ar, com seus habitantes, me disse: Anaxímenes está enganado, eu não sou
Deus’. Perguntei ao céu e ao sol, à lua e às estrelas. ‘Tampouco somos o Deus a
quem procuras’ – me responderam. Disse então a todas as coisas que meu corpo
percebe: ‘Dizei-me algo do meu Deus, já que não sois Deus; dizei-me alguma
coisa dele.’ – E todas exclamaram em coro: ‘Ele nos criou’.” (AGOSTINHO, Livro
X, capítulo V – ‘Que é Deus?’, p. 216).
TUDO
COMEÇA EM MILETO
No século VII a. C.,
na Jônia, mais precisamente em Mileto, na costa litorânea ocidental da Ásia, na
Ásia Menor, surge a filosofia. Naquele ambiente vamos conhecer Tales,
Anaximandro e Anaxímenes. Vale destacar que estamos falando da Magna Grécia,
oriunda da segunda diáspora grega. Logo, como observa Chalita, a filosofia iria
florescer, também, nas demais áreas da Magna Grécia, como o sul da Península
Itálica e outros lugares.
QUEM SÃO
OS PRÉ-SOCRÁTICOS?
Começaremos, agora,
a estudar os primeiros filósofos, os filósofos pré-socráticos, também
chamados de filósofos naturalistas ou filósofos da natureza. São
assim denominados basicamente por conta de sua nova agenda filosófica,
divergente da mítica que os precederam. Agora eles queriam encontrar a αρχε (arché)*1, ou seja, o
princípio do qual todas as coisas são formadas e que estão presente em todas as
coisas*2. Sua análise, pois, é sobre a ‘natureza’, a ‘physis’, e os
fenômenos. Gaarder diz que esses primeiros filósofos “são frequentemente
chamados de ‘filósofos da natureza’, porque se interessavam sobretudo pela
natureza e pelos processos naturais” (p.43). Mas não se trata de explicar
apenas os fenômenos naturais. Entendê-los dessa forma os transformaria
meramente em cientistas e não em filósofos. Assim, concordamos com Chalita
quando ele diz que “não era apenas uma tentativa de explicar raios e trovões ou
a chuva e o sol; não queriam, tampouco, somente entender a noite e o dia. Buscavam
a causa primeira, a origem de tudo o que há no universo” (p. 32) *3.
Essa nova busca
visava alcançar aquilo além do patente a todos, portanto, não era mera
observação. Era atividade filosófica estrita. Por isso Sproul tem razão ao
observar que se trata do início da filosofia: “A filosofia nasceu da antiga
busca da realidade última, a realidade que transcende o que é próximo e comum e
define e explica os elementos da experiência diárias” (p.15).
Segundo Gaarder,
esses filósofos não estavam muito interessados em questionar sobre a origem do
mundo; antes, “sempre partiam do fato de que sempre existiu ‘alguma coisa’” (p.
44). Chalita, como observamos, disse que buscavam a origem das coisas no
universo, mas não do universo em si. Parece que estão em acordo. Esse é o
primeiro pressuposto*4 básico a ser ressaltado:
- Os filósofos
pré-socráticos pressupunham a eternidade do cosmos.
Podemos elucidar um
pouco melhor o ‘projeto filosófico’ *5 dos pré-socráticos. “A grande
questão, portanto, não era saber como tudo surgiu do nada. O que instigava os
gregos era saber como a água podia se transformar em peixes vivos, ou como a
terra sem vida podia se transformar em árvores frondosas ou em flores
multicoloridas [...]. Os filósofos viam com seus próprios olhos que havia
constantes transformações na natureza. Mas como estas transformações eram
possíveis? Como uma substância podia se transformar em algo completamente
diferente, numa forma de vida, por exemplo?” (GAARDER, p. 44). Chalita
contribui: “considerando o ar um elemento eterno, como ele poderia se
transformar em pássaros ou nuvens? Se fosse o fogo, será que ele poderia
transformar-se em pedras ou em árvores? Teria a água condições de se
transformar em peixes? E os homens? De que elemento teriam surgido os homens?”
(p. 32).
Os naturalistas
perguntavam-se, pois, sobre a transformação, mas não queriam valer-se de mitos
para explica-los. Não queriam explicar os fenômenos “por referência a
acontecimentos no mundo dos deuses” (GAARDER, p. 44). Não há como desassociar
os mitos desses primeiros pensadores. Certamente foram influenciados. Mas eles
teriam apenas sido instigados, quiçá desafiados por eles. Nas palavras de
Osborne: “É tentador pensar que tais mitos serviram ao mesmo tempo de
inspiração e meta para os primeiros filósofos, que teriam substituído os
caprichos divinos pelas explicações naturais do processo cósmico” (PRADEAU,
p.16). Para a mesma filósofo, os antigos filósofos tomaram os mitos como temas
para desenvolveram sua filosofia (p. 16).
