[veja o contexto histórico dos sofistas aqui]
A filosofia da natureza, a busca do arché, a procura da unidade na diversidade, o interesse em compreender os fenômenos, enfim, todo o projeto filosófico dos pré-socráticos, ‘de repente’, em determinada localização, some. O século do ouro, o século de Péricles, presencia um novo momento da filosofia. Outros interesses filosóficos surgem. Mas, afinal, como é que eles surgem? E, foi tão ‘de repente’ assim?
A filosofia da natureza, a busca do arché, a procura da unidade na diversidade, o interesse em compreender os fenômenos, enfim, todo o projeto filosófico dos pré-socráticos, ‘de repente’, em determinada localização, some. O século do ouro, o século de Péricles, presencia um novo momento da filosofia. Outros interesses filosóficos surgem. Mas, afinal, como é que eles surgem? E, foi tão ‘de repente’ assim?
Podemos perceber,
nos filósofos que lemos, três causas, três motivos que teriam levado Atenas a
assistir uma mudança de paradigma na pesquisa filosófica. Vamos olhar para cada
uma delas e já dissertar sobre como o discurso de sabedoria passou a ser
desenhado.
Além dessas causas,
fator determinante para o novo quadro teórico do século V a. C. era o auge
democrático ateniense, bem como as temáticas desenvolvidas no teatro grego,
como observamos no artigo anterior. Portanto, o conhecimento de si mesmo, bem
como a incômoda questão do destino, influenciaram os pensadores a pensarem em
questões novas, ou pelo menos de dar foco a elas, nessa nova etapa filosófica
da humanidade. Vamos dar uma olhada em tudo isso.
O
INTERCÂMBIO CULTURAL
Primeiramente, pela
terceira vez, vamos citar a sugestão de Durant. Esse historiador e filósofo
acredita, junto a Osborne, como notamos no primeiro artigo (nota 1), que a
filosofia surge do ceticismo oriundo do intercâmbio cultural que levaria os
seres pensantes a questionarem sobre a veracidade do que familiarmente lhe foi
conferido. Assim, como vimos no artigo anterior, quando termina as Guerras
Médicas, Atenas se envolve avidamente no comércio marítimo o que gera novos
contatos com outras formas de pensar. Isso pode ter contribuído muito para o
novo itinerário filosófico que veremos a seguir.
O
IMPASSE EPISTEMOLÓGICO
Sproul observa algo
que ficará muito claro em nossos estudos sobre Platão, Aristóteles e demais
filósofos: “Dois gigantes da filosofia da era pré-socrática foram Heráclito e
Parmênides. Algumas pessoas dizem que toda a filosofia nada mais é que notas de
rodapé ao pensamento de Platão e Aristóteles; também poderíamos dizer que
Platão e Aristóteles foram apenas notas de rodapé ao pensamento de Heráclito e
Parmênides” (SPROUL, p. 21).
Entretanto, em certo
sentido, podemos dizer que Parmênides e Heráclito, ainda baseado na premissa de
que o ceticismo é a mãe de novas perspectivas filosóficas, contribuíram para o
projeto filosófico que abordaremos nesse artigo.
Sobre qual ceticismo
estamos falando? Certamente a disputa entre o eleata e o efésio deve ter
causado um nó em muitas cabeças. Afinal, em quem deveríamos acreditar? Na razão
ou nos sentidos? Qual está enganado? Porque, pois, os temos?
Talvez os problemas
que notamos na exposição de Heráclito e Parmênides tenham sido notados pelos
pensadores daqueles tempos. Não sabemos. O fato é que Parmênides e Heráclito
geraram muita confusão. Confusão não resolvida, seja por preguiça ou
incompetência, outorga à filosofia o ceticismo.
Não podemos nos
esquecer da própria filosofia da natureza. Não havia consenso entre esses
filósofos. Ninguém finalmente falava se a realidade final era uma ou múltipla;
se o arché era corpóreo ou incorpóreo. As especulações pareciam boas. O
problema é que talvez fossem igualmente boas. Ou igualmente ruins, alguém
poderia sugerir. O fato é que os filósofos da natureza também geraram muita
confusão. Como asseveramos acima, confusão é a mãe do ceticismo.
