terça-feira, 15 de abril de 2014

Pensam diferente em Mileto... Os Filósofos da Natureza

“Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: ‘Eu não sou Deus.’ E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: ‘Não somos teu Deus; busca-o acima de nós’. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: Anaxímenes está enganado, eu não sou Deus’. Perguntei ao céu e ao sol, à lua e às estrelas. ‘Tampouco somos o Deus a quem procuras’ – me responderam. Disse então a todas as coisas que meu corpo percebe: ‘Dizei-me algo do meu Deus, já que não sois Deus; dizei-me alguma coisa dele.’ – E todas exclamaram em coro: ‘Ele nos criou’.” (AGOSTINHO, Livro X, capítulo V – ‘Que é Deus?’, p. 216).

TUDO COMEÇA EM MILETO

No século VII a. C., na Jônia, mais precisamente em Mileto, na costa litorânea ocidental da Ásia, na Ásia Menor, surge a filosofia. Naquele ambiente vamos conhecer Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Vale destacar que estamos falando da Magna Grécia, oriunda da segunda diáspora grega. Logo, como observa Chalita, a filosofia iria florescer, também, nas demais áreas da Magna Grécia, como o sul da Península Itálica e outros lugares.

QUEM SÃO OS PRÉ-SOCRÁTICOS?

Começaremos, agora, a estudar os primeiros filósofos, os filósofos pré-socráticos, também chamados de filósofos naturalistas ou filósofos da natureza. São assim denominados basicamente por conta de sua nova agenda filosófica, divergente da mítica que os precederam. Agora eles queriam encontrar a αρχε (arché)*1, ou seja, o princípio do qual todas as coisas são formadas e que estão presente em todas as coisas*2. Sua análise, pois, é sobre a ‘natureza’, a ‘physis’, e os fenômenos. Gaarder diz que esses primeiros filósofos “são frequentemente chamados de ‘filósofos da natureza’, porque se interessavam sobretudo pela natureza e pelos processos naturais” (p.43). Mas não se trata de explicar apenas os fenômenos naturais. Entendê-los dessa forma os transformaria meramente em cientistas e não em filósofos. Assim, concordamos com Chalita quando ele diz que “não era apenas uma tentativa de explicar raios e trovões ou a chuva e o sol; não queriam, tampouco, somente entender a noite e o dia. Buscavam a causa primeira, a origem de tudo o que há no universo” (p. 32) *3.
Essa nova busca visava alcançar aquilo além do patente a todos, portanto, não era mera observação. Era atividade filosófica estrita. Por isso Sproul tem razão ao observar que se trata do início da filosofia: “A filosofia nasceu da antiga busca da realidade última, a realidade que transcende o que é próximo e comum e define e explica os elementos da experiência diárias” (p.15).
Segundo Gaarder, esses filósofos não estavam muito interessados em questionar sobre a origem do mundo; antes, “sempre partiam do fato de que sempre existiu ‘alguma coisa’” (p. 44). Chalita, como observamos, disse que buscavam a origem das coisas no universo, mas não do universo em si. Parece que estão em acordo. Esse é o primeiro pressuposto*4 básico a ser ressaltado:
- Os filósofos pré-socráticos pressupunham a eternidade do cosmos.
Podemos elucidar um pouco melhor o ‘projeto filosófico’ *5 dos pré-socráticos. “A grande questão, portanto, não era saber como tudo surgiu do nada. O que instigava os gregos era saber como a água podia se transformar em peixes vivos, ou como a terra sem vida podia se transformar em árvores frondosas ou em flores multicoloridas [...]. Os filósofos viam com seus próprios olhos que havia constantes transformações na natureza. Mas como estas transformações eram possíveis? Como uma substância podia se transformar em algo completamente diferente, numa forma de vida, por exemplo?” (GAARDER, p. 44). Chalita contribui: “considerando o ar um elemento eterno, como ele poderia se transformar em pássaros ou nuvens? Se fosse o fogo, será que ele poderia transformar-se em pedras ou em árvores? Teria a água condições de se transformar em peixes? E os homens? De que elemento teriam surgido os homens?” (p. 32).
Os naturalistas perguntavam-se, pois, sobre a transformação, mas não queriam valer-se de mitos para explica-los. Não queriam explicar os fenômenos “por referência a acontecimentos no mundo dos deuses” (GAARDER, p. 44). Não há como desassociar os mitos desses primeiros pensadores. Certamente foram influenciados. Mas eles teriam apenas sido instigados, quiçá desafiados por eles. Nas palavras de Osborne: “É tentador pensar que tais mitos serviram ao mesmo tempo de inspiração e meta para os primeiros filósofos, que teriam substituído os caprichos divinos pelas explicações naturais do processo cósmico” (PRADEAU, p.16). Para a mesma filósofo, os antigos filósofos tomaram os mitos como temas para desenvolveram sua filosofia (p. 16).
Para explicar os fenômenos os pré-socráticos valiam-se, como observado, da arché, a substância básica, e de seus ‘movimentos’. Mas isso é uma pressuposição, uma suposição a priori. Eles supunham que haveria uma substância básica essencial. Gaarder deixa isso bem claro: “Os primeiros filósofos tinham uma coisa em comum: eles acreditavam que determinada substância básica estava por trás de todas essas transformações. Não é muito fácil explicar como eles chegaram a esta ideia” (p. 44). Esse é o segundo pressuposto básico dos pré-socráticos:
- Os filósofos pré-socráticos pressupunham que havia uma substância básica da qual todas as coisas são derivadas por meio de ‘movimentos’ nessa substância.