Para explicar os
fenômenos os pré-socráticos valiam-se, como observado, da arché, a substância
básica, e de seus ‘movimentos’. Mas isso é uma pressuposição, uma suposição a
priori. Eles supunham que haveria uma substância básica essencial. Gaarder
deixa isso bem claro: “Os primeiros filósofos tinham uma coisa em comum: eles
acreditavam que determinada substância básica estava por trás de todas essas
transformações. Não é muito fácil explicar como eles chegaram a esta ideia” (p.
44). Esse é o segundo pressuposto básico dos pré-socráticos:
- Os filósofos
pré-socráticos pressupunham que havia uma substância básica da qual todas as
coisas são derivadas por meio de ‘movimentos’ nessa substância.
O UNO E O
MÚLTIPLO
Os filósofos
pré-socráticos também podem e devem ser estudados por esse prisma, o de
encontrar unidade na diversidade. Esses filósofos esperavam encontrar algum
sentido em meio a todas as individualidades, na multiplicidade de coisas que
existiam. Sproul coloca isso da seguinte forma: “Era a questão de encontrar
sentido no meio das mais diversas manifestações da realidade: como todas as
coisas se encaixam de um modo que faz sentido?” (p. 16).
Aqui, pois, podemos
ver outra pressuposição:
- Há uma unidade na
diversidade.
Entretanto, temos
que observar que houveram aqueles que não criam que havia unidade como
realidade fundamental, e sim multiplicidade. Dentre eles temos Empédocles,
Anaxágoras.
COMO
APROVEITAR OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS
Para Jostein Gaarder
não é tanto as respostas que os filósofos da natureza deram que nos importa,
mas as questões que levantaram e o método, a forma, o como pensavam. Nas suas
próprias palavras “Para nós, mais
interessante não é saber que respostas esses primeiros filósofos encontraram. O
interessante é sabe que pergunta eles fizeram e que tipo de resposta buscavam.
Mais importante para nós é saber como, e não o que eles pensavam exatamente”
(p. 44).
Em suma, eles
pressupunham a competência do intelecto humano em compreender o mundo por si
mesmo, e esse é um pressuposto que precisamos identificar também. Na verdade,
há uma rede de pressuposições epistemológicas:
- Pressuponham que o
os fenômenos percebidos, o mundo sensível, de fato existe e não é uma projeção
mental.
- Pressuponham que
as capacidades cognitivas do homem podem interpretar e conhecer o mundo
externo.
DISSERAM
QUE DISSERAM
Não temos os
escritos desses primeiros filósofos. A maior parte do que sabemos deles,
informa Gaarder, é por meio de citações ou sínteses oriundas de Aristóteles
(p.44). Osborne deixa bem claro: “Não há praticamente deles nenhum texto
completo. Em vez disso, temos que confiar nas apresentações (os ‘testemunhos’)
que encontramos em autores muitas vezes posteriores vários séculos” (PRADEAU,
p. 16).
Osborne também nos
informa sobre alguns papiros, fontes pequenas, cópias romanas, que são
encontradas aqui e acolá que podem ajudar ou ensinar algo novo (p. 17).
Bom, como não temos
exatamente tudo que disseram, às vezes só conhecemos seus postulados, e no
máximo deduzimos como chegaram àquelas conclusões. As palavras, as ilustrações,
os argumentos, muitas vezes, nos escapam.
CONCLUSÃO
Aqui estão, pois, os
elementos essenciais da filosofia pré-socrática. Sabemos, pois, qual é seu
projeto filosófico. Destacamos, nesse artigo, o que não temos visto em muitos
casos, a saber, os pressupostos dos filósofos pré-socráticos. São eles que
fornecem o paradigma que rege todas as suas reflexões e não podemos
compreendê-los sem nota-los. Eis, pois, os cinco pressupostos destacados e
percebidos:
- Os filósofos
pré-socráticos pressupunham a eternidade do cosmos*6.
- Os filósofos
pré-socráticos pressupunham que havia uma substância básica da qual todas as
coisas são derivadas por meio de ‘movimentos’ nessa substância.
- Os filósofos da
natureza pressupunham que há uma unidade na diversidade.
- Pressuponham que o
os fenômenos percebidos, o mundo sensível, de fato existe e não é uma projeção
mental.
- Pressuponham que
as capacidades cognitivas do homem podem interpretar e conhecer o mundo
externo.
OS FILÓSOFOS DE MILETO
OS FILÓSOFOS DE MILETO
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*1 Sproul
chama a busca pela arché de ‘monarquia’. “O termo monarquia compõe-se de
prefixo e raiz. O prefixo mono quer dizer ‘um, singular’. A raiz, que é mais
importante, é arché, que significa ‘principal, começo, raiz’. [...] Na antiga
busca da monarquia, os filósofos procuravam a substância principal ou
dominante, chamada arché, a parti da qual todas as coisas são feitas ou
existem. Era a busca da essência ou substância suprema das coisas, a busca
daquilo de que, afinal, o mundo real é feito” (SPROUL, p. 15-16). Podemos,
pois, dizer que os primeiros filósofos buscavam a ‘monarquia’.