O
QUADRO POLÍTICO
Por fim, a própria
situação política da época moveu a filosofia para novos rumos. Aqui, já
antecipando o que viemos omitindo até então, (a saber, as características do
novo paradigma filosófico, bem como quem são seus novos protagonistas), nos
trouxe um insight: “A estagnação da indústria grega sob o íncubo da escravidão
impediu o pleno desenvolvimento daqueles magníficos princípios e a rápida
complicação da vida política em Atenas desviou tanto os sofistas como Sócrates
e Platão da pesquisa física e biológica para os caminhos da teoria ética e
política” (DURANT, p. 67). Parece-nos que Durant está falando do que acontecia
em Atenas no início do século VI a. C. Sólon, um dos legisladores de Atenas,
que havia proibido a escravidão hipotecária, o que causou, certamente, uma
revolução social. A sociedade censitária grega demandava a escravidão.
Precisavam expandir-se, para conquistar e granjear mais escravos. Portanto o
espírito novo de criar leis escritas, somado ao problema social dos escravos,
teria feito a reflexão rumar para questões ético-políticas.
Não podemos nos
esquecer que o século V a. C., testemunhou momentos decisivos e revolucionários
no quadro político internacional. Temos duas super guerras (Guerras Médicas,
490-470 a. C.; Guerra do Peloponeso, 431-404 a. C.) e alianças políticas
(Confederação – ou Liga – de Delos; Confederação do Peloponeso) para completar
o quadro. Era, de fato, um momento único, que demandava, exigia reflexões
políticas, forenses, sociais.
Maria Lacerda de
Moura, pois, os desenha de modo muito nítido: “Os sofistas aproveitaram-se do
descrédito das especulações filosóficas, do ceticismo, em uma época em que a
realidade exigia a aplicação prática dos conhecimentos, quando se constituíam
os governos democráticos e todos nutriam o desejo de se instruir para se tornar
dignos de ocupar os cargos mais altos da democracia” (PLATÃO, p. 61).
QUEM ERAM ESSES TAIS SOFISTAS?
Dessa nova agenda
filosófica foram protagonistas os chamados sofistas e Sócrates. Sócrates, no
apêndice, feito por Maria Lacerda de Moura, da Apologia de Sócrates, célebre
livreto de Platão, é considerado o maior dos sofistas. Se considerarmos que ele
reflete sobre os mesmos paradigmas, não poderíamos deixar de concordar. Mas tal
alcunha certamente poderia ofender seus seguidores, principalmente pela
conotação pejorativa que o termo ‘sofista’ ganhou. Veremos o porquê disso
adiante. Antes, temos que conhecer um pouco mais sobre os sofistas.
Bom, primeiramente
os sofistas eram homens de grande envergadura intelectual. Maria Lacerda de
Moura, no apêndice da obra de Platão, supracitada, diz que, embora Platão e
Xenofonte tenham envidado esforços para destacar Sócrates dos sofistas, tinham
de reconhecer as competências intelectuais deles (PLATÃO, p. 61). Will Durant
lhes tece, nesse sentido, os maiores elogios: “Eram, todos, homens inteligentes
(Górgias e Hípias, por exemplo), e muitos deles eram profundos (Protágoras,
Pródico); praticamente não existe problema ou solução em nossa atual filosofia
da mente e da conduta que eles não percebessem e não discutissem. Faziam
perguntas sobre tudo; ficavam à vontade, sem medo, na presença de tabus
religiosos ou políticos; e ousadamente intimavam todos os credos e instituições
a comparecerem perante o julgamento da razão” (DURANT, p. 26). Ou seja, para
Durant, ética, política e filosofia da mente tem todo seu escopo abordado
nesses filósofos antigos! Caracterizavam-se pelo livre pensamento, e assim são
descritos, embora não estivessem sem pressupostos (o que seria impossível).
Quanto aos seus
nomes, compilando as informações de todos os livros que dispomos, temos:
Górgias (483? – 376); Hípias (século V a. C.); Protágoras (485? – 410? a. C.);
Pródico; Antífon. Pelo menos esses são os principais. ... considera Zenão,
discípulo de Parmênides, um sofista também (PLATÃO, p.59).
Atenas foi o grande
palco dos sofistas. Observem os dizeres de Chalita: “Esses filósofos eram
originários de diferentes cidades e viajavam pelas póleis governadas da mesma
forma democrática, especialmente Atenas, onde discursavam em público e
ensinavam sua arte em troca de pagamento” (CHALITA, p. 45). Ou seja, é
justamente a sociedade democrática que lhes interessavam. Por que será?