O UNO E O MÚLTIPLO

Os filósofos pré-socráticos também podem e devem ser estudados por esse prisma, o de encontrar unidade na diversidade. Esses filósofos esperavam encontrar algum sentido em meio a todas as individualidades, na multiplicidade de coisas que existiam. Sproul coloca isso da seguinte forma: “Era a questão de encontrar sentido no meio das mais diversas manifestações da realidade: como todas as coisas se encaixam de um modo que faz sentido?” (p. 16).
Aqui, pois, podemos ver outra pressuposição:
- Há uma unidade na diversidade.
Entretanto, temos que observar que houveram aqueles que não criam que havia unidade como realidade fundamental, e sim multiplicidade. Dentre eles temos Empédocles, Anaxágoras.

COMO APROVEITAR OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

Para Jostein Gaarder não é tanto as respostas que os filósofos da natureza deram que nos importa, mas as questões que levantaram e o método, a forma, o como pensavam. Nas suas próprias palavras “Para nós,  mais interessante não é saber que respostas esses primeiros filósofos encontraram. O interessante é sabe que pergunta eles fizeram e que tipo de resposta buscavam. Mais importante para nós é saber como, e não o que eles pensavam exatamente” (p. 44).
Em suma, eles pressupunham a competência do intelecto humano em compreender o mundo por si mesmo, e esse é um pressuposto que precisamos identificar também. Na verdade, há uma rede de pressuposições epistemológicas:
- Pressuponham que o os fenômenos percebidos, o mundo sensível, de fato existe e não é uma projeção mental.
- Pressuponham que as capacidades cognitivas do homem podem interpretar e conhecer o mundo externo.

DISSERAM QUE DISSERAM

Não temos os escritos desses primeiros filósofos. A maior parte do que sabemos deles, informa Gaarder, é por meio de citações ou sínteses oriundas de Aristóteles (p.44). Osborne deixa bem claro: “Não há praticamente deles nenhum texto completo. Em vez disso, temos que confiar nas apresentações (os ‘testemunhos’) que encontramos em autores muitas vezes posteriores vários séculos” (PRADEAU, p. 16).
Osborne também nos informa sobre alguns papiros, fontes pequenas, cópias romanas, que são encontradas aqui e acolá que podem ajudar ou ensinar algo novo (p. 17).
Bom, como não temos exatamente tudo que disseram, às vezes só conhecemos seus postulados, e no máximo deduzimos como chegaram àquelas conclusões. As palavras, as ilustrações, os argumentos, muitas vezes, nos escapam.

CONCLUSÃO

Aqui estão, pois, os elementos essenciais da filosofia pré-socrática. Sabemos, pois, qual é seu projeto filosófico. Destacamos, nesse artigo, o que não temos visto em muitos casos, a saber, os pressupostos dos filósofos pré-socráticos. São eles que fornecem o paradigma que rege todas as suas reflexões e não podemos compreendê-los sem nota-los. Eis, pois, os cinco pressupostos destacados e percebidos:
- Os filósofos pré-socráticos pressupunham a eternidade do cosmos*6.
- Os filósofos pré-socráticos pressupunham que havia uma substância básica da qual todas as coisas são derivadas por meio de ‘movimentos’ nessa substância.
- Os filósofos da natureza pressupunham que há uma unidade na diversidade.
- Pressuponham que o os fenômenos percebidos, o mundo sensível, de fato existe e não é uma projeção mental.
- Pressuponham que as capacidades cognitivas do homem podem interpretar e conhecer o mundo externo.