*2 Essa
arché, além de estar presente em todas as coisas, também teriam uma atividade;
seria uma força que, conforme seus diferentes modos de ação, daria origem à
variedade de fenômenos naturais” (CHALITA, p. 31).
*3 Logo
em seguida Chalita diz que eles, com isso, engendraram um projeto científico.
Mas isso é um engano. Não abarca tudo que levantaram, apenas uma parte. Deram à
luz tanto a ciência quanto a filosofia. Noutra oportunidade dissertaremos sobre
as diferenças. Seria interessante mencionar, agora, uma importante observação
de Sproul: “Os pensadores daquela época não faziam uma distinção clara entre a
ciência e filosofia. A palavra ciência, em sua etimologia, significa
simplesmente ‘conhecimento’, e o termo filosofia deriva de ‘amor pela
sabedoria’. Quando o homem antigo tentava compreender a si mesmo e o mundo à
sua volta, conhecimento e sabedoria eram ideias que se relacionavam” (SPROUL,
p. 15).
Durant,
estranhamente, chama a busca de compreensão dos fenômenos por meio dos mitos de
uma tentativa tacanha de se fazer ciência em forma de teologia: “Civilizações
anteriores à grega haviam feito tentativas com relação à ciência, mas até onde
podemos perceber seu ideário através de uma ainda obscura escrita cuneiforme e
hieroglífica, sua ciência não se diferenciava da teologia. Quer dizer, aqueles
povos pré-helênicos explicavam todos os processos da natureza atribuindo-os a
uma força sobrenatural; havia deuses por toda parte. Parece que foram os gregos
jônios os primeiros a ousarem dar explicações naturais de complexidades
cósmicas e acontecimentos misteriosos: procuraram na física as causas naturais
de determinados incidentes, e na filosofia uma teoria natural do todo” (DURANT,
p. 66).
Os filósofos
pré-socráticos, conforme Durant, acreditavam que todas as coisas tinham uma
explicação natural. Assim, todas as transformações, as variedades fenomênicas,
são oriundas de mudanças naturais na arché. Daí, facilmente, se deduz que tudo
que existe tem uma explicação natural, e qualquer coisa não-física é descartada
como abstração vazia. Primeiramente, não estamos bem certos de que podemos ver
todos os filósofos como ‘naturalistas’ nesse sentido. Afinal, por exemplo,
Anaximandro, como veremos adiante, não concebia a arché como um elemento básico
que encontramos na natureza. Claro, nesse sentido, a palavra ‘natureza’ não
pode ser encarada como ‘tudo o que existe’, e está, antes, diferenciando o que
é ‘physis’, o que é percebido pelos sentidos, o ‘mundo material’, do que
poderia não lhe pertencer. É por isso que Sproul prefere dividir os filósofos
pré-socráticos entre os monistas ou pluralistas corpóreos e monistas ou
pluralistas incorpóreos (Sproul, p. 19). Usaremos essa classificação para os
demais filósofos pré-socráticos.
Depois, não é
preciso tornar-se um naturalista ao entender que a compreensão de fenômenos se
dá por meio de investigações científicas. Investigações científicas e
filosóficas não precisam, necessariamente, ser antagônicas, o que ficará,
esperamos, claro no decorrer dos textos.
*4 Uma
pressuposição é uma suposição feita de forma natural. “Não são crenças sempre
conscientemente abrigadas, mas funcionam, antes como a perspectiva da qual um
indivíduo vê e interpreta tanto os eventos da sua própria vida quanto as
diversas circunstâncias do mundo ao redor” (MORRIS apud NASH, p. 20).
Plantinga, falando
sobre os pressupostos, observa que: “não decidimos manter ou formar a crença em
questão, mas simplesmente nos achamos com ela... [...] Nestes e em outros
casos, eu não decido o que crer; não faço a soma total das evidências... e tomo
uma decisão de o que parece ser melhor suportado; eu simplesmente creio”
(PLANTINGA apud NASH, 2008, p.310).
*5 “...
vale a pena examinar o projeto de cada filósofo. Quero dizer com isto que
precisamos tentar entender odo que precisamente se ocuparam estes filósofos. Um
filósofo pode se perguntar, por exemplo, como surgem as plantas e os animais.
Outro pode querer descobrir se há um Deus ou se as pessoas têm uma alma
imortal” (GAARDER, p. 43).
**6 “Os
filósofos antigos propunham respostas que abrangeriam quase todas as opções que
se encontram hoje – um universo eterno, um universo oscilante, a evolução da
vida a parit de elementos inanimados e a criação de seres vivos por Deus ou por
deuses. A única resposta que nunca foi considerada é a noção da criação do nada
(ex nihilo) por um Deus pessoal, que é a resposta da tradição cristã”
(FERREIRA; MYATT, p. 251). Trabalharemos as considerações em Parmênides que
oferecem insights para essa questão em outro artigo.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões.
Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2008, 439p.
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
FERREIRA, Franklin;
MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e
apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, 1220p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma
introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura
Cristã, 2008. 448 p.
OSBORNE, Catherine. O
nascimento da filosofia _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução
de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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