Mas a citação de
Chalita nos dá insight para outra observação. Eram viajantes. Viajantes e
professores remunerados. A situação política democrática de Atenas fazia-a um
atrativo vigoroso aos sofistas. Já observamos que democracia ateniense
possibilitava aos cidadãos participarem ativamente na administração do Estado.
Para isso, era preciso, nas assembleias, argumentar de modo que todos fossem
convencidos. Assim, Gaarder nota que “Entre os atenienses era particularmente
importante dominar a arte de bem falar, a retórica. Não demorou para que um
grupo de mestres e filósofos itinerantes, vindo das colônias gregas, se
concentrasse em Atenas. Eles se autodenominavam sofistas, eram pessoas
estudadas, versadas em determinado assunto, e ganhavam a vida em Atenas
ensinando os cidadãos” (GAARDER, p.77). Em suma, podemos vê-los como
professores profissionais de filosofia.
UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA
“Protágoras,
provavelmente o sofista mais influente em Atenas, é quase sempre chamado ‘pai
do humanismo’ pelos historiadores modernos. Sua famosa máxima, ‘homo mensura’,
declara que ‘o homem é a medida de todas as coisas’ [...]. Para Protágoras, o
conhecimento começa e termina com o ser humano. Todo conhecimento humano
restringe-se às nossas percepções, e as percepções diferem de pessoa para
pessoa. [...] Percepção é realidade. Dessa forma, algo pode ser verdadeiro para
uma pessoa e falso para outra. Isso é correto, com certeza, com respeito a
preferências [...]. Protágoras, porém, vai além do aspecto subjetivo da
preferência, passando a reduzir toda a realidade a uma questão de preferência”
(SPROUL, p. 31). Portanto, em Protágoras, temos o antônimo da proposta
epistemológica agostiniana e, no fundo, a essência de toda proposta
não-bíblica. Enquanto Agostinho (e acreditamos que a própria Bíblia) propõe que
o fundamento da epistemologia, a pedra angular de todo o entendimento, a
condição sine qua non para o conhecimento, em suma: a panaceia epistemológica,
é a teorização teo-referente, Protágoras deixa claro que o homem é a medida de
todas as coisas.
Entretanto, não se
trata aqui na mera pressuposição de que as percepções sensoriais humanas são
perfeitamente competentes para reproduzir o mundo, ou que a nossa razão encerra
tudo que pode existir ou não. Protágoras está argumentando mais ao sabor
pós-modernista*. É quase um construtivista ontológico (quando formos expor o
pós-modernismo trabalharemos essa questão). E Protágoras não está só. Górgias,
segundo Sproul, está com ele: “Górgias é conhecido por introduzir o ceticismo
radical. Ele deu as costas à filosofia e dedicou-se à retórica. Essa disciplina
enfocava a arte da persuasão no discurso público. O objetivo da retórica não
era proclamar a verdade, mas atingir objetivos por meio da persuasão. Górgias
negou que houvesse qualquer verdade. [...] Suas ideias não são muito diferentes
das dos relativistas de hoje...” (SPROUL, p.30).
Na verdade, em certo
sentido, não deixam de ser racionalistas. São seus raciocínios que, sem um pressuposto
adequado e devidamente justificado, os faz concluir que não há verdade alguma.
Portanto, no final das contas, estão confiando na razão para dizer que ela não
é confiável. Entretanto, o fazem como o cético no empirismo que nota haverem
enganos nas percepções e disso questionam-se em qual momento não há engano. Os
sofistas parecem perceber que os diversos raciocínios levam a conclusões
controvertidas e não sabem como decidir-se entre as muitas alternativas. Parece
que a inabilidade teórica, a falta de poder para resolver controvérsias e
disputas filosóficas, desemboca no ceticismo*.
Já que não existe
essa tal de verdade, ou melhor, já que tudo é relativo, então a filosofia
deveria se ocupar mais com o discurso, com a retórica, com a verossimilhança
das proposições. Para isso, todo tipo de desonestidades intelectuais são
engendradas. O importante era convencer. E os sofistas tornaram-se bons nisso.
Chalita nos informa “Os sofistas usavam, de fato, complicados jogos de
palavras, trocadilhos, raciocínios sem lógica, todos os recursos do discurso
para demonstrar a ‘verdade’ daquilo que se pretendia alcançar” (CHALITA, p. 46)
e Moura complementa de modo brilhante: “E tornando-se os mestres dessa falsa
cultura variada, brilhante, palavrosa, eloquente, fácil, eficaz, retórica,
cultura que pretende vencer pelo número de palavras e pela elegância do gesto,
como pelo timbre de voz” (PLATÃO, p. 61).