OS FILÓSOFOS DE MILETO
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*1 Sproul chama a busca pela arché de ‘monarquia’. “O termo monarquia compõe-se de prefixo e raiz. O prefixo mono quer dizer ‘um, singular’. A raiz, que é mais importante, é arché, que significa ‘principal, começo, raiz’. [...] Na antiga busca da monarquia, os filósofos procuravam a substância principal ou dominante, chamada arché, a parti da qual todas as coisas são feitas ou existem. Era a busca da essência ou substância suprema das coisas, a busca daquilo de que, afinal, o mundo real é feito” (SPROUL, p. 15-16). Podemos, pois, dizer que os primeiros filósofos buscavam a ‘monarquia’.
*2 Essa arché, além de estar presente em todas as coisas, também teriam uma atividade; seria uma força que, conforme seus diferentes modos de ação, daria origem à variedade de fenômenos naturais” (CHALITA, p. 31).
*3 Logo em seguida Chalita diz que eles, com isso, engendraram um projeto científico. Mas isso é um engano. Não abarca tudo que levantaram, apenas uma parte. Deram à luz tanto a ciência quanto a filosofia. Noutra oportunidade dissertaremos sobre as diferenças. Seria interessante mencionar, agora, uma importante observação de Sproul: “Os pensadores daquela época não faziam uma distinção clara entre a ciência e filosofia. A palavra ciência, em sua etimologia, significa simplesmente ‘conhecimento’, e o termo filosofia deriva de ‘amor pela sabedoria’. Quando o homem antigo tentava compreender a si mesmo e o mundo à sua volta, conhecimento e sabedoria eram ideias que se relacionavam” (SPROUL, p. 15).
Durant, estranhamente, chama a busca de compreensão dos fenômenos por meio dos mitos de uma tentativa tacanha de se fazer ciência em forma de teologia: “Civilizações anteriores à grega haviam feito tentativas com relação à ciência, mas até onde podemos perceber seu ideário através de uma ainda obscura escrita cuneiforme e hieroglífica, sua ciência não se diferenciava da teologia. Quer dizer, aqueles povos pré-helênicos explicavam todos os processos da natureza atribuindo-os a uma força sobrenatural; havia deuses por toda parte. Parece que foram os gregos jônios os primeiros a ousarem dar explicações naturais de complexidades cósmicas e acontecimentos misteriosos: procuraram na física as causas naturais de determinados incidentes, e na filosofia uma teoria natural do todo” (DURANT, p. 66).
Os filósofos pré-socráticos, conforme Durant, acreditavam que todas as coisas tinham uma explicação natural. Assim, todas as transformações, as variedades fenomênicas, são oriundas de mudanças naturais na arché. Daí, facilmente, se deduz que tudo que existe tem uma explicação natural, e qualquer coisa não-física é descartada como abstração vazia. Primeiramente, não estamos bem certos de que podemos ver todos os filósofos como ‘naturalistas’ nesse sentido. Afinal, por exemplo, Anaximandro, como veremos adiante, não concebia a arché como um elemento básico que encontramos na natureza. Claro, nesse sentido, a palavra ‘natureza’ não pode ser encarada como ‘tudo o que existe’, e está, antes, diferenciando o que é ‘physis’, o que é percebido pelos sentidos, o ‘mundo material’, do que poderia não lhe pertencer. É por isso que Sproul prefere dividir os filósofos pré-socráticos entre os monistas ou pluralistas corpóreos e monistas ou pluralistas incorpóreos (Sproul, p. 19). Usaremos essa classificação para os demais filósofos pré-socráticos.
Depois, não é preciso tornar-se um naturalista ao entender que a compreensão de fenômenos se dá por meio de investigações científicas. Investigações científicas e filosóficas não precisam, necessariamente, ser antagônicas, o que ficará, esperamos, claro no decorrer dos textos.

*4 Uma pressuposição é uma suposição feita de forma natural. “Não são crenças sempre conscientemente abrigadas, mas funcionam, antes como a perspectiva da qual um indivíduo vê e interpreta tanto os eventos da sua própria vida quanto as diversas circunstâncias do mundo ao redor” (MORRIS apud NASH, p. 20).
Plantinga, falando sobre os pressupostos, observa que: “não decidimos manter ou formar a crença em questão, mas simplesmente nos achamos com ela... [...] Nestes e em outros casos, eu não decido o que crer; não faço a soma total das evidências... e tomo uma decisão de o que parece ser melhor suportado; eu simplesmente creio” (PLANTINGA apud NASH, 2008, p.310).
*5 “... vale a pena examinar o projeto de cada filósofo. Quero dizer com isto que precisamos tentar entender odo que precisamente se ocuparam estes filósofos. Um filósofo pode se perguntar, por exemplo, como surgem as plantas e os animais. Outro pode querer descobrir se há um Deus ou se as pessoas têm uma alma imortal” (GAARDER, p. 43).
**6 “Os filósofos antigos propunham respostas que abrangeriam quase todas as opções que se encontram hoje – um universo eterno, um universo oscilante, a evolução da vida a parit de elementos inanimados e a criação de seres vivos por Deus ou por deuses. A única resposta que nunca foi considerada é a noção da criação do nada (ex nihilo) por um Deus pessoal, que é a resposta da tradição cristã” (FERREIRA; MYATT, p. 251). Trabalharemos as considerações em Parmênides que oferecem insights para essa questão em outro artigo.


REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2008, 439p.

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

DURANT, Will. A História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.

FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, 1220p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.

OSBORNE, Catherine. O nascimento da filosofia _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.


SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.

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