Assim, ser ‘sofista’
ganha uma conotação de que se quer ganhar na lábia, no engano, sem se importar
com a veracidade do tema. Mais tarde Aristóteles iria cunhar de ‘sofisma’ uma
premissa falsa num raciocínio silógico*.
O PROJETO FILOSÓFICO
Os sofistas não
restringiram-se a descontruir projetos filosóficos. Não eram como os céticos
que viriam num futuro relativamente breve. Eles desenvolveram uma nova forma de
fazer filosofia, novos temas para dissertar. Mas antes, para isso, colocaram de
lado o antigo projeto, como observa, respectivamente, Chalita e Durant: “Os
sofistas, entretanto, não foram somente professores, mas também estabeleceram
uma corrente de pensamento própria. Sua preocupação filosófica se voltava para
o homem e a vida em sociedade; as questões que ocupavam os pré-socráticos,
dirigidas para a natureza e a essência do universo, foram colocadas em segundo plano”
(CHALITA, p. 46); “Mas os mais característicos e férteis desenvolvimentos da
filosofia grega tomaram forma com os sofistas, professores ambulantes de
sabedoria, que olhavam para seu próprio pensamento e sua própria natureza, em
vez de para o mundo das coisas” (DURANT, p. 26)*.
Ou seja, como as
citações antecipam, deixaram de pensar nas questões metafísicas dos seus
antecessores. Como já observamos, um dos motivos era a confusão que a filosofia
se enredou com toda aquela discussão. Entretanto, a reflexão ética e social,
principalmente com tudo que estava acontecendo, era inevitável. Gaarder é
extremamente perspícuo ao relatar essa transição filosófica: “Ao mesmo tempo,
porém, os sofistas simplesmente rejeitavam tudo o que consideravam especulação
filosófica desnecessária. Para eles, ainda que houvesse respostas para muitas
questões filosóficas, ninguém jamais seria capaz de encontrar respostas
realmente seguras e definitivas para os mistérios da natureza e do universo.
[...] Mas ainda que não possamos encontrar uma resposta para todos os mistérios
da natureza, sabemos que somos pessoas e que precisamos aprender a conviver
umas com as outras. Os sofistas resolveram, então, dedicar-se à questão do
homem e de seu lugar na sociedade” (GAARDER, p. 77-78).
Notaremos, adiante,
que eles não eram absolutamente relativistas como pretende-se supor (e
suspeitamos que ninguém pode ser). Como aperitivo, observemos que eles criam em
questões muito pontuadas sobre a conduta e principalmente na veracidade de seu
ceticismo.
E QUANTO AOS MITOS E A
RELIGIÃO?
“Os sofistas tinham
um importante elemento comum com os filósofos naturais: eles também viam com
olhos muito críticos a mitologia tradicional” (GAARDER, p. 77). A rejeição
peremptória da teologia e da religião (bem como da metafísica) encontra-se em
Protágoras: “Quanto aos deuses, não tenho condições de saber se eles existem ou
não, nem que forma têm; os fatores que impedem o conhecimento são muitos: a
obscuridade do tema e a brevidade da vida humana” (PROTÁGORAS apud SPROUL, p. 32).
No apêndice à
Apologia de Sócrates encontramos a informação de que Protágoras, que neva os
deuses, foi condenado, seus livros foram queimados publicamente, e morreu em
fuga (PLATÃO, p. 59-60). Mas, enquanto Maria Lacerda de Moura o considera,
aparentemente, um ateu, Gaarder prefere caracterizá-lo como um agnóstico, ou seja,
“chamamos de agnóstico aquele que não é capaz de afirmar categoricamente se
existe ou não um Deus” (GAARDER, p. 78).
A DISCUSSÃO METAÉTICA
Observamos
anteriormente que os sofistas eram viajantes. E qual seria a consequência
disso? Bom, no mínimo, o intercâmbio cultural que levava ao ceticismo, como
observamos no começo desse artigo, e outras duas vezes mais. Gaarder deixa isso
muito claro: “Via de regra, os sofistas eram homens que tinham feito longas
viagens e, por isso mesmo, tinham conhecido diferentes sistemas de governo.
Usos, costumes e leis das cidades-Estados podiam variar enormemente. Sob este
pano de fundo, os sofistas iniciaram em Atenas uma discussão sobre o que seria
natural e o que seria criado pela sociedade” (GAARDER, p. 78).
Osborne, pois, nota
que os sofistas, no campo da ética, envidaram discussões metaéticas: “O debate
sobre os costumes e a natureza (nomos contra physis) que se desenvolve na obra
de Protágoras, de Antífon, o sofista, e em algumas personagens que retrata
Platão, Cálicles e Trasímaco, era de ordem metaética: A moral não é tão somente
uma convenção humana? Deve-se viver conforme a ela? Deve-se, ao contrário,
seguir as leis da natureza?” (PRADEAU, p. 30).
Voltando a Gaarder,
ele nos informa que, por exemplo, o pudor parecia a eles um produto
sociocultural. Ao viajarem notaram que haviam povos que não se incomodavam em
andar nus (GAARDER, p. 78). Quem conhece Nietzsche não pode deixar de notar as
semelhanças (veremos isso com mais detalhes quando formos explicar Nietzsche).
E Sproul de fato as amplia expondo a personagem Trasímaco, citada anteriormente
por Osborne: “Trasímaco, que contrasta com Platão na República, foi um sofista
que atacou a busca de justiça. Segundo Trasímaco, longe de ser uma pessoal
imoral, o ímpio, ao constatar que o crime compensa, é uma pessoa superior com
intelecto superior. Trasímaco antecipou, assim o Übermensch (‘super-homem’) de
Friedrich Nietzsche. A justiça, diz Trasímaco, é um conceito para as pessoas de
mente debilitada, às quais falta a determinação de se afirmar” (SPROUL, p. 30).
Notamos,
particularmente em Protágoras, uma crítica à fé religiosa grega. E a
consequência dessa ‘apostasia’ foi a perda, definitiva, de qualquer fundamento
objetivo para a moralidade. Protágoras também, como vimos, argumentava em prol
do relativismo em torno da percepção humana, e isso traria consequências que
ele mesmo admite na ética, conforme expressa-se Sproul: “Protágoras argumenta
que a ética é igualmente apenas questão de preferência. As regras morais
expressam meros costumes ou convenções, que na verdade nunca são certos nem
errados. A distinção entre defeito e virtude está nas preferências de dada
sociedade” (SPROUL, p. 31).
Não se segue
determinados padrões por medo dos castigos divinos, e sim para não se dar mal
perante a lei e seus paladinos estatais, os soldados. Durant nota muito bem tal
impasse: “Os sofistas haviam destruído a fé que aqueles moços outrora tiveram
nos deuses e deusas do Olimpo e no código moral que extraíra sua sanção, de
forma tão acentuada, do medo que os homens tinham daquelas onipresentes e
inúmeras divindades; aparentemente, não havia razão para que, agora, o homem
não fizesse o que quisesse, desde que permanecesse dentro da lei. Um
individualismo desintegrado havia enfraquecido o caráter ateniense e deixado a
cidade, finalmente, à mercê dos espartanos severamente educados” (DURANT, p.
29). Em suma, até mesmo os sofistas e demais gregos na época conheciam a máxima
que Dostoievsky, séculos adiante, iria proferir: “Se Deus não existe, tudo é
permitido” (DOSTOIEVSKY apud SPROUL, p. 128).
A SUBJETIVISAÇÃO MORAL
Mas se não existe,
de fato, um certo e errado, o que regerá as ações humanas? Novamente Protágoras
tinha a solução para os gregos. Como o homem é a medida de todas as coisas, são
suas impressões e desejos que devem determinar o que se deve fazer. Chalita elucida:
“...as regras morais, as posições políticas e os relacionamentos sociais
deveriam ser guiados conforme e conveniência individual. Para esse fim,
qualquer pessoa poderia se valer de um discurso convincente, mesmo que falso ou
sem conteúdo” (CHALITA, p. 46). Tal individualismo moral cheira, e muito, a
Sartre (faremos exposições de Sartre noutra oportunidade e isso poderá ser
percebido).
Entretanto, esses
discursos só poderiam ter valor perante a lei, para legitimar determinada ação
de modo a não encerrar o agente moral num encarceramento. Afinal, para a
consciência do indivíduo, tudo o que importava era a satisfação de seus
instintos: “Segundo a sofística, o que importava para o ser humano era obter
prazer com a satisfação de seus instintos, de seus desejos individuais. Assim,
até mesmo dominar outros cidadãos seria justificado, se isso gerasse alguma
vantagem pessoal” (CHALITA, p. 46). Chalita, pois, além de os caracterizar por
relativistas morais, ainda os considera hedonistas.
Em suma, pois, cada
um decide por si o que é certo e errado, ou melhor, o que lhe satisfaz. Mas em sociedade
é preciso que as ações tenham justificativas públicas. Talvez para demonstrar
que determinada ação não iria prejudicar a busca por prazer de outras pessoas.
Até aqui é impossível não pensar em Bentham, Stuart Mill, Austin e outros
filósofos morais bem mais recentes. Durant parecia não estar brincando quando
disse que os pré-socráticos exploraram todos os campos e implicações da ética!
Entretanto,
suspeitamos de nossa conclusão de que eles tenham levado a subjetivismo moral.
O próprio Chalita, que parece ligar o subjetivismo moral à prática da retórica,
diz que as atividades filosóficas dos sofistas vieram a “...impedir o
estabelecimento de um conjunto de normas de comportamento que garantissem os
mesmos direitos para todos os cidadãos da pólis” (CHALITA, p. 46). Ou seja, é
como se eles (ou alguns deles) ameaçassem a própria vida em sociedade.
AS DISCUSSÕES POLÍTICAS
Will Durant nos
informa sobre duas perspectivas sofistas em relação à política. “Uma, como a de
Rousseau, asseverava que a natureza é boa, e a civilização, má; que segundo a
natureza todos os homens são iguais, só se tornando desiguais pelas
instituições criadas pelas classes; e que a lei é uma invenção de fortes para acorrentar
e governar os fracos” (DURANT, p. 26).
A silhueta de Marx
não surge, agora, no horizonte sem motivo algum. Pondé observa que Rousseau (e
agora poderíamos dizer que parte dos sofistas, na verdade) é o pai da esquerda
política e do politicamente correto*. Louvando a Durant por sua observação
quanto às competências dos sofistas, notamos aqui a mais uma antecipação da
filosofia antiga.
Sproul ainda nota
outro traço marxista nos sofistas: “Antecipando Karl Marx, Trasímaco vê a lei
como uma simples manifestação dos interesses das classes dominantes” (SPROUL,
p. 31).
“Outra escola, como
a de Nietzsche, alegavam que a natureza está acima do bem e do mal; que,
segundo a natureza, todos os homens são desiguais; que a moralidade é uma
invenção dos fracos para limitar e deter os fortes; que o poder é a virtude
suprema e o desejo supremo do homem; e que, de todas as formas do governo, a
mais sábia e mais natural é a aristocracia” (DURANT, p. 26-27).
Essa segunda
perspectiva está mais alinhada à crítica metaética de Protágoras e companhia.
E, mais uma vez, vemos os sofistas antecipando a discussão filosófico-moral que
viria séculos mais tarde.
A democracia
vigente, pois, era criticada. “Um pressuposto para a democracia era o fato de
que as pessoas recebiam educação suficiente para poder participar dos processos
democráticos” (GAARDER, p. 77). Pressupunha não só que as pessoas eram
suficientemente educadas como eram igualmente competentes. Mas a democracia
recebia duras críticas, como expressa-se Durant: “E quanto ao Estado, o que
poderia ser mais ridículo do que a sua democracia chefiada pela populaça,
dominada pela paixão, aquele governo por uma sociedade que estabelecia debates,
aquela precipitada seleção, demissão e execução de generais, aquela escolha sem
seleção, de simples agricultores e comerciantes, em rotação alfabética, para
membros da suprema corte do país?” (DURANT, p. 29). Ou seja, a massa, burra,
não era capaz de ouvir à razão. Antes eram facilmente convencidas por discursos
demagógicos, o que seria criticado, doravante, por Sócrates perante a
Assembléia que iria condená-lo (cf. o Capítulo XXI da Apologia de Sócrates
escrita por Platão)*.
Bentham, Rousseau,
Marx, Stuart Mill, Nietzsche e Sartre, pelo menos, foram antecipados, pelos
sofistas, em muitos pontos no que diz respeito à ética, política e até
epistemologia. Temos que concordar com Durant.
OS SOFISTAS E A ACEITAÇÃO
PÚBLICA DE SUAS IDEIAS
Os sofistas, como
foi visto, eram estimados pelos políticos, e todo cidadão responsável, que não
fosse idiota, almejava participar das decisões administrativas do Estado.
Assim, no final das contas, os sofistas angariavam prestígio de todos os
cidadãos, uns mais e outros menos. Mas os jovens é que lhes devotavam a maior
admiração. Os velhos, acostumados a seguirem seus tabus morais e costumes
religiosos, podiam oferecer maior resistência às propostas inovadoras dos
sofistas. Mas os jovens não. Osborne, terminando seu artigo sobre o nascimento
da filosofia, elabora um precioso parágrafo do qual citamos parte: “Parece que
na segunda metade do século V, a Filosofia estava bem nascida e que ela exercia
então uma influência considerável sobre a vida intelectual, cultural e política
das cidades gregas, em particular em Atenas. É fácil compreender como, em tal
contexto, os sofistas podiam ganhar sua vida ensinando filosofia aos jovens
ávidos de ideias inovadoras, mas também como o povo ateniense podia se
inquietar com a maneira pela qual esse livre pensar era suscetível de corromper
os costumes e as condutas dos jovens” (PRADEAU, p.30-31).
Com toda a
turbulência ética e até político-forense que o novo projeto filosófico trazia à
baila, era mais que natural que conflitos físicos, além dos embates e disputas
intelectuais, começassem a surgir. Vítimas preciosas surgiriam. Dentre elas, a
mais preciosa de todas, sem dúvida, foi Sócrates.
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* O grande filósofo
reformado Ronald Nash expõe a epistemologia de Protágoras da seguinte maneira:
“Da maneira como Platão expôs a posição de Protágoras em seu Teeteto,
Protágoras assume que a experiência sensorial é idêntica ao conhecimento. A
razão pela qual todas as coisas seriam relativas é a de que o conhecimento
seria idêntica à maneira pela qual percebemos o mundo mediante nossos sentidos.
Duas pessoas poderão estar atentas à mesma brisa. Uma delas, sofrendo de uma
febre, poderá experimentar o vento como se estivesse frio e sentir um arrepio.
A outra pessoa poderá achar que a brisa esteja prazerosa. Ambas estariam
certas, segundo o ponto de vista de Protágoras. Não haveria princípio mais
elevado a que apelar. Dada pessoa seria a medida ou juízo último de todas as
coisas” (NASH, p. 251). Mas, conforme os outros autores fizeram suas exposição,
não se trata apenas disso. Aqui Protágoras, segundo Nash, estaria observando
apenas questões sensoriais, e, além disso, falhas comunicativas. Seria
perfeitamente possível entendermos que aquela pessoa, com febre, tem o corpo
quente e, por isso, sente um vento à temperatura x de maneira diferente do que
outra que não está com o corpo em temperatura elevada. É muito óbvio. Será que
Protágoras cometeu um erro tão infantil assim? Prefiro pensar nele como um
relativista verdadeiro, um pós-modernista.
* A crítica a essas
perspectivas serão desenvolvidas pelos filósofos posteriores.
* Caso não tenha
compreendido essas expressões, não se desespere. Quando formos estudar
Aristóteles isso, e muito mais, será explicado.
* Will Durant
realmente deve considerar os sofistas o auge da filosofia visto que não é muito
afeiçoado à epistemologia (cf. DURANT, p. 10) e, predominantemente, focar-se,
no âmbito filosófico, aos problemas ético-sociais em sua História da Filosofia.
* Pondé, sobre
Rousseau, diz ser ele “o pai da esquerda e de todo o otimismo
filosófico-político posterior a ele e, por decorrência, do politicamente
correto” (PONDÉ, p. 137).
* Pretendemos,
adiante, escrever um artigo com nossa posição a respeito desse embate político.
REFERÊNCIAS
CHALITA, Gabriel. Vivendo
Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.
DURANT, Will. A
História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.
GAARDER, Jostein. O
mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.
NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de
Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.
OSBORNE, Catherine. O
nascimento da filosofia _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução
de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.
PLATÃO. Apologia de
Sócrates. Tradução e Apêndice de Maria Lacerda de Moura; Introdução de
Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, 88p.
PONDÉ, Luiz Felipe. Guia
Politicamente Incorreto da Filosofia: ensaio de ironia. São Paulo: Leya,
2012, 232 p.
SPROUL, R. C. Filosofia
para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002,
208 p.
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